Talvez seja difícil identificar esses ecos, para gente de ouvidos não treinados. Mas ninguém se surpreenda por essa celebridade planetária e top star do planejamento central da economia chinesa viver em termos amistosos com o partido profundo ideológico governante. Para os bem-informados, não é difícil identificar os ecos fortes do marxismo, para começar, no otimismo de Ma frente à tecnologia.

Materialismo histórico 

Muitos dos que abrem pela primeira vez o Manifesto Comunista esperam encontrar ali um manual de como chegar rapidamente a um mundo ideal, pronto, a espera do neoleitor. Na verdade, Karl Marx ou seus correligionários escreveram bem pouco sobre a natureza do mundo futuro. Os escritos de Marx são focados nos conceitos filosóficos que vão sendo cunhados, do materialismo dialético e histórico. Na essência, o marxismo é um modo de compreender/narrar a história do mundo do ponto de vista de alguém que a vê empurrada à frente por uma luta por melhores condições de vida, uma luta pela vida que força o aprimoramento do modo de produção [para maior felicidade do trabalhador humano (NTs)].

Essa semana, falando no Clube de Discussão Valdai, em Sochi, Jack Ma criticou duramente os que reagiram com medo ao nascimento da Internet. Disse que “onde outros veem motivos para preocupação, nós vemos meios para resolver a preocupação.” Fez lembrar a muitos dos ali presentes os medos que acompanharam a invenção do automóvel. Diz que “Se usarmos mais imaginação e criatividade, nos sentiremos muito melhor.”

Ao tempo da Revolução Industrial dos anos 1800s, a perspectiva de Marx era a mesma. Ao mesmo tempo em que criticava o capitalismo, Marx saudava o nascimento da economia industrial e a tremenda revolução que destruíra o feudalismo. Marx viu o fim da servidão e o nascimento da classe trabalhadora industrial – o “proletariado” –, precedidos por mudanças também tremendas na tecnologia, como impressionante salto adiante.

Jack Ma também alertou os presentes sobre o perigo potencial associado aos avanços no progresso tecnológico. Chegou a lembrar que as duas grandes guerras mundiais vieram, ambas, depois de grandes saltos tecnológicos.

Ao fazê-lo, Ma mostrou que compreende bem outro conceito chave construído por Marx: a relação entre a superprodução e a queda dos lucros. É verdade. A 1ª e a 2ª Guerra Mundial vieram na sequência de viradas econômicas e períodos de depressão, e nos dois casos os prolongados tempos difíceis que advieram foram resultado direto de avanços tecnológicos.

Em O Capital, Marx expôs seu conceito segundo o qual proprietários de fábricas e comerciantes estão sempre buscando meios para revolucionar os meios de produção, para produzir bens por meios sempre mais eficientes do que antes. Contudo, no processo para tentar tornar a produção sempre mais barata e mais eficiente, o poder de consumo dos trabalhadores foi reduzido. Ao fim e ao cabo, a abundância que os avanços tecnológicos criam miséria em massa. Em todos os cantos do mundo, os marxistas descreveram os desenvolvimentos políticos que levaram às duas guerras mundiais como respostas à crise econômica gerada pela superprodução.

Mas Ma, sem esquecer esse importante sinal de alerta, parece apontar para um resultado potencialmente diferente no caso da revolução dos computadores. Em 1848, Marx disse que a revolução industrial reduzira os trabalhadores a “apêndice das máquinas”.[1] Em 2017, Jack Ma diz que “fizemos gente como máquina, agora fazemos máquinas como gente”.

Ma argumenta que a educação pode ser completamente modificada, agora que a Tecnologia de Dados [ing. Data Technology (DT)] já substitui a Tecnologia da Informação [ing. Informational Technology (IT)]. Para Ma, com o nascimento da DT o que ele chama de “empregos estúpidos” nos quais os seres humanos são forçados a reprimir a própria inteligência podem ser eliminados. Na nova economia, a criatividade humana deve ser liberada para fazer o que máquinas não fazem, porque “máquina não tem alma”.

“Quem precisa de G20? Precisamos de G200!”

Como Karl Marx antes dele, Jack Ma não se opõe à globalização. Bem ao contrário, como Marx fez nos anos 1800s, Ma saúda a ascensão da economia global como passo adiante: “onde o comércio para, o mundo para” – diz ele.

Contudo, se não critica a globalização como conceito, Ma falou contra o viés que demarca as desigualdades da economia mundial. Falando da natureza não justa do mercado mundial, disse que “20% dos países são bem-sucedidos, mas 80% deles não têm qualquer chance.”

Aqui, Ma afasta-se da narrativa da globalização promovida pelo neoliberalismo. O “sul global” não está enriquecendo por efeito de algum comércio com Europa e EUA. Reformas a favor de ‘livres mercados’ e deixarem-se invadir por Banco Mundial e FMI não estão “desenvolvendo” os países subdesenvolvidos. Políticas comerciais impostas por líderes ocidentais não estão trazendo os resultados que figuras como Milton Friedman e Jeffrey Sachs prometeram que viriam.

Com essas palavras, Ma ecoa uma ‘leitura’ da economia mundial similar à que Vladimir Lênin articulou antes da Revolução Russa. É uma visão de mundo que compreende que os países mais ricos do mundo forçaram a mão a favor deles mesmos, para o fim deliberado de permanecerem como os 20% mais ricos, se autoenriquecendo como monopólios, ao mesmo tempo em que 80% continuam pobres e cada vez mais pobres, como consumidores cativos. Sobre esse conceito Lênin elaborou em Imperialismo, etapa mais alta do capitalismo.

Ma não se opõe à globalização, mas insiste em que tem de mudar de estrutura. Nas palavras dele, o mundo precisa de globalização às veras: “não de G20, mas de G200.” 

Essas palavras de Ma seguem rigorosamente uma das políticas externas em que os chineses trabalham hoje – a Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE [ing. “One Belt, One Road Initiative”, BRI] – orientada para oferecer infraestrutura que tire os países da pobreza. Continuando a expandir sua presença em todo o mundo subdesenvolvido, a China vai provendo seus parceiros comerciais com ferrovias para trens de alta velocidade, hospitais, programas de educação. Cada um desses países que comece a enriquecer enriquece a China, porque ela encontra ali mais uma economia com a qual negociar. Esse modelo de globalização “ganha-ganha” demarca contraste muito evidente com os monopólios bancários/empresariais concentrados em Londres e Wall Street.

Ma argumenta que devemos acolher com entusiasmo a multipolaridade e que, em vez de se porem em campos opostos e em disputa entre eles, os países devem trabalhar juntos para resolver os problemas globais. E explica que “O inimigo de todos nós é a pobreza” [como também diz o presidente Lula do Brasil (NTs)].

A história caminha adiante, com você ou sem você 

“A revolução tecnológica está chegando, ninguém a fará parar” – alertou Jack Ma. Mais do que apenas ‘conhecer’ a história, Jack Ma lembra aos que o ouvem, é preciso tomar parte ativa nos rumos da história. – “Os mais jovem não querem só receber informação pronta, querem envolver-se na história!” 

Nesse aviso atento, de que a tecnologia avança sempre, sem se deixar alterar por nossos medos, e a sociedade avança com a tecnologia, ouvem-se ecos de um ensaio de Mao Tse Tung que mudou a história do mundo: Relatório Sobre uma Investigação Feita no Hunan a Respeito do Movimento Camponês (1927, março).

Nesse ensaio, Mao avisava que os camponeses chineses estavam em revolta contra os proprietários; e que os comunistas chineses tinham de decidir unir-se aos camponeses e liderá-los ou, se não o fizessem, “seriam carbonizados pelo movimento”. Mao escreveu: “Quando o povo está em movimento, pode-se combater contra; pode-se correr atrás gesticulando e criticando, ou se pode pôr-se à frente do movimento e liderar o povo.” 

Essa polêmica acirrada com o Partido Comunista da China naquele momento, deu ocasião para muitas das melhores frases revolucionárias de Mao, muitas repetidas até hoje em todo o mundo. Mao alertou os leitores de que explosões e avanços podem ser imprevisíveis: “basta uma faísca, para incendiar as pradarias”.

Quando Mao Tse Tung escreveu essas palavras em 1926, no mesmo tom otimista mas cauteloso que hoje se ouve de Jack Ma, a China era sociedade agrária miseravelmente pobre. Hoje, liderada pela mesma organização política que Mao Tse Tung construiu, tornou-se a segunda maior economia da Terra.

“Ambientes amigáveis para negócios”

Os que esperam que um bilionário veja-se ele mesmo como “self-made man”, sempre choramingando contra a interferência do Estado nos assuntos econômicos, o pensamento de Ma parece andar na direção contrária.

No Clube de Discussão Valdai em Sochi, Ma elogiou os esforços recentes do Partido Comunista da China, quando lhe perguntaram sobre o histórico 19º Congresso Nacional, que acontecia simultaneamente, naqueles dias, em Pequim. Disse o quanto a campanha anticorrupção “Linha de Massa” [ing. “Mass Line”] lançada por Xi Jinping é ótimo desenvolvimento, que “ajudou a sanear o ambiente de negócios” e operou para tornar a China um “ambiente amigável para negócios”. 

De fato, alguns que só compreendam superficialmente e de modo simplório a ideologia marxista, rapidamente ‘concluiriam’ que um bilionário como Jack Ma, chinês que fosse, nada teria de marxiano. Aqueles mesmos também ririam e riem da noção de que a China é país socialista, ‘porque’ há tantas empresas privadas e tantos enriqueceram tanto na China.

Mas Deng Xiaoping já explicou, há anos, “que nada há de socialista na miséria. Enriquecer é glorioso” – e também aí há ecos do modo como Marx compreendia o materialismo histórico. A história avança por efeito do trabalho inovador e do brilho da inteligência humana; mas o capitalismo e os capitalistas, em seu impulso irracional à caça de lucros a qualquer preço (em vidas humanas) paralisou a capacidade da história para avançar.

O “Socialismo com Características Chinesas” evoluiu para uma economia que tirou da miséria 700 milhões de seres humanos. Na China do século 21, a cada dia mais um chinês vira milionário. Claro! Enriquecer é glorioso, mas a riqueza de que fala Deng não é construída sobre impulsos de ganância irracional e egoísmo desumanos. 

A estrada da China rumo a riqueza e prosperidade sempre crescentes implica sociedade organizada, liderada por organização política forte, que põe no topo da agenda a meta de alcançar “sociedade moderadamente próspera” – i.e., prosperidade moderada para todos, não propriedade desmesurada só para uns poucos. *****

[1] “O produtor passa a um simples apêndice da máquina e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário reduz-se, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e procriar. Ora, o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é igual ao custo de sua produção. Portanto, à medida que aumenta o carácter enfadonho do trabalho, decrescem os salários” (Manifesto Comunista, in marxists.org e ss.).

26/10/2017, New Eastern Outlook, NEO

Tradução do coletivo Vila Vudu