Em primeiro lugar é importante destacar o fato de que a frente sandinista surge no curso das lutas contra a ditadura de Somoza. Uma das mais sangrentas e duradouras da América Latina, essa ditadura durou mais de 40 anos. Sobre os ombros de Somoza, o primeiro dos familiares a exercer o cargo, pesa a acusação de ser o responsável pelo assassinato Augusto César Sandino (1934). Recuperando o ideário sandinista e dando continuidade a luta de Sandino, Carlos Fonseca Amador importante autor marxista nicaraguense e dirigente revolucionário fundou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) no início da década de 60 do século passado. Além do pensador nicaraguense, merecem destaque também, Silvio Mayorga, Germán Pomares Ordoñez, Rigoberto Cruz (Pablo Úbeda) Jorge Navarro, Francisco Buitrago. Entretanto, o poeta e dirigente revolucionário, Tomás Borge Martínez, seria o único dos seus fundadores a ver o triunfo da FSLN em 19 de julho de 1979 e a derrota da ditadura de Somoza. Assim, instala-se o primeiro governo sandinista no país centro-americano. Os anos 80 na Nicarágua foram marcados pelo conflito entre a afirmação da Nicarágua enquanto Estado democrático e soberano, voltado para o seu povo e a organização da resistência contra ações terroristas e dos “contra” (forças contra-revolucionárias insurgentes financiadas pelo governo dos EUA sob administração Reagan). Os norte-americanos chegaram a impor um bloqueio econômico nesse período ao país. Entretanto o governo norte-americano fora derrotado na Corte Internacional de Justiça que deu causa favorável à Nicarágua obrigando os EUA a indenizarem a nação centro-americana. O resultado dos embates dessa década foi a derrota eleitoral dos sandinistas em 1990 e a inauguração de um novo período de defensiva para a FSLN. Assim, inserida no contexto da aplicação do modelo neoliberal, a Frente Sandinista inaugurou uma nova fase da sua organização.

A década de 90 caracterizou-se pelo desmonte das conquistas obtidas durante o governo sandinista e a implementação do projeto neoliberal. A partir da eleição de Violeta Chamoro (União Nacional Opositora) deu-se início à políticas de que visavam a estabilidade das contas públicas, privatização do sistema bancário, minas, saúde, educação  e iniciou-se o processo de redução do papel das forças armadas. Além desses feitos, chamou a atenção por haver perdoado a dívida imposta aos EUA pela Corte Internacional de Justiça devido as agressões contra a Nicarágua. A partir de 1996 sob condução do Partido Liberal Constitucionalista o governo seguia a aplicação do receituário de Washington e elevava o tom contra os protestos originados no país em virtude da pobreza gerada nesse período. Nesse contexto, a FSLN impulsionava a resistência ao neoliberalismo a partir da luta de massas e vivia um processo de ampliação da sua atuação. Buscando combater as visões negativas que haviam a seu respeito devido a campanha promovida contra os sandinistas desde o período do confronto armado os sandinistas sentiram a necessidade de ampliar. Esse processo de resistência e renovação do Sandinismo permitiu a vitória eleitoral da Frente Sandinista conduzidos por Daniel Ortega, 17 anos após a derrota eleitoral de 1990.

Com a eleição de Daniel Ortega, em 2007, o país ingressa no conjunto de países que promovem a implementação de projetos de caráter democrático e soberano cujo objetivo esta no combate às desigualdades e na integração justa e solidária da América Latina. Com as políticas do governo sandinista a “Nicaragua redujo sus índices de pobreza de 42,5% en 2009 a 29,6% en 2014, y de pobreza extrema de 14,6% a 8,3% en el mismo período, según datos oficiales citados por el Banco Mundial” (El Observador, 2016). Seu projeto alicerçado no compromisso com a integração da América Latina permitiu o fortalecimento de plataformas como a ALBA e a construção da CELAC além da consolidação da relação entre a América Latina e os BRICS.

O avanço da integração Latino-americana e a disputa, sobretudo com China e Rússia em meio à crise mundial do capitalismo deixou o imperialismo em polvorosa. No caso nicaraguense, esses laços se expressam na construção do Gran Canal Interoceânico, parceria entre a Nicarágua e a China. Duas vezes maior que o Canal do Panamá, a obra, dirigida pelo Engenheiro Telémaco Talavera, permitirá que navios de alto calado (o Canal do Panamá não comporta hoje) cruzem do Atlântico para o Pacífico sem interferência dos EUA. Esse projeto, contudo, não esta sozinho e precisa ser visto dentro do contexto mencionado. A construção do Porto de Mariel e da Zona de Economia Especial em Cuba, com apoio brasileiro, juntamente com as obras de integração viária do Continente, assim como a criação do Banco dos Brics, impactarão consideravelmente na economia da região e na geopolítica do planeta. Contra isso se desata a atual agressão imperialista buscando minar, um a um, os projetos de independência nacional e regional.

Obviamente são inúmeras as contradições e considerações que podem ser feitas à possíveis distorções e limitações do processo nicaraguense. Tais processos, como o nicaraguense mas também o venezuelano ou mesmo o cubano, possuem contradições porque são construções históricamente reais de seus povos. Não podem, portanto, serem idealizadas nem ser criticadas a partir de visões românticas acerca dos processos históricos e revolucionários. Cada contexto histórico produz suas contradições e a transformação revolucionária da sociedade não é o fim das mesmas, apenas a produção de novas demandas, problemas e desafios. Assim, poderíamos fazer um balanço dos governos de Daniel Ortega mas parece secundario diante do contexto, pois os ataques sofridos atualmente pelo povo nicaraguense são contra os avanços do governo sandinista e não aos seus erros e limitações. Ainda assim, no entanto, tanto nicaraguenses como venezuelanos têm conseguido sustentar-se enquanto outros processos não possuiram a mesma força política e social para resistir à onda golpista atual.

Nesse caso, repete-se a estratégia usada contra a Venezuela ou no Brasil a partir de junho de 2013. Apoia-se em uma mobilização social com pautas reais tratando de manipular os objetivos das mesmas. Em outros casos, articula setores da economia, imprensa, judiciário e da política, contrários aos interesses do seu próprio país para promover o caos social e a pobreza da população para inflá-la contra o governo de turno. Insere-se, portanto, como afirmou o filósofo italiano Domenico Losurdo, no contexto em que denominou-se como Revoluções Coloridas. Ou melhor, a estratégia de montar de fora um movimento que pareça interno e legítimo para desestabilizar governos democráticos. Dessa forma, podemos entender a atual estratégia do imperialismo. Com a eleição de Macri na Argentina e o golpe no Brasil os EUA neutralizam as duas maiores potências regionais. No caso brasileiro ainda toma pra si as extraordinárias reservas do pré-sal e tira do jogo um dos principais financiadores e atores geopolíticos da integração regional. Com o ataque à Venezuela visa as maiores reservas de petróleo da região e tenta remover uma peça estratégica para o caráter ideológico do projeto integracionista. Com o ataque à Nicarágua tenta melar um dos maiores projetos de infra-estrutura do Continente (Canal Interoceânico) e enfraquecer a relação da América Latina com China, Rússia e os países dos BRICS.

[1]    Mateus Fiorentini: Professor de História formado pela PUC-SP e mestrando junto ao Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP. Foi Secretário Executivo da OCLAE, Diretor de SOlidariedade Internacional da UJS e integrou a Comissão Nacional de RI do PCdoB. Atualmente é membro da seção paulista da Fundação Maurício Grabois