Neste ano de 2017, duas comemorações – aliás, intimamente vinculadas – estão polarizando, em todo o mundo, os círculos intelectuais e políticos: a mais importante delas, sem dúvidas, refere-se à passagem dos cem anos da Revolução de Outubro, evento de significação histórico-universal; ao seu lado, comemora-se o sesquicentenário da publicação do livro I d’O capital, pedra angular de uma das maiores elaborações teóricas da modernidade.

A relevância dos debates próprios a tais comemorações, com seus traços celebratórios e/ou críticos (e será excelente se se combinarem adequadamente uns com outros), com certeza deixará na sombra outras evocações que, seguramente merecedoras de ressonância, obviamente perdem peso diante do impacto do Outubro russo e da importância do legado científico de Marx. Pois é exatamente para uma dessas outras evocações que me permito chamar a atenção do eventual leitor: em 2017, também decorre o centenário de nascimento de Tran Duc Thao.

Tran Duc Thao, um filósofo vietnamita pouco conhecido entre nós (ao que me consta, dele só se traduziu ao português o livro, publicado em francês em 1973, Estudos sobre a origem da consciência e da linguagem, pela editora Estampa, de Lisboa em 1974), nasceu em 1917, em Hanoi, no que então era a Indochina Francesa, e faleceu em Paris, em 1993. A análise da vida e da obra de Thao revelam uma personalidade singular, de trajetória significativa, e um pensador original.*

Concluídos os seus estudos fundamentais num liceu francês de Hanoi, Thao ganha uma bolsa de estudos (1936) para preparar-se, em Paris, para ingressar na respeitadíssima École Normale Supérieure, o que se dá em 1939. Com a invasão da França pelas hordas de Hitler, ele se transfere para Clermont-Ferrand, onde inicia seus estudos sobre Husserl. Ao fim da guerra, torna-se pesquisador vinculado ao Centre National de la Recherche Scientifique/CNRS e estagia em Louvain, onde, ao lado de M. Merleau-Ponty, tem acesso ao acervo de Husserl. Durante a guerra, ele se politiza rapidamente: aproxima-se do Partido Comunista Francês e vincula-se organicamente ao movimento de apoio à luta pela independência do Vietnã, tornando-se um dos seus representantes no exterior (o que lhe custa um breve período de prisão (setembro/dezembro de 1945, na mal famosa La Santé).

Na França liberta, Thao vai dedicar-se a uma dupla tarefa: avançar nos seus estudos filosóficos e combater na frente anticolonialista. São emblemáticos desses esforços os ensaios que então publica, no imediato pós-guerra (1946): “Marxismo e fenomenologia”, na Révue Internationale (parte de um debate sobre marxismo e existencialismo, do qual participaram também P. Naville e M. Merleau-Ponty, a quem ele esteve próximo) e “Sobre a Indochina”, em Les Temps Modernes.

A militância anticolonialista não impede, antes estimula, a sua reflexão filosófica. Ele empreende uma leitura crítica e sistemática da obra de Husserl, sob a ótica de um marxismo claramente antidogmático, marcado por fortes influxos hegelianos (Thao desenvolve uma interpretação de Hegel que se contrapõe àquela que então se divulga na França, elaborada por A. Kojève). De fato, na segunda metade dos anos 1940, nos cursos que oferece na École Normale Supérieure (a que assistiu o jovem Althusser), Thao se empenha em operar uma recuperação da fenomenologia husserliana para um marxismo sem vieses positivistas. Ao mesmo tempo em que Sartre indicava a necessidade do marxismo incorporar o existencialismo (e a contribuição fenomenológica), Thao sustentava a necessidade de a fenomenologia superar suas contradições e impasses incorporando as conquistas do materialismo dialético. É desse esforço criativo e original que resultará a sua primeira obra importante, Fenomenologia e materialismo dialético, de 1951 (reedição recente pela editora Delga de Paris em 2012) – na sua primeira parte, o livro apresenta uma exposição crítica até hoje considerada exemplar do pensamento de Husserl; na segunda parte, Thao demonstra que é sobre os fundamentos do materialismo dialético que os problemas postos pela reflexão de Husserl podem encontrar soluções adequadas.

A obra impactou teóricos que haveriam de influir com força na intelectualidade francesa (L. Althusser, J. Derrida, P. Bourdieu, P. Ricoeur) – mas Thao não se valeu do prestígio que ela lhe conferia para prosseguir no que se afigurava uma exitosa carreira acadêmica. Sua opção foi retornar ao Vietnã que, sob a liderança de Ho Chi Min (com quem se encontrara em 1946), lutava por sua independência e pelo erguimento de uma nova sociedade. Em 1951, Thao regressa a Hanoi – e ficará em seu país até 1991.

De 1951 a 1954, o refinado filósofo deixa a vida acadêmica: contribui prática e diretamente com o projeto comunista do “tio Ho”, sendo um ativista da reforma agrária, trabalhando nos campos como um militante de base. Só retorna à universidade (Hanoi) em 1954: primeiro, cabe-lhe uma cátedra de História Antiga e, depois, uma de História da Filosofia; em 1956, assume a decania da Faculdade de História, de que logo será demitido.

No segundo semestre de 1956, no marco de um efervescente movimento de renovação ideológica no Vietnã, Thao publica dois ensaios (“Conteúdo social e formas de liberdade” e “Esforcemo-nos para desenvolver as liberdades e a democracia”), que criticam a burocratização do regime e os erros cometidos no processo da reforma agrária. Enorme pressão ideológica gera uma campanha contra ele, acusado quer de “seu passado trotskista” (no início dos anos 1940, no seu processo de aproximação ao PCF, teve ligações com intelectuais trotskistas), quer de “revisionismo”. Em junho de 1957, o Comitê Central do partido de Ho Chi Min qualifica-o como “inimigo da pátria e do socialismo”. Thao, em maio de 1958, faz uma autocrítica pública – mas o partido não a considera suficiente e ele é obrigado a recolher-se no que alguns biógrafos designaram como “um longo exílio no interior do país”.

Isolado, consegue sobreviver traduzindo textos de clássicos do marxismo, mas praticamente sem contatos com o mundo cultural e com o Ocidente. Eventualmente, as autoridades vietnamitas lhe permitem publicar uns poucos textos em revistas comunistas francesas (La Pensée, La Nouvelle Critique). Mas sabe-se que ele prossegue suas pesquisas, reexaminando a relação Marx-Hegel e voltando ao problema central que o ocupou quando da elaboração de Fenomenologia e materialismo dialético: a constituição da consciência; a este problema ele dedica boa parte do livro de 1973, que citamos linhas acima – e no qual a questão da linguagem ganha uma relevância de que não dispunha antes. Que ele tenha trabalhado intensamente neste período é atestado por estudiosos que, com acesso ao acervo de Thao conservado no Vietnã, referem a existência de 8.000 de páginas de inéditos.

Somente nos anos 1980 o regime alivia as suas pressões sobre Thao – então, ele pôde voltar à cena pública e expressar-se sem limitações políticas. São desses anos os ensaios, publicados na França, “A dialética lógica na gênese d’O capital” (1984) e A filosofia de Stalin (1988). E, em 1991, ele é autorizado a viajar a Paris, que deixara quarenta anos antes.

Em Paris, ele retoma contatos com o mundo intelectual (J.-T. Desanti, P. Ricoeur, M. Gandillac), faz algumas conferências em instituições acadêmicas e projeta a redação de novo um livro de filosofia – que não passará de projeto: em consequência de uma queda, é hospitalizado em abril de 1993 e, num estado anímico depressivo, falece a 24 daquele mês.

A sua morte parece ter exilado do horizonte da tradição marxista um pensador criativo, que enfrentou problemáticas que ainda hoje se põem como objeto necessário de investigação (a antropogênese, as efetivas mediações entre “base” e “superestrutura”, a relação consciência/linguagem). Examinar, ou reexaminar, o que de Thao está publicado é certamente produtivo para todos aqueles que se interessam por questões centrais do marxismo e do pensamento contemporâneo. Pôr fim a tal exílio pode contribuir, e muito, para avançar no tratamento de temáticas que permanecem em aberto.

(Em tempo: o governo do Vietnã promoveu, em 2001, a “reabilitação” póstuma de Thao, atribuindo-lhe o Prêmio Ho Chi Min. Antes tarde do que nunca…)

* Não são muitas as fontes acessíveis sobre Thao. O material mais substantivo que conheço está reunido em J. Benoist e M. Espagne (dirs.). L’itinéraire de Tran Duc Thao. Phénomélogie et transfert culturel. Paris: A. Colin, 2013; mas vale a consulta a S. Federici, “Viet Cong Philosophy: Tran Duc Thao”. Telos, 6, Fall 1970 e A. Féron, “Qui est Tran Duc Thao? Vie et oeuvre d’un philosophe vietnamien”. Contretemps. Revue de critique communiste, 5/février/2014.

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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo.