Todo regime político precisa de uma correlação de forças que o sustente, na qual os sujeitos, os partidos e uma maioria absoluta dos componentes políticos de uma sociedade o aceitam e legitimam. As tensões entre as forças precisam estar dentro das regras daquele regime para que as disputas pelo poder não o destruam.

É o caso do Brasil nesta crise, a jovem democracia mais uma vez é solapada pela ruptura do Pacto Republicano. Talvez o objetivo principal nunca fora prejudicar o regime democrático, mas por diversos e difusos interesses unificados pontualmente não era suportável mais um governo Dilma. A ponto de, na necessidade de impedir a conclusão do governo e uma possível sucessão, comprometer instituições e normas jurídicas.

O preço foi alto, e até isso se volta a favor do golpe. Afirmar que encerramos um ciclo na democracia brasileira parece coisa de petralha ou comunista, soa como exagerado. Mas a verdade é que a democracia no Brasil, mesmo a liberal, é composta por curtos ciclos, e tais são diretamente relacionados com a inserção internacional da América Latina. Há um tempo social comum na história da região, determinado pelas Relações Internacionais.

O fim da colonização, do tráfico negreiro, as independências, as formações republicanas, a inserção subordinada e dependente no capitalismo mundial, as ditaduras civil-militares, as reaberturas políticas seguidas das aberturas econômicas para a ordem global liberal. São processos sociais que estão longe de ser homogêneos na América Latina, mas que têm o mesmo momento histórico determinado invariavelmente por mudanças na ordem internacional. Para cada fenômeno acima é possível estabelecer uma relação direta com mudanças na Europa ou nos Estados Unidos.

Nesta crise política não é diferente. A priori, as variáveis para o desfecho do processo de impeachment parecem majoritariamente nacionais. Dependem da pressão da sociedade brasileira, altamente influenciada e conduzida pela grande mídia, que age de forma combinada com as ações do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da União e da Polícia Federal. Conta-se com uma posição seletiva do poder Judiciário e permite-se aos partidos de oposição formarem uma nova maioria.

Neste processo, o Direito, a imparcialidade da mídia e da Justiça vão sendo manipulados num jogo difuso, mas seletivo, e que busca construir uma narrativa que legitime um governo favorável a mudanças econômicas. E justamente aí entram as Relações Internacionais. Quando as orientações do governo interino começam a se materializar, fica evidente que o problema central de tudo é o lugar do Brasil no mundo, e seu correlato papel para o realinhamento da América Latina na ordem internacional.

Trata-se de um processo complexo, que mobiliza várias instituições, ao mesmo tempo, cada um com seu papel no jogo. A ponto que fica difícil identificar um planejamento central orientador. Muito além do ajuste fiscal, há uma coalizão ideológica formada com o temeroso governo golpista fundada em uma aliança entre pautas políticas conservadoras nacionais e econômicas liberais internacionais.

Na construção do golpe já havia tal intersecção: o financiamento internacional que permitiu a organização do MBL e de novas lideranças e resultou depois em uma mobilização de massas organizadas pela direita; a cooperação internacional entre a PF, o MP e o FBI na busca de informações nos EUA e na Suíça para alimentar a Operação Lava Jato e suas correlatas; o monitoramento da NSA sobre o governo brasileiro e os dirigentes da Petrobras no período de definição do marco regulatório da exploração do pré-sal; a campanha internacional do mercado e da mídia especializada contra o ex-ministro Guido Mantega visando atacar a mudança da política econômica no final do primeiro governo Dilma; ataque à formação dos BRICS enquanto bloco de poder anti-hegemônico, que ameaçaria o papel do dólar. Todos esses pontos estão refletidos nas políticas externa e econômica do governo Temer.

Muitas análises internacionais já apontavam que o fracasso da geopolítica do petróleo dos EUA obrigaria à reorganização da política externa norte-americana, e um dos efeitos seria mudar o grau de importância da América Latina nesse realinhamento. As diversas tentativas de intervenção internacional na Venezuela ajudaram a aprofundar sua crise econômica e política. Há também a estranha coincidência entre a passagem da diplomata Liliana Ayalde pelas embaixadas dos EUA em Honduras, Paraguai e Brasil nos mesmos períodos em que esses países se viram em crises políticas que foram concluídas com a abrupta troca dos presidentes.

A posteriori, percebe-se que esses três países apresentam um padrão que indica um novo tipo de intervenção norte-americana no continente: golpes jurídicos e institucionais produzidos de maneira difusa utilizando setores do próprio Estado; legitimados a partir de campanhas de mobilização da opinião pública contra os governos nacionais; apoiados em denúncias morais que visam desgastar as imagens dos governantes junto à sociedade civil; e desarticulando as coalizões políticas que compunham sua governabilidade.

A impressão deixada é de que forças nacionais se mobilizaram para troca de governo, como se a sociedade estivesse cansada da corrupção da esquerda. A crise financeira internacional, ao atingir os países latinos, foi narrada como resultado desse processo de corrupção e a piora da qualidade de vida oriunda da crise foi apresentada como resultado de corrupção e incompetência. Isso ocorreu na Bolívia e na Argentina também, mesmo com a diferença no desfecho dos processos políticos, o resultado final foi a derrota dos governos progressistas.

A motivação dessa nova modalidade de intervenções, criadora de um novo momento histórico comum à América Latina, funda-se na necessidade de reestruturação do capitalismo global no pós-crise de 2008. Três grandes fatores são fundamentais para tal:

1) A inserção internacional econômica da região sempre foi organizada a partir da superexploração do trabalho, a distribuição de renda e o crescimento da massa salarial são vistos pelo capital nacional e internacional como aumento de custos de produção. É preciso flexibilizar a legislação trabalhista e eliminar direitos sociais.

2) A transferência internacional histórica de renda em forma de recursos naturais de baixo custo define a participação latino-americana na divisão internacional do trabalho. Nesta conta estão o pré-sal, o aquífero Guarani, a floresta amazônica e todos os minérios da região.

3) O desmonte dos serviços e políticas públicas que caracterizam o novo modelo de Estado que se articulava com base na planificação da economia, na presença pública nos investimentos, em programas de distribuição de renda e ampliação do acesso à educação e infraestrutura urbana, são percebidos como encarecimento da máquina pública que exigem a diminuição do envio de renda para fora.

Assim, o que está em jogo é o lugar da América Latina no mundo. Nada de fim da estrutura centro e periferia ou de autonomia política, voltamos ao bom e velho desenvolvimento associado e dependente.

Sérgio Godoy é Professor de História das Relações Internacionais da Fundação Santo André, Coordenador Pedagógico da Escola Livre de Formação Integral “Dona Lindu”, do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e Doutorando no Programa de Ciências Humanas e Sociais da UFABC. Membro do GR-RI.

Publicado em Brasil no Mundo