Zapata não fazia parte dos chamados dissidentes que foram julgados em março de 2003, não era um dos 75. Tinha um longo histórico delitivo comum, nada vinculado à política. Transformado depois de muitas idas e vindas à prisão em ativista político, era um homem prescindível para os opositores da Revolução. Apesar de se negar a tanto, recebeu, de acordo com o que estabelece o Tratado de Malta, a assistência médica necessária. Nele relacionei também alguns casos flagrantes de brutal violação de direitos humanos, históricos e atuais, sem que a grande mídia internacional e seus porta-vozes acusassem minimamente os respectivos governos de criminosos.

E concluía dizendo que a visita de Lula a Havana coincidira com a morte de Zapata, e que a direita e seus porta-vozes ao criticar furiosamente nosso presidente, pretendia vinculá-lo ao desrespeito a direitos humanos, querendo, no fundo, destruir sua imagem de grande líder nacional e internacional em proveito de seus interesses ideológicos permanentes e eleitorais imediatos. O comportamento de Lula naquela visita foi de chefe de Estado que respeita o princípio da auto-determinação. E pessoalmente foi leal àqueles que ao longo de décadas se constituíram numa referência de soberania e independência mas também de dignidade, heroismo e solidariedade.

Face à entrevista de Lula desses dias à Associated Press, a sanha da direita internacional se volta contra ele ainda mais raivosa. A grande imprensa convoca personagens como Mario Vargas Llosa, Andrés Oppenheimer, Carlos Montaner e outros plumitivos para insultá-lo e desclassificá-lo para as importantes missões internacionais que em breve irá desempenhar. Manipulam o normal sentimento das pessoas comuns. torcem e distorcem os fatos, escondem a realidade, mentem e enganam. Ao desqualificar a Lula, servindo-se vergonhosamente do episódio, querem matar o outro coelho da cajadada: Cuba.

Peço aos leitores que acompanhem atentamente a transcrição “ipsis litteris” do fragmento da entrevista à AP:

“Jornalista: Queria perguntar também sobre a viagem que o senhor acabou de fazer para Cuba. Naquele momento estava a situação daquele dissidente, que estava em greve de fome, agora tem outro cara em greve de fome também. Como o senhor acha que Cuba deve lidar com essa situação dos dissidentes?

Presidente: Olha, veja, eu penso que a greve de fome não pode ser utilizada como pretexto de direitos humanos para libertar as pessoas. Imagine se todos os bandidos que estão presos aqui em São Paulo entrassem em greve de fome e exigissem liberdade. Ora, veja, nós temos que respeitar a determinação da Justiça e do governo cubano de prender as pessoas em função da legislação de Cuba, como eu quero que eles respeitem o Brasil, como eu quero respeitar aquilo que os Estados Unidos fizerem, cumprindo a lei. A partir daí, um cidadão, fazer uma greve de fome até se permitir morrer… Eu já fiz greve de fome e nunca mais eu farei, nunca mais eu farei.

Eu acho uma insanidade judiar do próprio corpo. Mas não é apenas em Cuba que morreu um cara de greve de fome. Tudo mundo sabe o que acontecia na Irlanda, quanta gente do IRA morreu de greve de fome. Eu vejo muita gente que hoje critica o governo cubano por causa da morte, não falava nada da morte do IRA. Era como se fosse uma coisa normal morrer lá na Irlanda e não fosse normal as pessoas morrerem em outros países. Eu gostaria que não acontecesse. Agora, não posso questionar as razões pelas quais o cubano prendeu ele, como eu não quero que Cuba me questione pelas razões que pessoas estão presas no Brasil.”

Na pergunta, o jornalista por duas vezes enfatizou a greve de fome. Lula, que tem uma posição pessoal, enérgica e de longa data contra a greve de fome como instrumento de pressão, respondeu pontualmente à questão ilustrando com a possibilidade de presos comuns de São Paulo valerem-se de greve de fome para obter liberdade. Passou depois a outras considerações.

Sabem como a Folha de S. Paulo transcreveu entre aspas a entrevista? Ah, a semiótica! Inverteu os dois primeiros parágrafos. Dentro do contexto colocado em primeira plana “temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubano” enfiou o “Imagine se todos os presos de São Paulo”. Com isso, esse ínclito jornal descontextualizou, deturpou e manipulou o pensamento de Lula a seu talante, para servir aos seus interesses ideológicos.

Quando Lula diz em seguida “nós temos que respeitar a determinação da Justiça e do governo cubano de prender as pessoas em função da legislação de Cuba, como eu quero que eles respeitem o Brasil” disse-o porque viveu “in loco” o clima de ardilosa manipulação que se arquitetava em torno do “caso Zapata” e quis trazer a questão para o campo da realidade concreta dos acontecimentos.

Mas não parou por aí a entrevista. Afirmou a seguir “como eu quero respeitar aquilo que os Estados Unidos fizerem, cumprindo a lei.” Pouca gente sabe, porque a nossa imparcial grande imprensa sonega esta informação – sempre sonegou, que há mais de 11 anos cinco prisioneiros políticos cubanos, lutadores antiterroristas, encontram-se atrás das grades em distintas prisões de alta segurança. Foram condenados no ambiente acerbamente contrário a Cuba, em julgamento viciado que violou o devido processo legal, a penas draconianas.

Um deles a duas prisões perpétuas mais 10 anos. Esposas não podem e nunca puderam visitá-los, alegadamente por ameaçarem a segurança do país. Os Estados Unidos cometem essa barbaridade cumprindo sua lei. Como cumprem sua lei em Guantánamo, única área de Cuba em que se praticam torturas, sob a aprovação legal e estímulo dos presidentes Bush e Chenney e a tolerância dos atuais governantes. A propósito, por diversas vezes o presidente Raul Castro propôs a troca dos chamados dissidentes pelos 5 Cubanos, a primeira vez aqui no Brasil. A resposta até agora tem sido o silêncio de Washington.

Em seguida Lula afirmou “mas não é apenas em Cuba que morreu um cara de greve de fome. Tudo mundo sabe o que acontecia na Irlanda, quanta gente do IRA morreu de greve de fome. Eu vejo muita gente que hoje critica o governo cubano por causa da morte, não falava nada da morte do IRA. Era como se fosse uma coisa normal morrer lá na Irlanda e não fosse normal as pessoas morrerem em outros países.”

Lembro que 11 membros do Exército Republicano Irlandês (IRA), do Exército de Libertação Nacional Irlandês (INLA) encerrados nos blocos H da prisão de Maze, deflagraram em 1º de março de 1981 uma greve de fome. Suas reivindicações: não usar uniformes de presidiário; não realizar trabalhos forçados; liberdade de associação e organização de atividades culturais e educativas; direito a uma carta, uma visita e um pacote por semana, que os dias de protesto não fossem descontados quando do cômputo do cumprimento da pena e a recusa de serem tratados como criminosos.

Defendiam, a um só tempo, sua dignidade pessoal e a legitimidade da luta pela libertação de seu país. Margareth Thatcher mostrou-se o tempo todo insensível, fez ouvidos de mercador aos apelos humanitários. Alguém imagina que teria o Estadão, a Folha ou o Globo ou El Pais, The New York Times, Die Welt, The Daily Telegraph, Le Fígaro, Clarin, estampado em sua manchete principal e desfiando em editoriais acusando o regime Thatcher de homicida e ela de tirana? Vão às edições da época. A navegação na Internet permite. Vejam e leiam com seus próprios olhos.

E Lula conclui “eu gostaria que não acontecesse. Agora, não posso questionar as razões pelas quais o cubano prendeu ele, como eu não quero que Cuba me questione pelas razões que pessoas estão presas no Brasil.” Ninguém, em primeiro lugar os amigos de Cuba e da Revolução, gostaria que acontecesse. Lá estão Payá, Elizardo, Roca, Beatriz, Yohani falando e escrevendo o que querem. Acontece que em Cuba pouquíssima gente lhes dá ouvidos, mas contam com a estridência da mídia e da direita em todos os quadrantes do globo.

O veterano jornalista Clóvis Rossi escreveu em sua coluna: “Uma tirania que fez de Cuba o museu do fracasso do socialismo real, só louvado por três ou quatro intelectuais de quinta, que sem público em seus próprios países, vêm à América Latina lamber as botas de tiranos e tiranetes de opereta.”

Nenhum regime tirânico, jornalista Rossi, se sustenta por muito tempo se não conta com o apoio do povo. Quando o regime tirânico de Fulgêncio Batista endureceu sua tirania, Fidel Castro e seus companheiros subiram a Sierra Maestra e, com a bravura que a história consagrou e o apoio do seu povo, esmagou a ditadura tirânica. Quando ruiu o sistema soviético e literalmente da noite para o dia se rompeu o fluxo de insumos básicos, quantos analistas, politólogos, muitos ‘soi disant’ de esquerda, vaticinaram que a peça seguinte do dominó a cair seria Cuba – e em poucas semanas. Isto já faz 20 anos. Cuba resiste ha mais de 50 anos a um bloqueio desumano e genocida, a atos de terrorismo e invasão militar.

Apesar disso, neste país pequeno e de poucos recursos naturais “seu museu de fracasso” exibe as menores taxas de mortalidade infantil e maternal do mundo com as quais só a Escandinávia se compara, está em 14º lugar em termos de educação básica segundo a UNESCO, tem o melhor sistema de medicina preventiva do planeta, que estende solidária e humanitariamente a milhares de pessoas em dezenas de países, abre seus cursos de medicina a milhares de estudantes pobres, gratuitamente, para que aprendam a praticar a medicina solidária, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de Cuba é incluído na categoria alto, lá não há analfabetismo, o desemprego é ínfimo, não há crianças na rua praticando malabarismo para poder comer, o esporte lá é matéria universal e os resultados os Jogos Olímpicos comprovam.

Quanto aos “três ou quatro intelectuais de quinta”, jornalista Rossi, vou citar, para seu conhecimento, mais de uma dezena, só de prêmios Nobel, que não costumam lamber botas mas tem conscientemente simpatia por Cuba: Nelson Mandela, Gabriel Garcia Márquez, José Ramos-Horta, Rigoberta Menchú, Adolfo Pérez Esquivel, Máiread Corrigan Maguire, Günter Grass, José Saramago, Dario Fo, Nadine Gordiner, Wole Soyinka, Zhores Alferov.

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Publicado no portal PT em 12/3/2010, citado pelo Portal da Fundação Perseu Abramo