Gaston-Granger (1920-2016), que ajudou a fundar o departamento de Filosofia da USP nos anos 1940, tinha larga tradição de colaboração com pesquisadores brasileiros. Assim como os mestres na história da ciência Michel Paty e David Bohm (1917-1992), outros que tiveram passagens e ligações com essa grande universidade paulista.

Interessa assinalar que um grande mestre e incentivador desse pensador foi Jean Cavaillès (1903-1944), matemático e também filósofo da ciência, cuja militância política valorosa na resistência francesa (Libération) lhe custou a vida, tirada num fuzilamento pela Gestapo nazista. Aliás, outro grande filósofo, Georges Canguilhem (1904-1995), disse a respeito dessa trajetória de Cavaillès: “Um filósofo-matemático carregado com explosivos, lúcido e imprudente, resoluto, sem otimismo. Se isso não é um herói, o que é um herói?”

Gilles Gaston-Granger

Cientista de ideias muito avançadas

Focando aqui aspectos restritos de seu pensamento, Gaston-Granger – igualmente discípulo do famoso epistemólogo Gaston de Bachelar (1884-1962) -, considerava que três traços centrais deveriam ser exigidos no escopo da ideia de que a ciência se presenta como representação do real. Dissertou ele em “A ciência e as ciências” (Unesp, 1994[1993]):

1.A ciência é uma visão de realidade (“a criação científica é nesse sentido, uma espécie de poesia”; porque respeita à produção de conceitos); 2. ela visa objetos para descrever e explicar, não diretamente para agir (“a busca do saber pelo cientista é um trabalho intenso, mas também um jogo”); 3. Uma visão científica do conhecimento se preocupa constantemente com o critério de validação [seu] (“A verificação de um fato científico depende, pois, de uma interpretação, mas de uma interpretação ordenada, no interior de uma teoria explícita”).

Conforme ainda Gaston-Granger – e numa rara e corajosa afirmação epistêmica -, “Seria inaceitável recusar integrar a história sob suas diversas formas nas ciências humanas”, liquidando, num fecundo quadro de ressalvas, a falsa polarização entre as ciências naturais das humanas (idem, pp. 45-51; 85-6).

Matéria e consciência

É como se intitula o oitavo capítulo de “O irracional” (Unesp, 2002 [1998]), do filósofo francês. Lá se pode encontrar uma crítica profunda às ideias irracionalistas, como por exemplo as que consideram que a consciência do observador exerce sobre o fenômeno físico observado – exemplificado no interminável debate sobre a trajetória das partículas durante experiências físicas, especialmente com aceleradores.

Afinal, o curso realizado por partículas atômicas ou subatômicas dependem ou não de quem as observam? Gaston-Granger aponta que tais pontos de vista se propõem a preencher a lacuna da causalidade dos fenômenos por uma ação do pensamento (pp. 233-4).

Em última instância e após examinar vários autores sobre as características e argumentações que se enroscam até o irracionalismo, ele lembra que os romances de ficção científica usam até dados científicos, apresentando às vezes raciocínios idênticos em forma e premissas, mas descartando-se de suas “constrições”. Ora, enquanto esses “conservam como barreiras contra adesão ao misticismo, os romancistas de ficção científica só utilizam o pensamento científico como instrumento de acesso ao imaginário futuro e ao estranho” (p.247).

Filosofia da ciência

Segundo Gaston-Granger (“Filosofia, linguagem, ciência”, Ideias & Letras, 2013 [2003]), uma filosofia da ciência “não deve ser confundida” nem com uma ciência, nem com uma ideologia da ciência. Uma, se reduz a descrever a ciência como um fato psicológico e social de quem se deveria “descobrir eventualmente as leis”; a segunda, apresenta explicitamente ou de modo latente, “uma imagem e um mito voluntarista da ciência”.

Porque, para Gaston-Granger, a filosofia da ciência se esforça por descrever e organizar conceitualmente a significação da ciência (não deixa de lado a visão normativa, mas de modo “frágil”).

Assim, o objetivo do conhecimento científico – a ciência como projeto transcendental, fato antropológico e percebida distintamente por civilizações – é tarefa do filósofo descobrir, correndo-se sempre o risco, natural, de interpretá-lo mal e deslizar de uma filosofia para uma ideologia da ciência, risco este – ironiza Gaston-Granger –“que não pretendo, claro, deixar de correr” (pp. 205-6; 215-216).