Os flashes de ficção e realidade dão um retrato da nação angustiada nos últimos dias que precederam a eleição, buscando saídas até no aeroporto. Ou na bilheteria dos cinemas. “Infiltrados no Clã” de Spike Lee deveria ser apenas um excelente filme contra o racismo. No ambiente tóxico da semana, virou mote para toda a plateia se levantar no final da sessão e gritar “Ele Não”.

A 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é um escape. Como aconteceu com “A Valsa de Waldheim” sobre o passado nazista oculto pelo então Secretário Geral da ONU e presidente da Áustria, Kurt Joseph Waldheim (1918-2007). A reação do público da Mostra e o fato do político ocultar seu engajamento ao Exército germânico de 1942 até o fim da guerra levou Amir Labaki a publicar no Valor desta semana o ensaio da historiadora austríaca Gitta Sereny: “O foco real do amargor não foi propriamente Waldheim, mas sim os milhões de austríacos que 48 anos antes acolheram Hitler com frenética alegria”.

The Economist entrou na gangorra. Ora coloca Cristo Redentor glorioso na capa, ora derruba a pobre estátua. Semana passada declarou Fernando Haddad “decente mas sem graça” que, diante da exuberância verbal [e bélica] de Bolsonaro, está condenado pelos erros do PT. “O Brasil está na beira de eleger um presidente que será uma verdadeira ameaça à jovem democracia brasileira”. Nesta semana a revista inglesa voltou a avisar no título que Bolsonaro é a perversão do liberalismo.

Não houve filme da Mostra ou artigo de jornal que não conduzisse ao dilema, à incerteza que o Brasil vive neste momento. “Caminhos Magnéticos” de Edgar Pêra é a própria angústia do francês Raymond que vive em Portugal e sofre pesadelos medonhos numa Lisboa prestes a ser tomada pelo regime autoritário -mas ninguém vê.

Ao mesmo tempo, José de Souza Martins descrevia no caderno de fim de semana do Valor que “nestes dias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, se prepara para a escolha do cacique que governará a taba chamada Brasil… talvez não encontre nem a si mesmo”. Na capa da CartaCapital, “O Brasil chega às urnas envenenado pelas falsas notícias e pelo discurso de ódios sem entender o risco a que se expõe”

A Mostra cabia como uma luva na eterna purgação dos argentinos pelas atrocidades cometidas na ditadura em “La Quietud” de Pablo Trapero. Ou na luta dos espanhóis para condenar os torturadores do regime de Franco em “O Silêncio dos Outros”. Nosso passado e, desde domingo, o nosso futuro.

Os estrangeiros meteram a colher, o brasilianista Tiordan Roett garantiu ainda no Valor que a Casa Branca não deve favorecer o governo Bolsonaro. E o inglês Stephen Fry, que entrevistou Bolsonaro para a TV, o descreveu na última Veja como “a pessoa mais desagradável que já conheceu”, “é muito triste, eu vejo um futuro aterrorizante”.

Ainda na Veja, mesmo reconhecendo o caráter “virulento” de Bolsonaro e sabendo “que a vitória de Haddad traria menos riscos”, o filósofo José Arthur Giannotti ficou com a primeira opção.

“Quem ele vai trair primeiro?”, perguntou num artigo da Época o doutor em Direito e professor da USP, Conrado Hübner Mendes.

“Qual Bolsonaro pode chegar à presidência?”, o editorial da Folha de S.Paulo perguntava. O Jornal do Brasil de domingo, mantendo a velha tradição da imprensa combativa, trouxe na capa o editorial Pela Democracia e a charge de Miguel Paiva com a pergunta “alguém está aí?” e quase submersa, a resposta: “a democracia”. No JB, o presidente do Clube de Engenharia, Pedro Celestino, analisava a economia, a Petrobrás, a engenharia do país e resumiu “Joga-se fora a criança, a água e a bacia”.

E em sua coluna Hildegard Angel escreveu uma “Carta para Minha Mãe”, a estilista Zuzu Angel, morta num atentado no Túnel que hoje leva seu nome porque dedicou a vida a questionar a morte nos porões da ditadura, do filho Stuart Angel e da nora Sonia. Stuart foi amarrado na traseira de um carro que rodava sem parar, arrastado com a boca no cano de descarga.

Na Época desta semana o jornalista e professor de Comunicação na UFRJ escreveu “Diante do Fascismo” citando Jason Stanley, filósofo da linguagem e professor em Yale que escreveu “How Fascism Works” (Como Funciona o Fascismo). Stanley compara o discurso de Donald Trump a alguns dos notórios líderes fascistas da história, e num vídeo para o The New York Times o Brasil é o terceiro país a aparecer. “Vocês vão dizer que estou tentando assustar vocês com esses paralelos. E quer saber? Estou mesmo”.

“Um País Fraturado”, descreveu Ascânio Seleme este domingo em O Globo. Melhor purgar o susto, e o medo com “A Casa que Jack Construiu” do dinamarquês Lars von Triers, aterrorizando a platéia com assassinatos cruéis de um serial killer. Tanta violência na tela refrescou a da vida real. “O Medo que Mora em Nós” foi o tema da Ilustríssima da Folha dispondo filmes e livros sobre o assunto para aplainar o sentimento detectado da nação. Melhor, n’O Estado de S.Paulo no dia da eleição Lucia Guimarães ensinava, com o livro do jornalista Eli Saslow, A Cura do Ódio, com uma história de tolerância onde o filho de um chefe da Ku Klux Kan deixa para trás o racismo ajudado por amigos judeus.

Helio Gurovitz na Época comparava o momento brasileiro com um romance de Dostoievski, “Os Demônios”. “Espalharemos incêndios. Espalharemos lendas. Qualquer grupo ‘sarnento’ será útil. Darão qualquer tipo de tiro e ainda ficarão agradecidos pela honra”. No Estadão, Sergio Augusto advertiu que da ficção também pode sair o mal, como aconteceu com “22 de Julho” (Netflix) que inspirou um atentado terrível em Oslo, e a série “The Walking Dead”, que engrossou o eleitorado de Trump.

“Advertência!”, foi o texto de Millôr Fernandes que Dorrit Hazarim reproduziu n’ O Globo no domingo da eleição. Um texto publicado na revista Pif-Paf de 27 de agosto de 1964. “Quem avisa amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleição; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem pela sua própria cabeça; dentro em breve estaremos caindo numa democracia”.

A escolha de um presidente pelo “contra tudo e contra todos” levou o CEO do Ibope Inteligência assumir que o eleitorado brasileiro está com os sentimentos “fora de ordem”. Roberto Pompeu de Toledo na última página de Veja, diante das agressões dos últimos tempos, arrependeu-se. “O clima pesado não augura uma distensão tão cedo. Saudade de Alckmin. Só agora nos damos conta de que um presidente soporífero era do que mais o Brasil precisava”.

Soporífera ou o socorro ainda é a Mostra. Antes que ocorra uma catástrofe real, assista aos jovens russos na efervescência do rock underground em Leningrado no início da década de 80 (“Verão”, o diretor Kirill Serebrennikov está detido sem provas).

Ou aos conflitos eternos entre judeus e palestinos em “Um Trem para Jerusalém”, de Amos Gitai. Vale se divertir com a revolução pelo não consumismo em “Deixe os Velhos Morrerem” do suíço Juri Steinhart. Relaxe com o divertido bolo de maconha que cura até câncer n’O Ingrediente Secreto” do grego Tajnata Sostojka, ou sabendo como o Uruguai enganou os Estados Unidos e importou quilos de maconha como se fosse erva mate em “Tragam a Maconha”, estrelada pelos presidentes Mujica e Barak Obama. Aí sim, assista ao mexicano “Roma” de Alfonso Cuarón que fecha a Mostra na quinta feira três dias depois do domingo que elegeu Bolsonaro.

No diálogo imaginário de André Singer com Stefan Zweig, ele explica na Folha como o escritor austríaco que escreveu “Brasil, País do Futuro” e depois se suicidou com a mulher no Brasil, está preocupado com nosso país. ”Nós, na Alemanha e na Áustria, não acreditávamos nem um centésimo ou milésimo ser possível o que em poucas semanas mais tarde haveria de eclodir. Monstrusidades como queima de livros…”.

Aí será como Conrado Hüber Mendes escreveu sobre o slogan de Bolsonaro. “Nenhuma palavra é só da boca para fora, na esfera pública seus efeitos são brutais. Se o slogan é ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’, chegará a hora em que terá [teremos] de escolher entre Brasil e Deus (ou o delegado de Deus). A má notícia é que nenhuma dessas saídas respeita ou protege a mim e a você”.

Este é só o nosso 8º presidente na democracia. Bolsonaro passou 27 anos no Congresso, mudou oito vezes de partido, e ninguém percebeu. Parece o filme de Sofia Coppola que não está na Mostra, só nas nossas cabeças, “O Estranho que Amamos”.

Melhor não pensar n’”A Caixa de Pandora” que soltou todos os males do mundo sobre nós e foi o espetáculo da Mostra no último sábado no Ibirapuera. Valha-nos Deus e viva a coincidência divina desta Mostra, que corre paralela e nos salva.

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Norma Couri é jornalista.

Publicado no Observatório da Imprensa