Máquinas paradas, almas vencidas

?Altas horas. Insônia, TV. Filme de segunda classe. Exemplo 1. Pequena cidade do interior, nos Estados Unidos. Duas ou três fábricas, mercearias, bancos locais, ranchos no entorno. Gente feliz que bebe cerveja e faz churrasco no jardim, no final de semana. Perto dali, uma área semideserta, base militar discreta. Experimentos atômicos que de repente escapam ao controle. Infectam aranhas, elas crescem adoidadas e começam a comer humanos nos ranchos, acercando-se à cidade. Aparecem os mocinhos. Uma cientista rebelde e um tenente apaixonado lutam para combater os bichos e encontrar antídoto para impedir sua proliferação. Orgasmo final: eles vencem e a cidade retoma sua vida pacata – depois de alguns desaparecimentos, é claro. Ufa! Vamos dormir.

Exemplo 2. Um cenário parecido. De repente, umas estranhas plantas aparecem no contorno da cidade. Na verdade, não são plantas, são alienígenas disfarçados. Curiosamente, são vermelhos. A indústria do cine americano adora enrubescer os monstros. Os aliens começam a engolir humanos, tomando seu corpo. Os novos cidadãos, os possuídos, trafegam agora nos mesmos lugares, Mas são outras pessoas. São alienígenas infiltrados. Aparecem os heróis. Uma bióloga excêntrica e desiludida. Um repórter bêbado do jornal local. Um jovem xerife desconfiado e observador. Depois de vários engolidos e abduzidos, os heróis triunfam. Ufa! Vamos dormir.

Convenientemente assombrados pelo mal irreal e facilmente contornável, podemos nos acalmar e sonhar, desviando nossa atenção das ameaças nada fantasiosas e nada contornáveis do dia. Talvez tenhamos sonhos menos suaves, incomodados, quem sabe, pelos efeitos digestivos de pipoca, cerveja e sorvete, em ciclos repetidos e alternados. Não pelos monstros reais, que aguardam o amanhecer.

Se os males do mundo assim fossem, as pequenas cidades norte-americanas estariam hoje acomodadas nos braços de Hilary ou Kennedys – ou outros mocinhos. Só que não.

São essas mesmas cidades – com 50 ou 60 mil habitantes, algumas um pouco maiores – que agora se defrontam com outras ameaças, aranhas ou plantas carnívoras de novo tipo. São os gênios financeiros das corporações, fechando velhas unidades produtivas, de automóveis ou geladeiras, transferindo-as primeiro para o norte do México ou para Osasco e Pirituba, depois para o sul da China. Deixando no antigo sítio um vazio que não apenas se instala nos prédios, mas nas almas das pessoas. Os prédios ficam vazios. As pessoas, não. Elas buscam um outro enchimento. E encontram. Em outro tipo de aranha ou planta carnívora, aquele bicho que lhes promete o retorno do perdido: America First, Again. O brucutu de topete laranja.

Surpresa entre os mocinhos, que rangem os dentes para o recém-chegado, beneficiário do vazio e da reação furiosa. Mas tardam a perceber que esta resposta rancorosa é apenas o contraponto do vazio que haviam provocado eles próprios, os mocinhos. Eles se recusam a admitir a autoria do mal, porque o repetiriam se preciso fosse. Os globalistas do progresso.

É essa a estória que um observador mesmo distraído pode ler em dezenas e dezenas de reportagens sobre as cidades fantasmas dos Estados Unidos. Detroit, por suposto, é uma estrela maior. Mas dezenas e dezenas compõem a constelação – Janesville, Flint, Youngstown… um inteiro alfabeto, com direito a várias repetições. Os Estados do Meio Oeste são atingidos em cheio – eram o coração da indústria na metade do século XX. Mas o declínio pós-industrial é mais amplo e diversificado.  E faz surgir uma literatura em expansão – a trajetória triste e sem perspectiva da chamada white working class, heroína e beneficiária da era dourada da manufatura norte-americana. Não apenas Wisconsin, Michigan, Ohio, Filadélfia. Mas também o Kentucky e Louisiana. Ou toda a “América rural”, vítima de um esvaziamento material mas, também, de um rural brain drain de amplas e profundas consequências. O vazio é preenchido por desalento e vício, ressentimento e raiva crescentes.

É antiga, na análise política, a tentativa de explicar crenças e comportamentos políticos “extremados” e aparentemente contrafactuais, fantasiosos, com a figura psicológica (e psiquiátrica) da paranoia. Os riscos dessa analogia são muitos, mas os recursos heurísticos são inegáveis.

A estratégia paranoica – dos paranoicos e dos que se interessam em engendrá-los – é relativamente simples. Trata-se, primeiro, de gerar narrativas que, ao final das contas, “explicam o caos”, dão sentido às tragédias reduzindo o sentimento de auto-incriminação transferindo as culpas para bodes expiatórios convenientes e convenientemente aumentados em sua força e ameaça. A estratégia define um inimigo, modos de enfrentá-lo, apresenta a possibilidade de uma salvação.

Digamos que a paranoia de vez em quando acerta no alvo. Duas vezes por dia, um relógio quebrado dá a hora certa. Passei muitos anos com a paranoia de que era seguido e monitorado. O diabo é que em boa parte desse tempo isso era verdade…  Os paranoicos das pequenas cidades devastadas dos Estados Unidos acreditam em tudo que a ultra-direita diz sobre Hillary ou Obama. Mas… os correios de Hillary, registrando suas conversas com Wall Street, estão longe de “desconfirmar” todas as “calúnias”. E no que podem acreditar aqueles que perderam suas casas hipotecadas, na crise de 2009? Quando o socorro de Obama salvou os bancos e aumentou os prêmios de seus executivos? Ou quando Obama despejou milhões de dólares dos contribuintes para salvar a GM, em um plano de resgate que incluía… a transferência para o exterior dos empregos de quatro de suas grandes fábricas?

Deixando em suspenso o juízo sobre o fundo de verdade das paranoias, o que se deve entender, antes de tudo, é o impacto dessa coisa nas almas dos brutos. Uma vez, em livro memorável, Karl Polanyi comentou:

“.. uma calamidade social é basicamente um fenômeno cultural e não um fenômeno econômico que pode ser medido por cifras de rendimentos ou estatísticas populacionais.(…) a Revolução Industrial [foi] um terremoto econômico que em menos de meio século transformou grandes massas de habitantes do campo inglês de gente estabelecida em migrantes ineptos. Todavia, se desmoronamentos destrutivos como esses são excepcionais na história das classes, eles são uma ocorrência comum na esfera dos contatos culturais entre povos de raças diferentes. Intrinsecamente, as condições são as mesmas. A diferença está principalmente no fato de que uma classe social é parte de uma sociedade que habita a mesma área geográfica, enquanto o contato cultural ocorre geralmente entre sociedades estabelecidas em diferentes regiões geográficas. Em ambos os casos o contato pode ter um efeito devastador sobre a parte mais fraca. A causa da degradação não é portanto a exploração econômica, como se presume muitas vezes, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima. O processo econômico pode naturalmente fornecer o veículo da destruição, e quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render, mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica – ela está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência social está inserida. O resultado é a perda do auto-respeito e dos padrões, seja a unidade, um povo ou uma classe, quer o processo resulte do assim chamado “conflito cultural” ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de uma sociedade” (A grande transformação – as origens de nossa época)

No artigo seguinte, vamos comentar uma parte, bem pequena e aleatoriamente selecionada, de uma literatura que exibe esse tsunami. Ele abalou a white working class americana. Como dizia o samba, foi um rio que passou na sua vida e seu coração se deixou levar.

A romaria dos automóveis

 

Detroit começou seu longo declínio durante a década de 1950, precisamente quando a cidade – e os Estados Unidos – estavam no auge. Enquanto Detroit liderava a nação em renda mediana e em casa própria, a automação e a concorrência estrangeira obrigavam empresas como a Packard a fechar suas portas. Essa fábrica fechou em 1956 e foi deixada apodrecendo, derrubando o East Side, que derrubou a cidade. Inexplicavelmente, sua carcaça ainda permanece e queima incessantemente – proporcionando um cenário decadente para esse “ensaio de moda”.

O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos. A frase é conhecida e controversa. Teria sido pronunciada por um grande executivo da GM, quando guindado a posições de Estado. Alguns dizem que não foi dita – pelo menos não desse modo. O certo, porém, é que a sentença seguiu o que Fernando Pessoa atribuía aos mitos: escorreu para a realidade e a fecundou. Durante décadas, aquilo que ocorria com a GM marcava o país e sinalizava seus passos. Esse movimento “para cima” tem seu equivalente na baixa. É o que ocorre com as polêmicas sobre declínio da manufatura e seus efeitos deletérios.

O tema da desindustrialização dos Estados Unidos gerou enorme literatura – dos mais variados campos, explorando também variados aspectos, dos mais profundos (e polêmicos) fatores causais até os mais dramáticos efeitos. Em junho de 1980, a Business Week já publicava número especial chamado Reindustrialização da América.  Um estudo de fôlego, pioneiro e talvez o mais citado, foi escrito por Bennett Harrison e Barry Bluestone em 1982 – The Deindustrialization of America: Plant Closings, Community Abandonment, and the Dismantling of Basic Industry. O subtítulo resume o encadeamento dos fatos. Ainda restaria por perceber e por analisar o enorme conjunto de efeitos paralelos no terreno psicossocial e ideológico, bem como nos comportamentos e alinhamentos políticos. Algo que, como dissemos, ecoaria na enorme literatura sobre os desmanches do american dream.

Alguns nomes e siglas simbolizam tal mudança. Imagens também. Na lendária cidade do aço, Pittsburgh, as torres da antiga siderúrgica sobreviveram ao desmanche das forjas – hoje fazem a decoração do pátio de estacionamento de um grande centro comercial. À noite, são iluminadas como árvores de natal.  

As transformações no mundo corporativo trocam os nomes dos personagens relevantes. No imediato pós-guerra, a GM era o maior empregador nos Estados Unidos. Hoje é o Wal-Mart. A General Electric, de gigante manufatura, transformou-se em mesa de operações financeiras. Uma empresa símbolo da inovação americana – Apple – pode ser muita coisa, menos “americana”, uma vez que abriu mão da cidadania original. Hoje é uma empresa com passaporte das Bahamas.

E isso diz muito em muitos sentidos. Mas em um deles dói mais. A mudança brutal em inteiras comunidades. As máquinas desativadas resultam em almas vencidas.

A transformação tem impactos também muito visíveis no desmonte do peculiar welfare state norte-americano, peculiar porque esse welfare é bem pouco state, é basicamente privado.  Graças à propagação do famoso Acordo de Detroit, do começo dos anos 1950, as empresas norte-americanas se transformaram no canal de realização do chamado sonho americano: um emprego relativamente estável, com salário periodicamente reajustado, promoções na carreira, plano de saúde, previdência complementar. Já houve tempo em que o velho operário da linha da GM, aposentado e acomodado, via seu filho, com a mesma perspectiva, o mesmo futuro. Só que não, mais uma vez – tudo é incerto nesse quadro outrora estável.

Escolhemos alguns retratos desse drama, numa literatura tão fértil. Dois livros que giram, precisamente, em torno da lendária e emblemática General Motors.

O primeiro deles é de Jeffrey S. Rothstein – When Good Jobs Go Bad: Globalization, De-unionization, and Declining Job Quality in the North American Auto Industry (Rutgers University Press, 2016).

Lembra ele que, ainda no começo dos anos 2000, os utilitários da GM (os SUV) eram montados em três plantas. Duas delas no território americano – Janesville (Wisconsin) e Arlington (Texas).  A terceira ficava no norte do México (Silao). Outras plantas da GM se dedicavam a outros modelos.

A fábrica de Silao foi aberta em 1994, em um “campo verde”. Uma fábrica criada a partir do zero e com desenho alegadamente mais moderno, numa área antes sem indústria. Silao era uma cidade de 60 mil habitantes, transformada pelo governo provincial em um centro de exportação. Cerca de 90% dos carros eram postos em trens e mandados para os Estados Unidos.

 A fábrica de Janesville era de 1919. Inicialmente montava os tratores Samson, também da GM. A planta foi várias vezes reformada – e fechada em 2008, quando caiu o mercado para os utilitários SUV. Tinha uns 3.500 horistas. Janesville era uma cidade do mesmo tamanho de Silao e grande parte de seu oxigênio vinha da GM.

A migração para o México marcou toda a indústria automotiva. Na primeira metade dos anos 1980, as três maiores montadoras americanas (GM, Ford, Chrysler) abriram fábricas no Norte daquele país, que quase se transformou em uma 51ª estrela na bandeira ianque, mesmo antes do famoso acordo de integração (NAFTA, 1992).

Do final da Guerra até o fim dos 1960, a venda de automóveis cresceu rapidamente nos Estados Unidos – de dois milhões para nove milhões de carros por ano. Em parte, por conta da abertura das estradas federais – uma rede impressionante, como indiquei em outro artigo 

Outro fator relevante foi a suburbanização acelerada do país, graças à facilidade de crédito imobiliário (as famosas hipotecas…).

No final dos anos 1960, apenas uns 15% dos autos eram importados (Volkswagens, sobretudo). O resto: GM (45%), Ford (25%), Chrysler (15%). Entre 1972 e 1980, a importação de carros cresceu desses 15% para 27%. E os japoneses já respondiam por 20% do total de vendas de autos no país. Invasão amarela, não vermelha.

As montadoras estrangeiras expandiram suas plantas principalmente nos Estados do Sul, aqueles que tinham baixa sindicalização e muitos benefícios atraentes – Toyota, Honda, Nissam, BMW, Mercedes, Volkswagen, Hyundai, Kia. Em 2008, já eram treze marcas.

O deslocamento geográfico (do Meio-Oeste para o Sul) e o crescimento das estrangeiras (também no Sul) resultaram em um novo mapa e em uma tragédia associada.

A indústria automotiva empregava quase 670 mil horistas em Detroit, ainda em 1978. Em 2003, esse número caiu para 275 mil. E cairia outros cem mil nos cinco anos seguintes. Muitos viam com olhos cândidos a mudança – uma nova forma de produção, mais moderna flexível, inteligente e ‘humana”. Bom, e por que então ela buscava e cultivava as áreas “livres de sindicatos”?

As três fábricas da GM, diz Rothstein, eram “organizadas a partir de rotinas e coreografias cuidadosamente padronizadas”. A badalada “produção enxuta” não era bem o que se cantava. Rigorosamente, a comparação mostrava que, de fato, o taylorismo apenas se fantasiava e migrava para outras regiões, para plantas e máquinas mais modernas. Relações de trabalho, nem tanto.

Os “ciganos da GM” vagavam pelas cidades. Em todas elas, uma regra seguia constante, independente do discurso da ‘reestruturação flexível”:  o trabalhador deve estar “em movimento”  55 segundos em cada minuto. Sim, isso mesmo. É como nadar durante oito horas – com descansos de respiro de cinco minutos a cada hora.

O segundo ato do drama é escrito por Amy Goldstein – Janesville: An American Story (Simon & Schuster, 2017).  O livro também descreve a migração das plantas da GM, mas acentua seus efeitos sociais, que talvez possam ser sugeridos por este parágrafo:

 “Para compreender a tristeza, raiva e desconfiança que está modelando a política dos Estados Unidos, olhemos para Janesville, Wisconsin. Quando foi fechada a mais antiga linha de montagem da GM do país, as velhas certezas morreram com ela”.

Essa é a abertura de um artigo de Goldstein para um jornal inglês

No livro, ela conta como isso ocorreu. Soa quase como uma fábula. Pelo fato de parecer irreal e pelo fato de ser “instrutiva”.

Janesville pode ser lembrada, talvez, como a cidade onde nasceu uma famosa caneta-tinteiro – outra lembrança do passado. A Parker Pen Company botou Janesville no mapa do mundo. A GM instalou-se ali e inaugurou uma viagem por esse mapa, criando aquilo que já foi chamado de “GM gipsies” – os ciganos da GM, os trabalhadores que viviam “acampando” onde a empresa montava suas plantas.

Em 1986, por exemplo, uma das linhas de montagem foi transferida para Fort Wayne, Indiana. Os trabalhadores deviam escolher: migrar ou dançar. Uns 1.500 migraram. Hoje existe um grupo no Facebook – o Janesville Wisconsin GM Transfers.  Uma postagem de março 2017 mostra o surreal da cena:

“Hoje em Fort Wayne, falei com alguém de Arlington que ouviu de alguém de Lordstown que ouviu de alguém de Wentzville que está ligado com alguém de Lansgind que ouviu a respeito de um vidente de Detroit que contatou Elvis. E Elvis disse que ouviu de uma fonte confiável lá de cima que no dia em que o inferno congelar, a GM vai reabrir a fábrica de Janesville. Provavelmente apenas um boato”.

Sim, boato, pois em 2015 a fábrica de Janesville fechara completamente. Em 2016, de certo modo, a região virava uma espécie de vitrine do que ocorria em muitos outros centros industriais (ou ex-industriais) do país. Por isso a “tristeza, raiva e desconfiança que estão modelando a política norte-americana”

Goldstein reitera que Janesville tem, nas eleições de 2016, aspectos da polarização que marcou essa disputa. Inesperadamente, o Estado de Wisconsin pendeu para o Partido Republicado pela primeira vez em 32 anos.

De fato, em várias regiões do Estado, o que ocorreu foi uma vertiginosa queda da participação eleitoral – e do lado dos democratas. Hilary teve dez pontos percentuais a menos do que Obama, quatro anos antes. E Obama já havia caído, comparado com a primeira eleição. Muitos “vira-casacas” e, sobretudo, muita abstenção de antigos eleitores democratas. Contribuiu para esse movimento aquilo que aconteceu com a GM e o modo como os políticos do partido democrata responderam à coisa. 

A GM que mudou para Arlington e, depois, para o norte do México, não mudou tanto suas linhas e seus métodos de trabalho. Mas mudou o quanto paga de impostos e taxas. E se livrou dos sindicatos. Ora, como prêmio de bom comportamento, Obama lhe deu milhões e milhões. O plano de “resgate”? Importar mais, ao invés de produzir nos Estados Unidos, com trabalhadores americanos. Como é que o Partido Democrata espera que isso seja entendido pelos seus eleitores de base sindical? Ou pelo comércio que sobrevive em torno das fábricas? Razão para que muita gente deixe simplesmente de votar. E para que, de repente, mas nem tanto, a mensagem demagógica de um republicano esquisito soe como algo esperançoso para alguns desses órfãos.

Repetindo: as casas e galpões industriais podem ficar vazios, as almas, não.

A política do ressentimento

Vimos, então, alguns flagrantes da chamada desindustrialização da América. O doloroso processo começa com a migração das plantas fabris e dos empregos localizados em antigas cidades industriais do Nordeste e Meio-Oeste. Eles vão para os Estados do Sul, primeiramente, depois para o México e para a Ásia. Essa migração dependeu de vários fatores. Um deles, incentivos federais que visavam descentralizar a produção de artefatos de interesse militar. O Gunbeltvai se deslocando para o Sunbelt – como mostra o instigante estudo organizado por Ann Markusen, The Rise of the Gunbelt – the Military Remapping of industrial América (Oxford University Press, 1991). Em parte por alguma coincidência, essa área também é o Bible-Belt, a concentração da direita religiosa.  O governo federal oferece incentivos para reconfiguração do complexo industrial-militar. Os governos estaduais ampliam a guerra fiscal e atraem indústrias – com redução de tributos e taxas, crédito, terrenos. E com leis especiais – aquelas que dificultam ou mesmo impedem a instalação de sindicatos. E qual o papel do Bible- Belt? Entre outros aspectos, o domínio do protestantismo mais conservador era fundamental para apoiar a resistência aos sindicatos e, também, as políticas públicas mais progressistas. E os evangélicos batistas do Sul, a maior denominação religiosa do país, tinha sido conquistada por uma visão extremadamente pró-business.

A desindustrialização era também ajudada por outros fatores. Não apenas empregos eram deslocados para o Sul e, depois, para fora do país. O regime geral de outsourcing fragmentava as corporações (e as categorias profissionais), terceirizava diversas ocupações. E a automação reduzia o pessoal exigido pela produção, além de tornar mais viável esse deslocamento em cadeias fragmentadas.

Sherry L. Linkton vê esse fenômeno sob um ângulo menos usual, a da literatura produzida pela e sobre a classe trabalhadora. Linkton utiliza a expressão “meia-vida da desindustrialização “ [The Half-Life of Deindustrialization: Working-Class Writing about Economic Restructuring, University of Michigan Press, 2018].

Meia-vida é uma fórmula verbal utilizada para descrever o período em que o medicamento fica no corpo, produzindo efeitos, diretos ou colaterais, desejados ou indesejados.  A desindustrialização também tem sua meia-vida. Sua influência pode se desmanchar lentamente, mas permanece poderosa e não pode ser simplesmente esquecida ou ignorada, diz Linkton:

“Juntamente com a perda e mutação dos empregos, a deterioração dos ambientes é uma característica definidora da Meia-Vida da desindustrialização. Em cidades e vilas em todo o cinturão da ferrugem e em outros lugares, as pessoas vivem em meio a lojas fechadas, fábricas abandonadas, casas em ruínas e espaços vazios que ainda trazem à mente o amigo de infância que viveu em uma casa agora demolida ou a grande fábrica que costumava ocupar o que agora é um campo vazio.”

Os custos sociais da industrialização são muitos e variados, incluindo o “declínio populacional, a degradação dos edifícios e da infraestrutura, o lixo tóxico, o desemprego de longa duração, problemas de saúde física e mental, altas taxas de dependência de drogas assim como de suicídios, descrença nas instituições e ressentimento político.”

E a política do ressentimento é algo que certamente nos vêm à memória quando olhamos os mapas eleitorais da vitória de Trump – sua votação em pequenas cidades e localidades rurais. Afinal, nos Estados Unidos, há cerca de 18 mil pequenas localidades, 14 mil na zona rural. E uma outra coleção de cidades um pouco maiores, que vivem em torno de uma ou de meia dúzia de fábricas.

Robert Wuthnow  [The Left Behind  – Decline and Range in Rural America, Princeton University Press, 2018] registra o drama:

A indignação moral da América rural é uma mistura de medo e raiva. O medo é que aqueles modos de vida das pequenas cidades estão a desaparecer. A raiva é que eles estão sob cerco. (…) Escolas estão fechando, empresas estão partindo e empregos estão desaparecendo.”

É o que acontece quando a única planta industrial da cidade desaparece, uma vez que a empresa foi deslocada para o México.

À degradação das cidades médias se soma, então, a degradação do mundo rural. E neste último, ainda um fenômeno cresce como erva daninha: uma espécie de brain drain , descrito por Patrick J. Carr e Maria Kefalas em  Hollowing out the middle: the rural brain drain and what it means for America [Beacon Press, Boston, 2009]. Dizem eles:

“O que está acontecendo em muitas pequenas cidades – a perda devastadora de jovens educados e talentos, o envelhecimento da população e a erosão da economia local – tem repercussões muito além do seu limite.”

Assim, o interior do país vê a cidade grande sugar seus médicos e engenheiros, empresários e professores.  O êxodo dos jovens, sobretudo. A desindustrialização não esvazia apenas a cidade média construída em torno das manufaturas, com a geração de hiper-guetos. Ela origina uma crise rural também. Seus sintomas são quase uma síndrome. Ao lado da óbvia desagregação das famílias, a escalada do crime e da dependência de drogas. Nesses quesitos, no início do novo milênio, Estados como Kansas e Nebraska alcançavam índices 50% mais altos do que o Estado de Nova Iorque. Em 2004, a divisão de Narcóticos desbaratou nada menos do que 1500 laboratórios de metanfetamina em Iowa, o segundo mais alto número de qualquer Estado do país, atrás apenas do Missouri.

A marcha da desgraça tinha história. Mostrara seus dentes já no final dos anos 1970. Na década de Reagan, foi acelerada por uma nova onda de automação, pelas reformas macroeconômicas (privatização e desregulamentação) e pela reengenharia das empresas. Seguia o rastro de uma escalada de fusões e aquisições, as tais compras alavancadas por débito e fundos podres. Conglomerados eram adquiridos e esquartejados. Empregos evaporavam ou eram transplantados para áreas do chamado trabalho livre (sem sindicatos) – nos Estados do Sul, no México, na Ásia. No final dos anos 80, Bush (pai) iniciava a contratação do Nafta, o acordo de livre comércio entre Canadá, Estados Unidos e México. O acordo foi, afinal, consolidado por Clinton, contra a resistência dos sindicatos, um confronto duro.

O olhar disparatado dos especialistas

Pois no meio desse processo desencadeou-se com alarde um estranho debate, criativo e estrábico ao mesmo tempo. Uma porção de analistas, de mais diferentes filiações e vínculos, diagnosticava o mal estar das atividades produtivas: a falta de educação adequada nos trabalhadores. Skills shortage eskills mismatch eram os termos da moda – empregos existiam, mas os norte-americanos estavam mal treinados para ele, era o que se costumava dizer, com prodigiosa menção de números e estudos de caso convenientemente selecionados. O engraçado é que os empregos (majoritariamente blue-collar, manuais) estavam sendo deslocados para áreas que dificilmente poderíamos chamar de bem dotadas de treinamento e educação. 

O debate era ambíguo, como dissemos, criativo e vesgo. Gerou estudos sofisticados sobre problemas reais e candentes – a falta de foco da escola média, a inexistência de programas de treinamento profissional (como a apprenticeship alemã), a ineficiência dos métodos tradicionais de ensino. Ao mesmo tempo, distorcia significativamente o problema de fundo das transformações da base produtiva. Essa operação acabava por gerar um famoso efeito: culpabilizava a vítima. Empregos existem, os trabalhadores é que estão mal preparados – reza a cartilha apreciada por líderes empresariais e políticos “globalistas”. Bem verdade que os estudos culpavam também as instituições, mas a mensagem de massa era clara: cabe a você, desempregado, investir em sua formação.

Toda essa discussão parecia depender de uma avaliação bastante enviesada da “mudança radical”, da mãe de todas as mudanças. A rigor, a grande migração e os efeitos polarizadores da automação eram amplamente superados, nas análises, pela avaliação das escolas e métodos. Essa nova versão do evangelho pedagógico transformou-se quase em um discurso automático – atravessava dezenas de relatórios, comissões de especialistas, governamentais, para-governamentais ou puramente privados.

Em 1989, por exemplo, surgia um desses memoráveis estudos, produzido pela Commission on Industrial Productivity do MIT. Apontava para os “novos padrões de organização do local de trabalho”, padrões anunciados pelas pioneiras corporações japonesas. Eles “distanciam-se em quase todos os aspectos do sistema de produção em massa de Detroit”. Alegava o relatório que esses novos modelos exigiam “a criação de uma força de trabalho altamente qualificada”. Logo em seguida, comissões e mais comissões iam nesse rumo, alertando, ainda mais, que o novo desenho produtivo daria mais responsabilidade aos trabalhadores do “chão de fábrica”. Eles teriam que receber treinamento avançado para tomar decisões igualmente avançadas, complexas. Os novos trabalhadores precisam ser flexíveis, criativos, educados – eles seriam “empoderados” e chamados a “colaborar” nos novos empregos “enriquecidos”.  Essa era a tônica dos gurus da moda, inclusive das consultorias “especializadas” que não conseguiam sequer treinar seus especialistas para escaparem da derrocada.

A canalização dos desesperos

A cacofonia do debate mostra os limites da análise e dos analistas, suas viseiras ideológicas. Parece indicar que são bem distribuídos os efeitos deletérios da desindustrialização, manifestações de sua meia-vida. Não atingem apenas os que trabalham com as mãos. Aprisionam aqueles que dizem operar com o cérebro. Isso certamente não se deve à fragilidade dos neurônios – estamos falando de gente altamente qualificada, estudiosos de alto coturno. Mas há uma força da gravidade – um conjunto de determinantes sociais – que limita a sua visão.

Parece que mais uma vez sobra razão para a frase do assessor de Clinton: “é a economia, estúpido”. Economia, em sentido amplo, é aquele espaço em que os interesses se revelam, se reconhecem e conflitam. E a política é aquele terreno em que tais conflitos são levados às últimas consequências. Os intelectuais mergulham nesse mar de aporias e problemas sem solução – o debate patina, mas é relativamente inofensivo. Mais abaixo, as “soluções” são ainda mais confusas e perigosas. E quais são?

O já referido livro de Wuthnow pode nos ajudar a perceber tais efeitos sombrios, quando aponta que o vazio das fábricas cria o clima fértil para a política do ressentimento:

“Quando a poeira assentou, após a amargamente disputada campanha presidencial de 2016, analistas se esforçavam para achar sentido nos resultados. Uma das conclusões mais claras era que as comunidades rurais votaram esmagadoramente no candidato republicano. Era difícil alguém afirmar que o voto rural havia decidido a eleição. Mas as diferenças entre os resultados rurais, urbanos ou suburbanos foram marcantes. As pesquisas mostraram que 62% dos votos rurais foram para Donald Trump, comparado com o índice de 50% dos votos suburbanos e apenas 35% do voto urbano. Outra evidência demonstrava  que os eleitores rurais cada vez mais se tornaram republicanos, em cada uma das duas eleições anteriores”

Considerando o quadro que buscamos desenhar, isso não é tão surpreendente, pois não? E os eleitores mais diretamente identificados com a “base industrial-urbana”, que rumo tomaram? Bem, essa é uma outra estória, que fica para uma outra vez.

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Publicado no Jornal da Unicamp