Para a reconstrução do materialismo histórico (1976), o mais recente lançamento da coleção Habermas, reúne artigos publicados na primeira metade da década de 1970.1 Em sua heterogeneidade conceitual e temática torna visível, de certo modo, as trilhas, desvios, atalhos e ladeiras que conduziram a uma inflexão em sua obra, geralmente descrita como a passagem do “primeiro” para o “segundo” Habermas.

No fecho dessa guinada – concluída com a publicação em 1981 de Teoria do agir comunicativo, e com as doze conferências de O discurso filosófico da modernidade (1985) –, Jürgen Habermas dialoga ainda, embora apenas parcialmente, com o corpus da Teoria Crítica, sobretudo quando se considera sua tentativa de delinear um diagnóstico e um prognóstico do capitalismo nos moldes da teoria social marxista. Passa a incorporar, entretanto, no cerne de seu pensamento, temas, métodos e conceitos característicos de linhagens que a Teoria Crítica até então combatera com veemência como o pragmatismo, a fenomenologia heideggeriana e a filosofia analítica.

Esse descolamento da tradição marxista se deve, em grande medida, à incorporação do moderno modelo das ciências experimentais e da moral – concebido no registro idealizado por Max Weber – de esferas que assentam seus desdobramentos apenas na lógica imanente de seus procedimentos. Os antecessores de Habermas na Escola de Frankfurt – Horkheimer, Marcuse, Benjamin e Adorno – opuseram-se firmemente à concepção weberiana de racionalidade, acusando-a de obscurecer a determinação crítica dos fins.

Na introdução do livro, Habermas justifica a utilização de “reconstrução” por se tratar de uma elaboração na qual “uma teoria é decomposta e recomposta em uma nova forma para que assim possa atingir o fim que ela mesma se pôs: esse é um modo normal de se relacionar com uma teoria que, sob diversos aspectos, precisa de uma revisão, mas cujo potencial de estímulo (ainda) não se esgotou”.2 Descarta “restauração” alegando que seu interesse não é dogmático, nem histórico-filológico (estando, portanto, distante de um programa de retorno a uma posição inicial, corrompida pela temporalidade). Tampouco corrobora o uso de “renascimento”, pois considera que apesar de suas vicissitudes o marxismo não se encontra numa situação compatível com a ideia de “renovação de uma tradição soterrada”.

Lidos hoje – num cenário em que não cabe desconsiderar sua inflexão posterior ­–, a maioria dos artigos coligidos estão nitidamente mais próximos da rota de uma reconfiguração da Teoria Crítica. O próprio Habermas aponta que, além de redimensionar o materialismo histórico como uma teoria da evolução social (na direção de um projeto não inteiramente coincidente com o de Marx e Engels), conviria “seguir os programas de investigação sugeridos por Freud, Mead, Piaget e Chomsky”.3

O que permite apresentar Para a reconstrução do materialismo histórico como uma obra de transição, no entanto, para além do tatear inerente a quem ainda não vislumbra seu ponto de chegada, é o fato de que alguns artigos seguem o padrão instaurado pelo paradigma de investigação característico da linhagem marxista, em especial por sua vertente dita “ocidental”.

É o caso, por exemplo, do ensaio “O papel da filosofia no marxismo”. Nesse texto, Habermas retoma a discussão sobre o caráter da teoria de Marx e Engels encetada num artigo de Teoria e práxis, significativamente intitulado “Entre filosofia e ciência: o marxismo como crítica”. Sua preocupação aqui, entretanto, é mais restrita: trata-se de determinar o estatuto da filosofia nessa doutrina.

Convém, todavia, antes de comentar a posição de Habermas, resgatar, ainda que brevemente, parte do itinerário dessa questão nos quadros do “marxismo ocidental”.

O livro pioneiro de Karl Kosch, Marxismo e filosofia (1923), ao se debruçar sobre a relação entre esses dois termos não se contenta com a observação de que marxismo e filosofia sempre andaram juntos. Tampouco lhe parece suficiente o propósito de substituir o materialismo mecanicista – associado erroneamente à obra de Marx e Engels pela maioria de seus continuadores no âmbito da Segunda e da Terceira Internacionais – por outra fundamentação filosófica.4 Afinal, o mero repúdio ao positivismo, o seu descarte enquanto personificação do pensamento burguês, deixa intocado um ponto crucial: como evitar a desconfiança, comum nas hostes marxistas, de que toda e qualquer filosofia não passa de pura ideologia?

Essa suspeita alicerça-se no conjunto de críticas que Marx, no decorrer de sua obra, especialmente durante a década de 1840, endereça à filosofia. Seu combate contra a filosofia alemã, no qual concede prioridade à crítica de Hegel e dos pós-hegelianos, culmina como se sabe, com uma completa separação entre sua démarche e a filosofia, expressa de forma brutal na décima primeira tese sobre Feuerbach – “Os filósofos apenas interpretaram o mundo sob diferentes formas, o que importa é transformá-lo”.5

Korsch não elude essa questão. Segundo ele, o mote do jovem Marx que propõe “superar a filosofia” não pode ser compreendido como uma simples mudança de terminologia. Não se trata, tampouco, de uma indicação do propósito de substituí-la por um sistema concatenado de ciências positivas. Korsch considera assim “… indispensável adotar como ponto de partida as declarações de Marx e de Engels, nas quais afirmam, inequivocamente, que a superação (Aufhebung) não apenas da filosofia idealista burguesa, mas, ao mesmo tempo, da filosofia em geral, é uma consequência necessária da sua nova perspectiva materialista dialética”.6

Desenvolvendo a reflexão no terreno mais geral das relações entre os elementos da superestrutura e as condições materiais de produção, Korsch associa a questão “marxismo e filosofia” à controvérsia, retomada então por Lênin, acerca da conexão entre “marxismo e Estado”. Uma vez que tanto o Estado como a filosofia situam-se no patamar da “superestrutura”, Korsch não vê dificuldade em referendar a interpretação de O Estado e a revolução. Salienta assim que a necessidade da filosofia só cessa com o fim do Estado. Enquanto isso não ocorre, ela subsiste não apenas como arma de combate no debate intelectual mas também porque só pode vir a ser superada e suprimida por meio de uma transformação completa da sociedade existente.7

Marxismo e filosofia procura fundamentar a compreensão dos desdobramentos da doutrina marxista tanto em uma perspectiva teórica como em função de sua atividade prática. Nessa direção, afirma a existência de um vínculo entre essa teoria e a filosofia do idealismo alemão, por meio de um paralelismo que, considerando-os como etapas de uma mesma sequência histórica, vai além da proposição que apresenta o marxismo como uma herança da filosofia idealista alemã. Assim, para Korsch,

“… o sistema marxista, expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, deve manter com os sistemas da filosofia idealista alemã, no plano ideológico, as mesmas relações que o movimento revolucionário do proletariado mantém, no plano da práxis social e política, com o movimento revolucionário burguês.”8
Além disso, segundo Korsch, uma vez que o conteúdo conceitual da filosofia está presente mesmo nas ciências positivas e na prática social, essa não pode ser dissociada do legado marxista. Recusa, assim, a concepção prevalecente no âmbito do marxismo tradicional que, seguindo a sistematização proposta pelo último Engels, atribui a cada ciência a elaboração de sua própria dialética, sem conceder à filosofia sequer o papel de fonte original do método.

O diagnóstico apresentado por Engels, em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, é peremptório: a teoria marxista da história põe fim à filosofia. Assim, “expulsa da natureza e da história, só resta à filosofia um único refúgio, o reino do pensamento puro, no que dele ainda está de pé, a doutrina das leis do próprio processo do pensamento, a lógica e a dialética”.9

A tentativa de Engels de reduzir a filosofia a uma ciência particular ocupada unicamente com as regras do raciocínio, efetivou-se, sustenta Korsch, na ortodoxia marxista da socialdemocracia. Essa versão do “socialismo científico” teria conduzido à supressão da filosofia por um sistema de ciências positivas e não-dialéticas, que rebaixaram o marxismo a uma teoria das formas evolutivas da sociedade, convertendo-o em uma pura soma de conhecimentos científicos.

Maurice Merleau-Ponty complementa a análise de Korsch acrescentando que a influência do Engels de Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã – lida de modo ambíguo em outro registro, no qual a filosofia ocupa a primazia – também pontificou na ortodoxia da Internacional Comunista:

“A gnoseologia de Lênin torna a dialética um fundamento absoluto no ser ou no objeto puro e retorna, assim, não somente para aquém do jovem Marx, mas para aquém de Hegel. Daí o ecletismo comunista, este pensamento sem franquia (franchise) e que não se percebe bem, essa mistura instável de hegelianismo e cientificismo, que permite à ortodoxia rejeitar em nome de princípios ‘filosóficos’ tudo aquilo que as ciências humanas tentaram dizer desde Engels, e de no entanto responder ‘socialismo científico’ quando se fala de filosofia.”10
Pode-se dizer então que, contra o marxismo vulgar que pretende suprimir, sem mais, a filosofia (concebendo-a como pura ideologia), Korsch busca reestabelecer alguns dos princípios fundamentais do materialismo dialético. Reafirma, em especial, a teoria segundo a qual as formações espirituais devem ser concebidas teoricamente e tratadas, na prática, como realidades sociais.

Acredita que assim não só se inocula uma vacina contra as tentativas de supressão das formas de consciência por meio de meros atos do pensamento, como também se concede à filosofia e às demais formas da superestrutura um tratamento que as elevam à condição de elemento material do conjunto da realidade histórica. Nessa direção, segundo Korsch, as representações econômicas, políticas e jurídicas

“… apenas exprimem, à sua maneira particular, o todo da sociedade burguesa, como o fazem, igualmente, a arte, a religião e a filosofia. Constituem todas, em conjunto, aestrutura espiritual da sociedade burguesa, que corresponde à sua estrutura econômica, do mesmo modo que, sobre esta estrutura econômica, se ergue a superestrutura jurídica e política desta sociedade.”11
Em Para a reconstrução do materialismo histórico, essa questão, a localização da filosofia na teoria marxista, é reduzida, em termos drásticos, à seguinte indagação: “a filosofia é força produtiva ou falsa consciência?”12

Na busca de uma resposta a essa indagação, o primeiro movimento de Habermas consiste em promover uma reavaliação da produção cultural, à luz das modificações sofridas pela cultura burguesa no âmbito do capitalismo avançado. Desenvolve assim um quadro bastante distinto daquele elaborado na obra de Marx.

Numa interpretação não heterodoxa, o esquema de Marx situaria a moral e religião como fontes cristalinas de falsa consciência e, no polo oposto, a ciência e a técnica como puro potencial produtivo. Já a arte e a filosofia possibilitariam, nas palavras de Habermas, a “… reflexão da falsa consciência e a reconstrução de seu conteúdo racional (embora expresso em forma invertida)”.13

Habermas sustenta que o desenvolvimento histórico, mesmo como um processo interno ao capitalismo, teria promovido uma alteração de tal monta que conviria atualizar o marxismo implementando uma modificação radical nesse esquema. Seria necessário efetivar a seguinte inversão: a religião e a moral perdem – juntamente com a queda de sua influência – suas funções ideológicas, sendo substituídas, enquanto forças legitimadoras, pela técnica e pela ciência.14

Diante dessa mutação, o panorama atual indicaria, segundo Habermas, que a tarefa prioritária da filosofia consiste em opor o potencial da reflexão crítica a toda forma de “objetivismo”. Nesse diapasão, a filosofia ainda é imprescindível para a perspectiva prática de realização de uma sociedade racional.

Uma vez que no processo de transição ao socialismo convém manter o esforço de preservação das forças produtivas, procurando liberá-las das contradições que impedem seu amplo desenvolvimento, cabe considerar a filosofia, por conseguinte, como parte integrante das forças produtivas.

Assim, o mote do jovem Marx que coloca como tarefa a “realização da filosofia” deixa de sinalizar sua supressão, passando a significar, mais propriamente a necessidade de apropriar-se do potencial produtivo da tradição filosófica.

Seguindo essa linha argumentativa, o jovem Habermas aproxima, portanto, marxismo e filosofia:

“Enquanto compreendamos por filosofia sempe a forma mais radical de autoreflexão que é possível em uma época, as abordagens teóricas de um marxismo não dogmático certamente também serão filosofia.”15

NOTAS

1 Trata-se da primeira tradução integral do livro. A edição anterior, publicada pela editora Brasiliense, em 1983, continha apenas parte do conteúdo.
2 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 25.
3HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 27.
4 No início de Marxismo e filosofia, Korsch ironiza “… os vários tipos de socialistas ‘filosofantes’, que se colocavam como tarefa ‘completar’ o sistema marxista recorrendo à sua cultura filosófica ou extraindo elementos da filosofia de Kant, Dietzgen, Mach e outros mais. Se esses socialistas consideravam que o sistema marxista necessitava de um complemento filosófico, revelavam que também para eles o marxismo, em si, estava desprovido de conteúdo filosófico (p. 25).
5 MARX, Karl. “Teses sobre Feurbach”, p. 35.
6 KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia, p. 34.
7 Trata-se obviamente de uma explicação bastante original do dístico do jovem Marx – “é impossível superar a filosofia sem a realizar” (“Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”, p. 150). Esse projeto de realização da filosofia, como lembra Paulo Arantes (Ressentimento da dialética, p. 371-87), a passagem da anamnésia (Erinnerung) à prognose, é um dos pontos centrais do programa jovem-hegeliano. Acerca da relação entre a esquerda hegeliana e o marxismo ocidental cf. tb. ADORNO, Theodor. Dialética negativa, p. 125-126.
8 KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia, p. 34.
9 ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, p. 116.
10 MERLEAU-PONTY, Maurice. Les aventures de la dialectique, p. 89.
11 KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia, p. 63.
12 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 83.
13 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 83.
14 Cf. HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 85-88 e tb. HABERMAS, Jürgen. “Técnica e ciência enquanto “ideologia”, p. 327-333.
15 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 92.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética. São Paulo, Paz e Terra, 1996
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: Textos, vol.1. São Paulo, Edições Sociais, 1977.
HABERMAS, Jürgen. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”. In: Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo, Unesp, 2016.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Vol. 1: Racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2012.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Vol. 2: Sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2012..
HABERMAS, Jürgen. “Teoria e práxis”. Estudos de filosofia social. São Paulo, Unesp, 2013.
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro, UFRJ, 2008.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução. São Paulo, Hucitec, 1986.
MARX, Karl. “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução”. In: Crítica da filosofia do direito de Hegel.145-156. São Paulo, Boitempo, 2005.
MARX, Karl. “Teses sobre Feurbach”. In: LABICA, Georges. As Teses sobre Feuerbach de Karl Marx. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990..
MERLEAU-PONTY, Maurice. Les aventures de la dialectique. Paris, Gallimard, 1955..

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Elyeser Szturm é artista plástico. Professor da UnB e doutor em artes visuais pela Université de Paris VIII. Ganhou o Prêmio de viagem ao exterior do XVI Salão Nacional da Funarte e o VII Salão da Bahia. Participou da Bienal 50 Anos, da 25a. Bienal de São Paulo, das mostras Território Expandido 3 e Faxinal das Artes, entre outras. A partir de hoje, passa a ilustrar a coluna mensal de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.

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