Quando foram concluídas as apurações do primeiro turno das eleições de 2018 e o PCdoB não conseguiu ultrapassar a cláusula de barreira, pudemos notar um contentamento indisfarçável no interior da Casa Grande. Afinal, aquele instrumento antidemocrático havia sido criado justamente com esse objetivo. Sob o pretexto de eliminar o excesso de partidos, especialmente os chamados fisiológicos, pretendia-se mesmo era acabar com os partidos ideológicos, como PCdoB, PCB, PSTU, PCO, PPL e PSOL. Destes, apenas este último conseguiu passar pela guilhotina da última reforma eleitoral-partidária. 

Em meio à maior onda reacionária ocorrida no país desde 1964, o PCdoB fez 1,35% dos votos válidos, elegendo nove deputados em sete estados da Federação. Ele precisaria, pela nova legislação, ter conseguido 1,5% – faltaram apenas 0,15%. Ou eleito deputados em nove estados. O cenário político adverso não lhe permitiu isso. 

É claro que, dentro de um processo mais geral de derrota, foram alcançadas algumas vitórias parciais significativas, como a reeleição em primeiro turno do governador Flávio Dino no Maranhão e de dois vice-governadores no Nordeste, Luciana Santos em Pernambuco e Antenor Roberto no Rio Grande do Norte. Também pode ser considerado um êxito a eleição de 21 deputados estaduais em dez estados, perfazendo 2,39% dos votos válidos. Se a cláusula fosse medida pelos votos recebidos nas Assembleias Legislativas, o PCdoB a teria ultrapassado com relativa folga. Além disso, conseguiu mais de 1% dos votos em 14 estados, o que não é pouco para um partido comunista na quadra atual.

A consequência de não atingir a cláusula seria perder o Fundo Partidário, o tempo de TV e o direito de constituir bancada no parlamento. Significaria, do ponto de vista institucional, ser rebaixado para uma espécie de segunda divisão da política nacional. Sem grande parte dos seus recursos financeiros e com menor possibilidade de comunicar-se com um amplo público, estaria condenado a permanecer nesse mesmo lugar, podendo mesmo cair numa situação de semilegalidade depois das próximas eleições, quando a cláusula de barreira e as penalidades se tornam ainda mais draconianas. 

Nessas condições teria de enfrentar o governo mais reacionário da nossa história recente, cujo objetivo declarado é colocar os partidos da esquerda e os movimentos sociais “fora da lei”, como vem ocorrendo em outros países do mundo. Uma situação que não poderia ser subestimada pela direção e os militantes comunistas. Não poderiam encarar isso como um problema menor. 

Felizmente, no que diz respeito ao Partido Comunista do Brasil, a alegria da direita durou pouco. Logo nos primeiros dias após o segundo turno das eleições foi anunciada a decisão do Partido Pátria Livre (PPL) – originário do tradicional Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) – de se incorporar ao PCdoB. Assim, este último poderia superar a cláusula de barreira, infringindo uma derrota política aos planos da direita brasileira.

 

Renato Rabelo, Haroldo Lima, Duarte Pereira e Aldo Arantes (da esquerda para a dieita). Exceto Duarte, os demais ingressaram no PCdoB oriundos da Ação Popular (AP) (Foto: Cezar Xavier)

Sobre a decisão corajosa do PPL gostaria de fazer uma analogia com o processo de incorporação da Ação Popular/Marxista-Leninista (AP-ML) ao PCdoB ocorrido entre 1972 e 1973. Ao receber os dirigentes daquela organização, o veterano dirigente comunista João Amazonas disse emocionado: “No Brasil atual é um ato de coragem querer entrar para um Partido como o PCdoB. Com o início da Guerrilha do Araguaia, nós estamos marcados para morrer. Entrar agora é colocar os seus nomes na lista dos condenados. É isso que vocês estão fazendo agora. Recebam o nosso abraço pela coragem com que estão se comportando”.

Ontem como hoje, optar por entrar num partido denominado comunista, defensor do marxismo-leninismo e que tem como símbolo a foice e o martelo, não é uma decisão qualquer. Exige uma boa dose de coragem. Existem saídas mais fáceis e menos comprometedoras. Os comunistas, na atualidade, voltam a ser alvos prioritários das forças reacionárias e fascistizantes que se espalham pelo mundo e pelo Brasil. 

A decisão do PPL fortalece o campo de oposição ao governo Bolsonaro e contribui para o fortalecimento de uma alternativa socialista e nacionalista. Uma das marcas daquele partido é o anti-imperialismo e a defesa de um projeto nacional de desenvolvimento que nos aproxime do socialismo. Nesses dois pontos especialmente, existe uma afinidade eletiva com o PCdoB. Mesmo as diferenças táticas – que foram grandes neste último período – tendem a ser rapidamente eliminadas. Afinal, existe um consenso de que o inimigo principal é o governo Bolsonaro, sendo preciso, para derrotá-lo, a constituição de uma ampla frente política de caráter democrático. 

Breve histórico das incorporações ao PCdoB durante a Ditadura Militar

Quando ocorreu a cisão entre os comunistas brasileiros em 1962, a grande maioria dos militantes ficou com o PCB, e menos de 20% optaram pelo PCdoB. Naquele momento ninguém apostava que esta última legenda tivesse algum futuro político. Alguns lhe davam poucos meses de vida. E assim, de fato, pareciam as coisas. As aparências às vezes enganam. 

 

Tarzan de Castro

O PC do Brasil reorganizado lançou seu jornal de massas A Classe Operária e começou um penoso trabalho de convencimento político-ideológico, visando ao recrutamento. Num primeiro momento, concentrou seus esforços entre os descontentes do PC Brasileiro e de outras organizações de esquerda, que despontavam naqueles anos conturbados. Um primeiro sucesso obteria com o ingresso de um grupo de dezenas de jovens proveniente de uma cisão das Ligas Camponesas, liderada por Francisco Julião. O processo de incorporação começaria no final de 1962 e estaria basicamente concluído no final do ano seguinte, poucos meses antes do Golpe Militar. À frente desses militantes, estavam, entre outros, Tarzan de Castro (foto à direita), Élio Cabral de Souza e Diniz Cabral Filho. Assim o partido se fortalecia em Goiás e Pernambuco, de onde provinha a maior parte desses quadros, além de começar a se mostrar viável às demais forças políticas que ainda suspeitavam dessa possibilidade. 

Após o Golpe Militar,teve início o processo de ingresso de algumas bases do PCB no PCdoB. Destaque caberia ao Ceará 
onde parte significativa da direção estadual ligada a Prestes, especialmente os militantes jovens capitaneados por Ozéas Duarte, aportaria ao partido dirigido por Amazonas, Grabois e Pomar. Em menor escala, o mesmo ocorreria no Maranhão, com a chegada da família Mochel, e em Minas Gerais. Neste último grupo, estavam Paulo Ribeiro Martins, Cesar Augusto Telles e as irmãs Crimeia e Amélia de Almeida.

 

José Maria Cavalcante

Contudo, a maior conquista foi o ingresso do Comitê Regional Marítimo do PCB, dirigido por José Maria Cavalcante (foto à esquerda) e Luís Guilhardini. Esse processo se deu entre 1964 e 1965. O fato se revestiu de grande valor simbólico. Afinal, se tratava de uma base operária muito importante e com tradição de luta durante os anos precedentes ao golpe militar. Seus membros desempenhariam um papel inestimável na expansão do Partido para vários estados brasileiros, notadamente no Nordeste. 

A crise no PCB se agravaria ainda mais nos anos seguintes.Contudo, apenas em 1967 ela levaria a novas cisões. Neste período, vários dirigentes históricos seriam expulsos e caminhariam para construir suas próprias organizações revolucionárias, ou para aderir às já existentes. Nesta lista se encontram Carlos Marighella, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Jacob Gorender, Jover Telles, Lincoln Bicalho Roque e Armando Frutuoso. 

 

Armando Frutuoso

Entre parcelas dos dissidentes pecebistas da Guanabara, se fortaleceu a posição de que se deveria caminhar para a incorporação ao PC do Brasil. Entretanto, ao contrário do que pretendiam, a Conferência Nacional da Corrente Revolucionária resolveu pela formação de outro partido: o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), encabeçado por Mário Alves e Gorender. Descontente com a decisão, a autodenominada Maioria Revolucionária do Comitê Regional da Guanabara rompeu com os organizadores do novo partido e aprovou o documento, Um reencontro histórico. Nele é anunciada a decisão de incorporar aquele comitê ao PCdoB. À frente deste processo estavamManoel Jover Telles, Armando Frutuoso (foto à esquerda), Lincoln Bicalho Roque e Ronald Rocha. Depois disso a influência do Partido naquele importante estado aumentou significativamente, tornando-o uma das principais referências no movimento estudantil pós-1968. 

O último grande processo de incorporação ocorrido durante a ditadura foi o da Ação Popular Marxista-Leninista (AP-ML), já referida no início deste artigo. Os contatos entre a AP e o PCdoB vinham desde 1968 quando se estabeleceu uma aliança no movimento estudantil, que garantiu o ingresso do PCdoB nas diretorias da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Os laços foram se estreitando, em grande parte devido às afinidades existentes em relação à China Socialista e ao pensamento de Mao Tsé-Tung. Caminhou-se no sentido de uma unidade maior quanto à tática e à estratégia revolucionárias a serem adotadas no país. O processo não foi tão fácil e teve alguns opositores nos dois lados. As duas organizações tinham trajetórias muito diferentes. Uma delas vinha da esquerda católica que se radicalizou. Em breve as desconfianças mútuas seriam amainadas. 

 

Luis Guilhardini

Dois acontecimentos vieram a apressar os passos dessa integração. O primeiro foi a eclosão da resistência armada no Araguaia, em abril de 1972. O segundo, a dura repressão policial que se abateu sobre a direção do PCdoB, destroçando sua Comissão Nacional de Organização e assassinando Carlos Danielli, Lincoln Cordeiro Oest, Luiz Guilhardini (foto à direita) e Lincoln Bicalho Roque. Lembro que os dois últimos haviam se incorporado ao Partido após 1964. A euforia pelo início da Guerrilha do Araguaia somou-se à indignação pelos assassinatos brutais daqueles dirigentes comunistas. Em nota ao PCdoB, publicada no jornal Libertação, o Comitê Central da AP-ML afirmava: “Se a barbárie fascista intimida os covardes, enche de mais resolução os autênticos revolucionários.

A sanha terrorista desencadeada pela ditadura Médici contra o PC do Brasil e o sangue derramado por quatro de seus destacados dirigentes tornam mais inabalável a nossa firme convicção de que a todos os marxista-leninistas do Brasil cabe buscar fortalecer, prontamente, o PC do Brasil. Conduzir a Ação Popular a este objetivo tornou-se para nós, mais justo e urgente”. No dia 17 de maio de 1973, o Birô Político da Ação Popular Marxista-Leninista aprovou o documento intitulado Incorporemo-nos ao PC do Brasil. Concluía-se, dentro da AP, o processo de incorporação ao novo partido. 

 

João Batista Franco Drummond

Mesmo sem reivindicarem, Renato Rabelo, Haroldo Lima e Aldo Arantes passaram a integrar a Comissão Executiva do PCdoB. Outros quadros da direção da antiga AP foram cooptados para o Comitê Central, como Péricles de Souza, José Novaes e Ronald de Freitas. Também entrou para aquele organismo João Batista Drummond(foto à esquerda) , que havia ingressado ao Partido pouco antes de concluído o processo de incorporação. Por questões de segurança, foi montada uma segunda estrutura partidária visando a integrar o pessoal vindo da AP. Em muitos casos, os novos membros eram em número maior do que os já pertencentes ao PCdoB. Até 1979 foram mantidas essas duas estruturas (estanques) em alguns estados, como São Paulo e Bahia. Elas não podiam se comunicar entre si. A organização deveria se adaptar às condições históricas, marcadas pela existência de uma ditadura. 

No 6º Congresso do PCdoB aprovou-se o primeiro documento oficial, trazendo um balanço dessa última incorporação. Diz o texto: “Aspecto positivo da incorporação da AP foi o reforçamento político e orgânico do Partido, pelo grau de combatividade e nível político de grande número de quadros que haviam se formado nas difíceis condições de luta contra o fascismo. Esse reforço deu-se em nível regional e no Comitê Central, na reestruturação de 1975”. 

Alguns anos depois – já terminada a ditadura militar –, quando a maioria do PCB pressionada pelo fim da URSS decidiu transformar-se em PPS, abandonando o marxismo-leninismo, ocorreu o ingresso de alguns militantes daquela organização no PCdoB. Naquele período, inclusive, ocorreu um debate fraterno entre aqueles que resistiram à liquidação do antigo PCB (e tentavam a sua reorganização) e a direção do PCdoB. O objetivo era estabelecer as bases mínimas para uma futura unificação das duas organizações comunistas. Contudo, o processo não avançou e continuou existindo dois partidos comunistas (PCdoB e PCB), mas a correlação de forças entre eles havia mudado drasticamente desde a cisão de 1962. 

Conclusão

Os processos de incorporação, por mais diferentes e difíceis que tenham sido, ajudaram na permanência, consolidação e no fortalecimento do Partido Comunista do Brasil. Garantiram que este sobrevivesse à ditadura militar – assassina de um grande número de dirigentes e militantes –, ao fim do campo socialista e à ofensiva neoliberal dos anos 1980 e 1990. Muitos sucumbiram no caminho ou tornaram-se forças políticas quase sem expressão político-social nos seus países. Nada pior para uma organização revolucionária do que se tornar irrelevante para os destinos do seu povo. 

Em todos esses processos de ingresso e incorporações, ocorreram dúvidas e mesmo divergências no interior da organização que incorporava ou era incorporada. Isso é natural. Mas o que predominou foi a confiança de que aquilo representava algo positivo para a luta do nosso povo. Uma das condições da vitória popular é exatamente a existência de fortes partidos de esquerda, especialmente marxista-leninistas. Feito o balanço, ele só pode ser muito positivo. Os pequenos erros e problemas ocorridos não devem toldar o sentido principal de um movimento, no fundamental, vitorioso. 

Voltando ao começo do nosso artigo, a incorporação do PPL ao PCdoB, ainda em curso, se enquadra plenamente nos processos descritos acima. É uma resposta à altura diante de uma cláusula de barreira antidemocrática. Fortalece o PCdoB num momento em que ele está sob ataque de forças reacionárias. Isso ajuda a luta do nosso povo pelos seus objetivos estratégicos. O que não o ajudaria seria,justamente, o enfraquecimento orgânico e político do PCdoB diante dos seus inimigos de classe e mesmo diante dos seus aliados. Mais do que dúvidas imobilizadoras devemos depositar esperanças nesse processo que se concluirá no congresso do PCdoB em março deste ano. 

 

*Augusto C. Buonicore é historiador, diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas;e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.