A prescrição é a regra conforme a qual, depois de certo prazo, não é mais possível promover uma ação contra o autor de um ato ilegal, ou aplicar a ele uma pena¹.  Por trás dela está a ideia de que, passado o tempo, as provas terão se perdido e os sentimentos estarão apaziguados, deixando de haver o interesse na responsabilização[1]. Prevaleceria então outro interesse do direito: o de estabilizar situações e evitar que perdurem as incertezas. A prescrição pode também ser concebida como uma consequência negativa para quem, podendo mover a ação, demorou a fazer isso.

Foi no pós Segunda Guerra Mundial, em meio à tentativa de levar adiante a punição dos nazistas pelo genocídio dos judeus, que se passou a falar no imprescritível. Naquele momento se observou que nos casos dos crimes imensos, que instituem um passado que não passa, não há a possibilidade de se apagar a memória, os sentimentos não apaziguam. Constatou-se também que diante de violações organizadas por agentes públicos, voltadas a espalhar o medo e romper laços sociais, não pode ser exigido das vítimas nem esperado das instituições a observância dos prazos ordinariamente aplicáveis.

Os mesmos eventos ensejaram o estabelecimento no Direito Internacional do conceito de crime contra a humanidade, cuja característica central é o fato de ser praticado como parte de um plano de Estado contra a população civil. Conforme foi consolidado desde então, investigar, processar e punir esses crimes, onde quer que tenham acontecido, é uma exigência internacional, não só como uma questão de justiça, mas também para se evitar a sua repetição. Tanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto a Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluíram que os desaparecimentos forçados, tortura e assassinatos praticados por agentes de Estado durante a ditadura brasileira como parte da repressão ocorreram em um contexto de ataque sistemático contra a população e, portanto, configuram crime contra a humanidade insuscetível de prescrição.

Outra característica própria do crime contra a humanidade a corroborar a sua afirmação como imprescritível é o fato de ele envolver uma negação oficial do real. Nesse sentido, o jurista francês Antoine Garapon observa que, como se trata de uma política de Estado, há estrutura e ferramentas para organizar “antes da sua perpetração, a impossibilidade de fornecer a prova não só da sua extensão, mas também da sua própria realidade”[2]. A respeito das práticas da ditadura brasileira, o relatório da CNV constatou que o encobrimento das mortes ocorridas em decorrência de tortura era realizado por meio de uma coordenação de diferentes órgãos e agentes públicos. Entre eles, a CNV deu destaque aos agentes da medicina legal, que produziam “laudos com dados inveri?dicos e contradito?rios, nos quais os legistas atestavam causa mortis incompati?vel com as leso?es no corpo das vi?timas, verificadas por testemunhas ou registradas em fotografias feitas para esses mesmos laudos”[3].

Embora o Judiciário nacional siga refratário à exigência de responsabilização penal exigida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, na esfera da responsabilidade civil a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece a imprescritibilidade, de forma alinhada aos parâmetros internacionais. E justifica: a Constituição não estabelece prazo de prescrição para ações por danos morais por violações graves de direitos humanos como a tortura, que ofendem a dignidade humana[4];  em casos de tortura sofrida durante a ditadura, há dificuldades para deduzir a pretensão em juízo [5]; seria absurdo aplicar os prazos ordinários previstos para situações de normalidade democrática às vítimas de violência gravíssima durante a ditadura, as quais ainda encontrariam no Judiciário uma “instituição possivelmente  privada  de consciência  independente e, de mãos atadas, condenada à insuperável omissão”[6].

Não parece existir explicação jurídica capaz de justificar a forma como o TJ/SP, em 17 de outubro, discrepou do entendimento do STJ no caso referente ao assassinato por tortura de Luiz Eduardo Merlino, decidindo pela ocorrência da prescrição.

O assassinato de Merlino é representativo do que teve de mais cruel na repressão política organizada pela ditadura brasileira. É também um caso que apresenta muitas informações sobre as circunstâncias da morte e responsáveis, com diferentes testemunhas visuais da tortura e da forma como ele foi privado dos cuidados médicos necessários a salvar sua vida. Está demonstrado que o laudo necroscópico, omitindo-se em relação às marcas da tortura, incorporou informações falsas para corroborar a versão divulgada pelo Estado com o objetivo de dissimular o assassinato, e que houve tentativa de ocultação do corpo. É um crime contra a humanidade imprescritível, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu no caso de Vladimir Herzog, em circunstâncias semelhantes.

O processo no qual foi proferido o acórdão do TJ/SP é a segunda ação movida pela companheira, Angela Almeida e pela irmã dele, Regina de Almeida, contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, que era chefe do DOI-CODI quando do assassinato. Antes havia sido proposta uma ação de natureza declaratória, que o mesmo TJ/SP extinguiu em 2008, sob o argumento de que não teria sido usado o meio processual adequado, mas deixando claro que as autoras poderiam acessar o Judiciário por via diversa. Daí o ajuizamento da segunda ação, de reparação por danos morais – como sugerido pelo próprio tribunal –, mas que o TJ/SP mais uma vez veio a extinguir, agora sob o argumento da prescrição. O julgamento aconteceu 6 anos depois da entrada do recurso do Ustra no TJ/SP, pouco antes do segundo turno de eleições com candidato à presidência que o tem como herói.

As ações movidas pela família de Merlino podem ser vistas como parte de um conjunto de iniciativas de mobilização do Judiciário por pessoas que sofreram a violência da repressão política durante a ditadura. Apesar de individuais, essas iniciativas também contribuem para fazer progredir as políticas nacionais de verdade, memória e reparação. Outro exemplo é o da ação declaratória da família Teles, que levou ao reconhecimento pelo STJ da responsabilidade de Ustra pela tortura que sofreram. O reconhecimento oficial repara simbolicamente as pessoas que sofreram diretamente a violência, mas esse não é o seu único propósito. Ele também traz um benefício social, como afirmou o Ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino no caso da ação movida pela família Teles: “A recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação para evitar que essas violações graves aos direitos humanos voltem a ocorrer”.[7]

Por essa perspectiva, é preciso atentar para outro fato além do problema da extinção da ação por prescrição contrária à jurisprudência do STJ. O Desembargador Relator, Salles Rossi, quando enfrentou o mérito da ação para negar-lhe provimento, colocou em dúvida a ocorrência de violações graves de direitos humanos amplamente comprovadas e reconhecidas pelo Estado brasileiro.

Em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos afirmou que o Estado é responsável pela morte de Merlino, com a conclusão do relator Nilmário Miranda de que “a versão do suicídio, auto-atropelamento não tem sustentação”[8]. Já em 2014 o relatório da CNV trouxe em seu volume 3 uma síntese dos testemunhos e demais evidências da tortura e assassinato de Merlino e concluiu pela responsabilidade de Ustra. Essas investigações e conclusões oficiais foram ignoradas pelo Desembargador como se não tivessem existido, como tampouco foi considerado o fato de a responsabilidade de Ustra por tortura na ditadura já ter sido reconhecida pelo STJ.

Mas o Desembargador ainda questionou a idoneidade dos diversos testemunhos sobre a tortura de Merlino e as consequências dela, em particular e de forma expressa o de Eleonora Menicucci, que viu Ustra participar da tortura de Merlino. Em contraposição, deu legitimidade ao laudo de exame necroscópico que traz informações comprovadamente falsas. Neste ponto, o Desembargador não se pronunciou sobre o fato de o relatório da CNV recomendar “a retificação da certidão de óbito de Luiz Eduardo da Rocha Merlino para que conste como causa da morte ‘morto em razão de tortura sofrida nas dependências do DOI-CODI do II Exército/SP’”[9], informação que havia sido destacada pelo advogado das autoras na sustentação oral.

Não há banalidade na negação ou relativização de graves violações de direitos humanos comprovadas e reconhecidas pelo Estado. Negacionismo foi o termo que passou a ser usado para designar, primeiro, a negação da ocorrência do genocídio dos judeus, e depois de outros crimes contra a humanidade. A negação caracteristicamente se aproveita da ocultação e destruição de provas em crimes de Estado, bem como da centralidade dos testemunhos das vítimas nestes casos, para contestar a ocorrência do crime. Ela produz consequências graves em dois planos: para as vítimas e pessoas próximas, reativa a violência e gera novos danos; e para a sociedade em geral, coloca em risco o conhecimento do passado, que é o que lhe dá ferramentas para adotar ações transformadoras aptas a evitar a repetição.

Ainda existem recursos processuais para questionamento da decisão do TJ/SP e, se pudesse haver apreciação imediata pelo STJ, a coerência provavelmente levaria à reforma em favor da família de Merlino, mas não é esse o tempo do Judiciário e o mais provável são novas demoras desgastantes. Independentemente disso, a decisão do TJ/SP neste caso levanta questões de dimensão pública. Como ensina Hannah Arendt, quando se transforma fatos históricos comprovados em uma mera questão de opinião, destrói-se a base necessária para a ação política. Em um momento de escolhas políticas decisivas, o significado do julgamento do TJ/SP e as respostas necessárias são temas que devem mobilizar o interesse social.

 

Carla Osmo é Professora da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora dos processos de justiça de transição 

 

[1] Este texto foi escrito antes da publicação do acórdão do TJ/SP, a partir do que a autora acompanhou na sessão de julgamento. Não foi autorizada pelo tribunal a realização de qualquer tipo de gravação da sessão.

[2] GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: Para uma justiça internacional [tradução de Pedro Henriques]. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2004, p. 170.

[3] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade, volume 1. Brasília: CNV, 2014, p. 443.

[4] REsp 1085358/PR, Rel. Min. Luiz Fux, j. 23/04/2009; REsp n. 612108/PR, Rel. Min. Luiz Fux. Brasília, j. 02/09/2004.

[5] AgInt no REsp 1569337/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 03/05/2018; AgRg no AREsp 294266 / PR, Rel. Min. Assuste Magalhães, j. 03/03/2015.

[6] REsp 1315297 / PR, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 16/08/2012.

[7] REsp 1434498 / SP, Relator p/ Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09/12/2014.

[8] BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Requerimento n. 0209/96 (Reconhecimento da morte de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, nos termos da Lei n. 9140/95), 23/04/1996, fls. 56. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de Merlino foi publicado no Diário Oficial da União em 25/04/1996.

[9] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: mortos e desaparecidos políticos / Comissão Nacional da Verdade, volume 3. Brasília: CNV, 2014, p. 660.

 

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil