Os chefetes fascistóides da Operação Lava-Jato nomearam a sua 24ª fase com a ironia de almanaque que usam de modo contumaz na escolha dos títulos para as diversas etapas da pantomima midiático-conservadora em que se converteu a investigação. Chamaram, então, esta fase de aletheia, usando um conhecido termo do grego, no intuito de referir-se a uma “verdade que se atinge através da razão”, a uma “ação contra o esquecimento”. A intenção foi a de descortinar a pretensa “verdade” do modus operandi dos governos petistas, elegendo como vítima central do achaque o ex-presidente Lula. Ainda é cedo para avaliar os resultados de uma condução coercitiva que até agora se mostrou completamente descabida ou, no mínimo, desnecessária. A esse respeito, de pronto, opinaram demonstrando o seu desacordo com o método de Sérgio Moro diversos juristas eminentes do país. Por essas e outras, a aletheia em questão aqui, pode voltar-se contra o feiticeiro mais rápido do que se pensa e desmascarar ainda mais cabalmente a substância política e ideológica, bem como a clara orientação de classe da Lava-Jato, uma operação eivada de vícios de ruptura das garantias democráticas mais fundamentais.

A verdade dessa Operação está agora patentemente escancarada à razão de quem não quiser se deixar iludir. Primeiro, ficou evidente nesta etapa que há um conluio entre a mídia golpista e os responsáveis pela investigação. Diversas provas desse conluio apareceram, na condução coercitiva de Lula ao depoimento à PF, tornando ainda mais espetacular o circo de DNA fascista transmitido ao vivo por TVs e rádios do país. Jornalistas sequiosos por carniça sabiam o que ia ocorrer antes da deflagração oficial da Operação. O circo midiático no local onde se realizaram as buscas e apreensões já estava preparado bem antes de tudo começar. O dia 04/03/2016 foi sombrio: o poder de polícia era usado para coagir, intimidar, massacrar e, em parceria com uma mídia venal, linchar simbolicamente uma das mais expressivas lideranças políticas do país. A verdade, a aletheia dessa fase da lava-jato é, então, o desejo de linchamento de Lula e, junto com ele, o desejo de linchamento das esquerdas, do pensamento popular, da força de reação dos mais fracos aos desmandos imprimidos pelos donos do poder, desmandos já atavicamente colados na maneira de ser da elite brasileira. É a serviço dessa elite que estão funcionando mecanismos que deveriam estar ligados à garantia da constitucionalidade e da democracia. Ideologicamente, é uma ação que materializa, com consistência institucional, o sentimento antipovo incensado diuturnamente pela mídia e pelos setores conservadores da sociedade brasileira. Não nos devemos esquecer da lição de Marx: “a história é a história da luta de classes”. E, no contexto dessa batalha, há sempre uma disputa pela verdade, uma disputa pelas instituições, uma disputa pela razão. Por isso, o termo aletheia aqui deve ser radicalizado em seu sentido de classe. A verdade de um processo histórico é sempre aquela que pertence à perspectiva aos grupos que sofreram a história. Por isso, Florestan Fernandes referia-se à abolição da escravidão no Brasil como uma “revolução social de brancos para brancos”. A recente “luta contra a corrupção”, de cariz eminentemente fascista, plena de avatares do atavismo colonial, é, nesse mesmo sentido, “tentativa de revolução da casa-grande, para a casa-grande”, uma “defesa da ética que visa defender corruptos”.

Dizer isso não é emaranhar-se em uma ilusão. Não há muitas mãos limpas em uma democracia burguesa periférica, naturalmente corrupta, como é venal e viciado em dinheiro público o capitalismo que por aqui grassa. O próprio Lula disse certa vez, em meio à campanha eleitoral de 2014, que o PT tinha se comportando no poder de modo semelhante ao de outros partidos. Disse que isso era um erro e que precisava ser corrigido no correr da história. É possível mesmo que abusos tenham acontecido, mas eles não foram nem em número maior, nem mais graves, do que o fizeram outros governos de outros partidos aliados à elite brasileira, com seu renitente abuso do arbítrio. Os desmandos e malfeitos de políticos e empresários devem ser punidos, doa a quem doer, com rigor e legalidade. Mas, sobretudo, a ação contra a relação promíscua entre Estado e Mercado no Brasil deve cobrir um arco amplo, capaz também de atingir as engrenagens elementares do nosso sistema eleitoral. Fora desse escopo, trata-se de perseguição a uma orientação política; trata-se, portanto, de mais uma “revolução de brancos para brancos”.

Pois bem, se a sociedade não se mobilizar por uma apuração isenta e equilibrada dos fatos, o que vai acontecer é que o PT, caso tenha mesmo errado como outros partidos, irá pagar como nenhum outro pagou por qualquer desvio. Nenhum político brasileiro sobreviveria à devassa diuturna que têm sofrido Lula e alguns de seus aliados. Aécio Neves, por exemplo, sofrendo o mesmo achaque, já estaria em péssimos lençóis. Eduardo Cunha e sua ilustre senhora jamais foram admoestados por delegado da PF.

A verdade da Operação Lava-Jato, a sua aletheia é o desejo desreprimido de linchamento do PT e a inviabilização de qualquer candidatura mais à esquerda em 2018. A inviabilização de qualquer candidatura que não faça o beija-mão da cartilha do neoconservadorismo mundial. Para isso, não se medem esforços, o que é bom em certa medida. A condução coercitiva de Lula deixou patente que a Lava-Jato perdeu qualquer possível resquício de pudor republicano. As máscaras de quem persegue estão caindo, a aletheia do momento vai se revelando aos olhos de quem quiser ver.

Se não houver mobilização nas ruas do país, união das forças de esquerda e sinais concretos do Governo Dilma para a sua base social, as consequências que se anunciam são as mais tenebrosas. O circo fascista está aramado por donos do poder, instituições vendidas e mídia raivosa reprodutora de ódio de classe. Quem irá apanhar no centro do picadeiro é a esquerda como um todo e sem distinção, a qual poderá se inviabilizar por um bom tempo como força política representativa dos trabalhadores e dos socialmente mais vulneráveis. Ainda que tenham cometido erros no exercício do poder, defender Lula e o Governo Dilma, significa hoje defender a democracia brasileira contra a sanha raivosa e violenta, contra o arbítrio de classe que vem daqueles que sempre dominaram os rumos do país. Não há comparação entre o que vemos hoje em termos de erros estratégicos e políticos e o que poderia fazer um governo sustentado pelas forças conservadoras da sociedade. O que hoje achamos erro, no caso dos asseclas do neoliberalismo seria acerto; não haveria chance de contraditório. Basta olhar ali para a Argentina de Macri para ver uma miniatura do que poderia acontecer à sociedade brasileira. Trata-se de uma consequência terrível, que está, sim, posta no horizonte do país dos próximos anos.

A história caminha: ela é um processo dinâmico e não há porque achar que tudo está perdido agora. Se por um lado fomos acuados pela violência golpista, há também, por outro, uma grande oportunidade de ocupar as ruas e escrachar a verdadeira aletheia que está em jogo no Brasil. Resistir hoje é uma questão de defender a democracia do fascismo midiático, da ocupação conservadora das instituições, da plutocracia e da regressão dos avanços sociais. Mulheres, negros, pobres, homossexuais estariam menos livres e mais vulneráveis a agressões de toda a espécie. Se precisávamos de uma senha que nos unisse, essa senha é-nos dada hoje pela perseguição hidrofóbica a Lula. Ele é capaz de nos unificar e de fazer o Governo guinar de vez para o confronto contra o conservadorismo econômico e social. Resistiremos ao fascismo. Teremos de resistir, pois há valores maiores em jogo e é preciso gritar nas ruas a verdade de quem viveu e vive sob os mandos e desmandos de uma elite vampiresca que não se contenta com pouco e é fundamentalmente antipopular e antidemocrática. São tempos sombrios; mas é na escuridão do firmamento que mais forte brilham as estrelas que nos inspiram. Vamos em frente!

 

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

 

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.