Antes de mais nada não rola tentar me intrigar com o Sakamoto por conta deste texto. Se o cito de forma clara é porque tem meu respeito e carinho. Ontem ele publicou em seu blogue um artigo onde faz ponderações endereçadas a um grupo que denuncia “supostos interesses econômicos internacionais e políticos nacionais por trás da operação” carne fraca.

E inicia sua argumentação dizendo que “não é de hoje que o setor de produção de proteína animal, por sua natureza, influência política e forma de atuação, tem causado trabalho análogo ao de escravo, superexploração e morte de operários em unidades de processamentos, violência contra populações tradicionais, crimes ambientais, roubo de terras públicas, contaminação de reservas de água, sofrimento desnecessário de animais.”

Ele tem razão. E isso tanto é verdade que algumas centenas de milhares de pessoas no Brasil já denunciam esses crimes há algumas décadas. Tanto na cadeia de produção de carnes e derivados, como em tantas outras onde as relações ignoram legislações e em muitos casos direitos humanos básicos.

Desde 1980, por exemplo, o Departamento Intersindical de Saúde do Trabalhador, o Diesat, faz estudos que buscam trazer à luz questões desta natureza. A entidade sempre teve problemas de financiamento, porque é fato que essa é uma questão que não é prioridade do movimento sindical brasileiro. Mas também é verdade que a luta por melhores condições de trabalho passou a fazer parte de quase todas as pautas de reivindicações de categorias nas últimas décadas. E quem conhece a história do mundo do trabalho no Brasil não ignora que essas condições já foram muito, mas muito mesmo, piores em praticamente todos os setores do que são hoje.

E isso não tem a ver com dádiva e nem tão pouco apenas com fiscalização, porque no Brasil o número de fiscais do trabalho é ínfimo.

Isso tem muito a ver com a conscientização dos sindicalistas e dos próprios trabalhadores, mas também com as condições da economia. Em momentos de maior desemprego os empregadores aproveitam não só para cortar salários, mas também para fazer com que direitos de todos os tipos sejam eliminados.

E isso não é algo nacional. É da lógica do próprio capitalismo. No setor do frango, no automobilístico ou de supermercados. Há inúmeras denúncias de abusos trabalhistas, por exemplo, contra empresas como Wall Mart, Mcdonalds, Hyundai, Nissan, entre outras. O McDonald´s, por exemplo, tinha uma tal de jornada móvel variável (sinceramente não sei se continua tendo) que levava seus trabalhadores a irem ao local do emprego para ficarem esperando se teriam ou não de trabalhar. Se trabalhassem ganhavam, caso não, voltavam pra casa com o bolso vazio.

Aonde quero chegar com esse raciocínio. É justo e nobre fazer a defesa das condições de trabalho de todas as categorias. E o Sakamoto é um do que faz isso de maneira séria e responsável com a ONG que criou, a Repórter Brasil.

Mas dizer que quem discorda da forma como foi realizada a operação Carne Fraca da PF está dando um tapa nos trabalhadores é de um exagero sem fim. É, com todo carinho, forçar a barra.

O setor de produção de carnes e derivados brasileiros é filho dos vícios da  sanha do capitalismo nacional e internacional. Ele não é nem melhor nem pior do que outros. E se for dragado pela forma espetacular como a PF conduziu esta operação, o que acontecerá será exatamente o inverso. As condições de trabalho neste setor e em outros vão piorar. Por que haverá um número maior de desempregados e de pessoas à disposição para ganhar mal e trabalhar em condições ainda menos salubres. É assim que funciona. Em geral, quanto mais desenvolvido o país, melhores salários e mais direitos.

Mas isso significa que a defesa que se está fazendo então é da Friboi, da JBS ou de qualquer outro frigorífico? Ou ainda que essas ponderações têm a ver com levar a pecuária para dentro da Amazônia? Ou que ao se ponderar isso estamos defendendo (pelo menos no meu caso) o modelo de desenvolvimento verde-oliva, onde vale tudo em nome do crescimento nacional? Evidente que não.

É preciso denunciar a invasão de terras indígenas, a grilagem, os assassinatos no campo, que tem relação com quase todas as cadeias produtivas da área rural. Ou a da soja é diferente da do milho e da carne? São mais bonzinhos os empresários do setor sucroalcooleiro?

As empresas norte-americanas, como a Tyson, ou australianas que vão ganhar o mercado nacional e internacional se BrF ou JBS sumirem do mapa vão ser mais éticas do que elas?

Não me parece que há respostas simples para essas perguntas nem que não devemos fazer nada para que isso continue do jeito que está.

Ou seja, se o bater continência às práticas selvagens desses grupos é conciliar com seus crimes, fazer de conta que destruindo esses empregos no Brasil vamos melhorar o problema no mundo é um tanto quanto sonhático demais da conta.

E tenho certeza que uma boa parte daqueles que se dispõe a denunciar que a operação Carne Fraca foi conduzida de forma irresponsável e exacerbadamente midiática, não está fechando os olhos para esses problemas. Esta, porém, chamando a atenção para a forma como a PF vem se comportando no Brasil.

E neste momento quem sentiu o golpe deste descontrole foram empresários vorazes. Que são corruptos, como se pode ver pelas denúncias. Porque se há dúvidas do tal papelão na carne, o que parece ter sido um erro bizarro de interpretação dos delegados, não há nenhuma de que havia um propinoduto funcionando para agilizar processos e facilitar irregularidades.

Mas não são sempre empresários vorazes e corruptos que sentem a mão pesada dos aparelhos policias do Estado.

Esse monstro que foi criado no vácuo da política está enterrando não só a economia do país como em boa medida a sua democracia. A justiça brasileira e os aparelhos policiais têm agido na base da espetacularização, do pré-julgamento e da exceção. O que antes era “privilégio” das periferias, passou a ser regra geral. E isso não é algo a ser comemorado como alguns que se acham de esquerda fazem. Se permitimos que o Estado de Exceção avançasse, o que fica claro é que estamos perdendo essa luta. Não ao contrário.

A quantidade de policiais e promotores eleitos para o próximo Congresso e Assembleias Legislativas será muito maior do que nesta legislatura. E o domínio da política por este setor que já não é pequeno ainda será maior.

Sim, isso tem a ver com não discutir de forma séria a forma como operações como essa da Carne Fraca são conduzidas, porque o nosso moralismo acha que ao final, se há crime, vale meio que tudo.

Nas democracias não deve ser assim.

Por um lado, não será demolindo cadeias produtivas no Brasil que vamos civilizar o capital e garantir melhores condições de vida e trabalho para quem labuta aqui ou lá fora. E por outro não será entregando a democracia ao sistema policial que vamos acabar com as injustiças e a corrupção. O caminho, como tenho certeza que o Sakamoto sabe, é muito mais complexo e delicado.

Por isso mesmo, não há traição e nem tapa na cara ou em qualquer parte do corpo de quem quer que seja quando se debate um assunto ponderando suas consequências. Levar para o plano moral, discussões que são de outra ordem é o pior caminho para não se chegar a lugar nenhum. Por isso, sem trocadilho, gostaria de recomendar aos mais empolgados com a operação Carne Fraca, que neste caso um pouco de paciência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Não há traição e nem heroísmo de quem quer que seja ao defender a justeza ou o exagero desta operação. Há posições e interpretações distintas sobre as consequências do episódio. E como sempre, o tempo, este canalha, será o senhor da razão.