A primeira transmissão radiofônica oficial do mundo foi realizada em 1906 nos Estados Unidos. Surgia no alvorecer do século XX, uma notável tecnologia desenvolvida por Guglielmo Marconi e Nicola Tesla. Baseada em um processo de captação por antenas de ondas eletromagnéticas que se propagam pelo espaço em alta frequência (ondas longas) e baixa frequência (ondas curtas), e de sua transformação em ondas sonoras (sinais digitais e analógicos) para sua transmissão via antenas para receptores espalhados pela Terra, as conhecidas emissoras de Rádio, iniciava-se ali a mais importante via de comunicação de massas do planeta.

As emissoras de Rádio, ao longo do século, transmitiriam programações voltadas para informação e entretenimento mudando para sempre o lazer e a cultura geral e política das populações. Isso porque a novidade trazia consigo uma característica inédita: superava barreiras físicas como fronteiras, florestas fechadas, montanhas, desertos, oceanos. As transmissões poderiam, assim, ser captadas e ouvidas em qualquer país de qualquer continente através de simples aparelhos de rádio.

Sua importância logo seria detectada pelos regimes políticos do mundo que. passariam a utilizar as emissoras de Rádio para transmitir suas mensagens. Foi assim tanto na América como na Europa, Ásia ou África. Na Segunda Guerra Mundial seu papel se ampliou. Por um lado, foram utilizadas pela Alemanha nazista e Itália fascista para mobilizar suas populações. Por outro, foram utilizadas pelos Aliados para a transmissão de informações e senhas militares privilegiadas para os exércitos e povos que combatiam o nazi-fascismo, papel em que se destacou a Rádio BBC de Londres.

 

 

No pós-guerra com o mundo dividido entre Leste-Oeste e a Guerra Fria em andamento desenhou-se mais claramente o papel ideológico das emissoras de Rádio dos dois blocos mundiais A Rádio Voz da América dos Estados Unidos assumiu a liderança na transmissão de informações e da posição política deste país e dos seus aliados no bloco capitalista. A Rádio Moscou da URSS, por seu lado, assumiria a liderança na divulgação de informações e da posição política deste país e dos seus aliados no bloco socialista.

Na década de 60 do século XX, porém, ocorreu um ponto de inflexão neste quadro. A ascensão de Krushchev ao poder na URSS provocou mudanças importantes na política interna e exterior deste país. Com isso, divergências ideológicas se aprofundaram no campo socialista.

Surgiu, então, um novo bloco socialista formado pela China e pela Albânia. Esta reviravolta se refletiria na área da transmissão de informação. As Rádios Pequim da China e Tirana da Albânia passariam a assumir papel de destaque no apoio e na transmissão de informações inéditas sobre os movimentos e guerras de libertação contra o domínio colonial europeu na África e na Ásia e contra o domínio imperial dos Estados Unidos na Ásia e América Latina. Essas emissoras também influenciariam em muitos países do então chamado Terceiro Mundo a ação de partidos e grupos de esquerda.

AMÉRICA LATINA

Os Estados Unidos, depois de perder domínio político sobre Cuba, após uma revolução vitoriosa dos cubanos liderados por Fidel Castro, decidiram nos anos 60 do século XX endurecer o controle da América Central e do Sul para manter sua hegemonia. Seu caminho foi desenvolver uma ação coordenada para a derrubada através de golpes de Estado de diversos governos latino-americanos democraticamente eleitos, promovendo em seu lugar ditaduras militares. Espalharam-se pela região regimes opressores que investiram com fúria inédita contra qualquer movimento de protesto, reivindicatório, ou de mudança. Foi uma época de prisões de adversários políticos, de torturas, de assassinatos, de censura à imprensa, de suspensão de direitos constitucionais, de proibição de publicações de oposição. Como reação afloraram em vários países movimentos insurrecionais. No Brasil também.

Com os canais tradicionais de informação controlados pelos militares no poder os partidos de oposição brasileiros buscaram saídas. O PCdoB foi um deles. Com seus militantes e seu jornal A Classe Operária na clandestinidade saiu em busca de aliados internacionais no campo socialista. O Partido do Trabalho da Albânia, que vencera em seu território as tropas fascistas de Mussolini e depois as tropas nazistas de Hitler na Segunda Guerra Mundial e implantara o socialismo em seu território, estava aberto a prestar ajuda. Ofereceu ao PCdoB um canal de informação para que divulgasse suas posições e suas ações: a Rádio Tirana. Começavam então sob responsabilidade do PCdoB as transmissões em português da Rádio Tirana.

PIONEIROS

Para cumprir a tarefa assumida, o PCdoB passou a enviar para a Albânia –Shqiperia em albanês ou Terra das Águias – várias equipes profissionais. Caberia a elas formatar os primeiros programas em português da Rádio Tirana. Consolidava-se, assim, o principal meio de informações do PCdoB com seus filiados. Como na época, pouca informação política não oficial circulava pelo Brasil, aquelas transmissões assumiriam papel de destaque na quebra do muro da censura à imprensa. E, também, superavam as dificuldades de circulação de informações dentro do partido uma vez que contornavam os perigos de prisão que representavam a impressão e distribuição do seu jornal A Classe Operária no país.

As primeiras equipes enviadas foram: Alberto e Ana Maria Dias que desembarcaram na Albânia em 1967. Caberia a Alberto inaugurar a programação em português da Rádio Tirana. Em seguida, em 1969, chegaram Carlos (2) e Emília Rodrigues que ampliariam o projeto desenvolvido por Alberto. Após 1970, chegaram Álvaro e Lourdes. Eles consolidariam a programação em português. Outros profissionais se seguiriam até 1980 quando a programação em português sob responsabilidade do PCdoB foi encerrada.

DEPOIMENTO DE ALBERTO DIAS

“Membro de PCdoB, desde 1962, quando frequentava o quarto ano da Faculdade de Direito, conheci Pedro Pomar que mantinha com um grupo de jovens discussões e análises sobre o marxismo. Pude participar das atividades partidárias quando o Brasil ainda vivia uma democracia, um tanto conturbada pela renúncia de Jânio Quadros e a mudança do presidencialismo para parlamentarismo para que João Goulart-vice pudesse tomar posse como presidente. Os tempos democráticos duraram pouco tempo. A noite negra de 31 de março de 1964 para primeiro de abril colocou fim à democracia com o golpe militar que introduziu a ditadura.

 

Joaquim Barbosa (Alberto) e Maria Angélica Cicarelli B. Oliveira (Ana). Levaram o filho chamado Maurício C. B. Oliveira (Mário). Ficaram de 1968 a 1970.

 

As discussões em grupo sobre o marxismo diminuíram, mas o companheirismo entre mim e Pedro Pomar se fortaleceu, principalmente depois de meu casamento no final de 1965. Nesta época, Pomar passou a usar a casa que aluguei como um dos pontos para passar algumas horas de descanso. Foram dois anos de descanso para ele e de aprendizado para mim e minha esposa. Foi o Pomar que, numa noite em casa, me deu a notícia de que o Partido do Trabalho da Albânia havia disponibilizado a Rádio Tirana para que o PCdoB pudesse propagar as suas metas rumo ao socialismo. Foi ele que, com aprovação do Comitê Central, me convidou para cumprir essa tarefa. Era o mês de setembro de 1967, quando um filho já fazia parte da minha família. O casal Alberto e Ana Maria e o pequeno Mario Dias, com onze meses, voaram para Paris em meados de dezembro. De lá, com escala em Roma, chegaram a Tirana no dia 21 de dezembro de 1967.

ALBÂNIA

A recepção no aeroporto da capital albanesa foi fraternalmente amistosa. Duas pessoas lá estavam, falando espanhol e francês, para nos conduzir ao centro da cidade e para o apartamento que nos estava reservado num prédio de três andares onde já residiam um casal de suíços com um filho pequeno e uma família, cujo pai e quatro filhos eram neozelandeses. Fomos avisados que, após um descanso de uma semana, com passeios pela cidade e arredores para ver neve pela primeira vez, faríamos uma viagem por toda a Albânia. Sempre acompanhados de uma intérprete que falava francês, conhecemos todas as principais cidades do país, visitamos fábricas de tecidos, colônias agrícolas, creches, escolas de alfabetização, museus, teatros, restos de construções romanas e gregas. Viajamos mais de um mês e pudemos ver como, em pouco mais de vinte anos de socialismo, iniciado em 1945, o progresso em prol das populações mais pobres se fazia presente nos mais diversos recantos do país.

Mas, e as transmissões radiofônicas? Voltando a Tirana no início de fevereiro, finalmente, eu e minha mulher, fomos recebidos pelo Diretor da Rádio e apresentados aos funcionários, principalmente de fala latina (francês, espanhol) com quem faríamos o aprendizado e trocaríamos informações. Ficamos sabendo que, por problemas técnicos, só no início de março faríamos a primeira transmissão para o Brasil, que seria repetida, em diferentes horários e ondas curtas, para Portugal, Angola, Moçambique e até mesmo Timor Leste. Tomamos conhecimento, então, dos problemas técnicos envolvidos, agravados pela sabotagem que a Rádio Voz da América dos Estados Unidos desenvolvia, tentando atrapalhar com ruídos as transmissões albanesas. Os sabotadores logo perceberam que, em Tirana, existia uma rádio bastante forte, montada pelos chineses, e que tinha como foco se assemelhar à BBC de Londres.

Iniciamos imediatamente o trabalho na Rádio, conhecendo os programas, assistindo às gravações, tentando ser locutores sem nunca ter sido, aprendendo como corrigir os erros: o locutor ou a técnica parava a gravação, pedia a repetição da frase, avaliando a postura diante do microfone, dosando o volume da voz e controlando a respiração. Fomos apresentados ao controlador externo à cabine de locução. Ele era o responsável pela transmissão em espanhol e que, por conhecer um pouco de português, exerceria a mesma função conosco.

Soubemos, então, que o programa radiofônico era escrito em albanês por albaneses e traduzido diariamente para diversos idiomas: espanhol, francês, inglês, italiano, alemão, sueco, árabe, etc. Ou seja, a transmissão era a mesma para todos os países que mantinham pessoal na Albânia. Havia apenas uma diferença: ao final da programação um pequeno espaço era reservado para um noticiário específico do país para o qual era dirigido o programa.

PRIMEIRA TRANSMISSÃO

Sem conhecer o albanês, resolvemos que, diariamente, esperaríamos as traduções da programação em espanhol e francês e, a partir delas, faríamos a tradução para o português. Deu certo. Assim, finalmente, no dia 08 de março de 1968, fizemos a primeira transmissão em língua portuguesa, que se iniciou com a voz de Ana Maria, uma mulher, no Dia Internacional da Mulher, pronunciando com emoção as palavras: AQUI FALA TIRANA, CAPITAL DA ALBÂNIA.

Pouco a pouco, conversando com a direção da Radio, conseguimos aumentar o espaço para as notícias sobre o Brasil, América Latina, Portugal e os países de língua portuguesa da África e Ásia. Concomitantemente, conseguimos autorização da direção da Rádio para intermear as notícias com música brasileira, pois, aconselhados pelo Pomar, tínhamos levado discos de Caetano, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Edu Lobo, Vinicius, etc.

Para preparar este noticiário assistíamos programas jornalísticos dos canais de televisão da França e da Itália que captávamos muito bem na Albânia. Em maio de 1968, pudemos acompanhar pela TV as lutas de rua em Paris como há muito não se via, com palavras de ordem socialistas, de operários em busca de melhores salários e de estudantes, em solidariedade àqueles e pelo aperfeiçoamento do ensino. Também líamos os jornais e revistas de países europeus e até do Brasil que chegavam com atraso, mas possibilitavam acesso a notícias e artigos.

A rotina nos ensinou que, chegando na Rádio por volta de 07,30 horas, ao meio dia já era possível gravar a transmissão de trinta minutos que iria ao ar à noite. Sim, as transmissões eram gravadas e repetidas em vários horários noturnos. Tínhamos, após o almoço, tempo para passear na cidade, ler, estudar, receber aulas de albanês, língua difícil já que as palavras eram declinadas como no latim e no grego. Aperfeiçoamos bastante nossos conhecimentos de francês e espanhol, pelas traduções diárias que fazíamos e pela convivência com Nils e sua esposa, ele sueco que viveu bom tempo na França e ela suíça de fala francesa.

A CLASSE OPERÁRIA CIRCULANDO

Quanto ao espanhol, tivemos a felicidade de conhecer Felix, um peruano de origem inca, nascido em Cusco, alegre ao violão, cantor vibrante. Esporadicamente, ele era chamado ao palco pela principal atriz albanesa, Vachezela, para juntos entoarem “El dia en que me quiera”. Com esse peruano, que se tornou nosso grande amigo e nos ajudou a melhorar nosso espanhol, pudemos concretizar um pedido do João Amazonas de traduzir para o espanhol e imprimir ao menos uma tiragem do jornal A Classe Operária, que foi distribuída em várias embaixadas existentes na Albânia.

Vários dirigentes do PCdoB visitaram o país nos dois anos de nossa estadia: Carlos Danielli, Maurício Grabois, Dyneias Aguiar. Mauricio permaneceu quase um mês, principalmente para tratar de um problema de saúde. Ele aproveitou a estadia para fazer uma exposição para o Comitê Central do Partido do Trabalho da Albânia sobre a situação do Brasil em plena ditadura e o esforço dos patriotas brasileiros para derrubar os militares golpistas, pois já estava em preparação a luta armada que, depois se soube, ficou conhecida como a Guerrilha do Araguaia. Essa exposição foi datilografada por mim enquanto Grabois, andando de um lado para o outro, expunha com clareza e rapidez seu conhecimento sobre a realidade brasileira. E como ele conhecia o Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste! Essa exposição ensejou o enriquecimento de nossas transmissões com artigos baseados em seus ensinamentos.

O tempo corria em dias rotineiros, mas nunca fomos esquecidos pela direção do Partido do Trabalho da Albânia. Sempre recebíamos convites para as sessões de teatro, para as apresentações de danças folclóricas, para os jantares de recepção a visitantes ilustres, para uma caçada a patos selvagens, para temporadas na praia de Durres, além de outras amabilidades, incluindo, uma viagem de turismo a Viena e Roma, já no mês de outubro de 1968.

Na Rádio tivemos a oportunidade de transmitir dois avanços relacionados às conquistas internas albanesas: o êxito obtido pela completa eletrificação do país, meta de grande relevância porque permitia uma arrancada na industrialização e a comemoração pelo nascimento da criança que completou a cifra de 2(dois) milhões de habitantes no pequeno país que precisava aumentar sua população para garantir os avanços econômico-políticos em andamento.

O RETORNO

Em novembro de 1968, no início de mais um inverno rigoroso, fomos aconselhados por médicos e pela direção do Partido do Trabalho da Albânia a levar de volta ao Brasil nosso filho Mario que, no inverno anterior, quando de nossa chegada a Tirana, havia adoecido gravemente em razão de uma broncopneumonia. Esse problema se repetiu duas vezes no decorrer do ano, enfraquecendo-o bastante. No início de dezembro, minha esposa Ana Maria embarcou com ele para o Brasil. Chegou ao país num momento de grande intranquilidade, às vésperas da promulgação, em 13 de dezembro de 1968, do famigerado AI5, quando a ditadura militar brasileira endureceu muito o regime. Começou então uma época de caça feroz aos patriotas que ousavam manifestar qualquer desacordo com a situação em vigor no país ou que simplesmente tivessem passado por países socialistas.

Continuei a trabalhar sozinho nas transmissões em português da Rádio Tirana. Senti muita falta da parceira de afeto e de trabalho, já que ela era melhor locutora do que eu. Mas dei conta do recado. Apenas em meados de 1969 chegaram os meus substitutos, que conheci como Carlos e Emília. Mais tranquilo com as novas forças que chegaram e depois que os substitutos também viajaram por toda a Albânia e puderam se inteirar das vitórias conquistadas pelo PTA, sua ajuda no trabalho e a divisão de tarefas me possibilitaram revisitar a cidade de Tirana nos seus cantos e recantos. Conheci bares frequentados por ciganos albaneses, que, forçoso é dizer, ocupavam a posição mais baixa na escala social do país, sendo até mesmo evitados. Almocei em restaurantes de comida típica. Aprendi a fazer e a gostar do café turco em que a borra fica no fundo da xícara.

Com a divisão de trabalho, consegui ir a Roma para, na Embaixada do Brasil na linda Praça Navona, revalidar o passaporte, cuja vigência era então de dois anos e estava para vencer. Voltei a Tirana onde fiquei até início de dezembro, quando iniciei o retorno ao Brasil, em viagem turística com escala em Sófia, Budapeste, Viena e Roma. Recebi sugestão para entrar no Brasil, por caminhos ilógicos: fiz de avião Roma-Buenos Aires; de lá, em ônibus, viajei para o norte da Argentina (Corrientes e Posadas); depois, no Brasil, passei por Santa Maria, Porto Alegre e São Paulo. Deixara a Albânia, a Terra das Águias, com um aprendizado: formação marxista e militância partidária consolidada. Saudades!”

DEPOIMENTO DE EMILIA RODRIGUES

 

Branca Ferrari (Emília) e Jalmar Nordin Carlson (Carlos). Ficaram de julho de 1969 a julho de 1974.

 

“Éramos um jovem casal sem filhos de militantes do PCdoB recém-saído da universidade. Desenvolvíamos várias atividades sob coordenação de Carlos Magalhães então dirigente regional do PCdoB. Uma delas, era a guarda e manutenção de uma biblioteca de marxismo-leninismo numa época em que as forças policiais da ditadura apreendiam livros apenas por ter capa vermelha e prendiam os que se atreviam a ler qualquer texto político de esquerda. Outra, era a colaboração na redação de artigos para o jornal A Classe Operária e impressão do jornal em mimeógrafo, atividade também passível de prisão.

Um dia, Magalhães nos transmitiu um inusitado convite da direção central do PCdoB: “estaríamos dispostos a cumprir uma tarefa no exterior para o partido?”. Sem saber para onde iríamos ou o que iríamos fazer aceitamos o desafio. Pedimos demissão de nossos empregos oficiais e providenciamos passaportes. Antes de viajar transferimos a imensa biblioteca e o mimeógrafo do apartamento em que morávamos para outro local. Claro que aquilo demandou um bom tempo. Com muita discrição carregamos dia-a-dia dentro de pastas de papelão levadas nos braços como simples arquivos de aulas da universidade as centenas de livros que guardávamos. O mimeógrafo exigiu outro malabarismo madrugada adentro uma vez que não podíamos atrair a atenção de ninguém.

Quando tudo estava organizado tomamos um ônibus e desembarcamos em São Paulo. Só ali fomos informados por um membro do PCdoB o que significava o convite: viajar para a Europa. Destino da viagem: Albânia. Tarefa: trabalhar na Rádio Tirana produzindo e transmitindo programas em português para o Brasil. Entramos no avião ainda surpresos pela oportunidade de conhecer um pequeno, mas destemido país, que optara pelo socialismo como forma de poder e pelo marxismo-leninismo como orientação política.

Ao chegarmos ao aeroporto de Tirana em julho de 1969 fomos recepcionados calorosamente pelo brasileiro Alberto Dias a quem iríamos substituir na Rádio Tirana e que voltaria logo depois ao Brasil. Também estavam lá funcionários do Partido do Trabalho da Albânia, Perparimi e Ali, tradutores de espanhol, que nos acompanhariam em todo o período que por lá vivemos. Ficamos alojados temporariamente em uma casa. Nesse período Alberto, que morava num prédio de apartamentos destinado aos estrangeiros que trabalhavam na Rádio Tirana, logo nos apresentou aos futuros colegas de trabalho. Eles produziam programas para seus respectivos países em seus respectivos idiomas: espanhóis, colombianos, peruanos, bolivianos, franceses, suecos, alemães, neozelandeses, australianos.

 Um ano depois muitos desses colegas formariam o bloco de torcida pelo Brasil na Copa de 1970, cujos jogos assistimos pela televisão instalada no apartamento do espanhol Luiz e da colombiana Lina. Foi uma festa fraterna com os estrangeiros da Rádio e com os estudantes latino-americanos que cursavam a universidade de Tirana. Posteriormente, nas frias noites do inverno europeu, eles nos visitariam na casa onde morávamos e ali se desenvolveriam longos papos políticos com troca de experiências mútuas, acompanhados das excelentes nozes locais. Sim, tínhamos vida social por lá, apesar do isolamento em que estávamos e de ser os únicos brasileiros naquele período

O PAÍS

A primeira gentileza que os albaneses nos ofereceram antes de começarmos o trabalho na Rádio foi conhecer o país de Norte a Sul. Esta iniciativa inteligente do Partido do Trabalho da Albânia tinha dois objetivos. Um deles era o de que os recém-chegados conhecessem in loco o seu país e o seu povo, bastante diferentes dos de seus convidados. Outro, para que em suas transmissões quando noticiassem sobre o que acontecia na Albânia tivessem noção do que estava sendo proposto pelo Partido do Trabalho e pelos seus dirigentes para o país nos planos político, econômico, cultural.

Embarcamos em um automóvel com motorista e tradutores de espanhol e percorremos todas as regiões da Albânia. A hospedagem era em hotéis locais. Conhecemos, ao Norte, a região de Skoder e Puke na fronteira com Montenegro; a Leste as regiões de Elbasan e Peshkopie, na fronteira com a Macedônia e a região de Kukes na fronteira com Kosovo (então Yugoslávia); ao Sul, as regiões de, Korça, Girokaster, Pogradec na fronteira com a Grécia; ao longo do Mar Adriático, as regiões de Durres, Vlora, Lushnjie e, no litoral do Mar Jônico, o sítio arqueológico de Butrinto um belo conjunto de ruínas de antigas civilizações ilíria, romana, grega que haviam ocupado a região por séculos. Circulamos por planícies, praias, montanhas e florestas magníficas.

Visitamos indústrias, cooperativas agrícolas, termoelétricas. Por todo lado nos recebiam com manifestações de simpatia. Eram homens e mulheres trabalhadores com os quais conversávamos à vontade através dos tradutores, com perguntas e respostas de ambas as partes.

Em uma das cooperativas agrícolas que visitamos, surpreendeu-me a sagacidade de uma camponesa. Depois de muito caminharmos por toda a cooperativa a camponesa que nos acompanhava apalpou os meus braços e sorrindo falou para o tradutor: “diga a ela que tem pernas muito fortes e poderia trabalhar em uma cooperativa agrícola, mas tem braços muito fracos, logo, não aguentaria o duro trabalho no campo”. Ela sequer imaginava que estava diante de uma pessoa cujo máximo esforço físico diário era teclar uma máquina de escrever. Pensei logo no ditado popular ‘quem sabe, sabe’.

Naquela viagem nos chamou a atenção a ausência de igrejas, sinagogas ou mesquitas embora a maioria da população (mais de 60%) fosse de tradição muçulmana. Ao regressar, perguntamos sobre o que não havíamos visto na viagem a um funcionário do Comitê Central do Partido do Trabalho. Sua resposta foi a de que após a vitória sobre o nazi-fascismo e o início da República Popular Socialista da Albânia em 1945 as igrejas católica e ortodoxa, além das mesquitas, tinham se transformado em locais de oposição às medidas propostas pelo partido e de sedição à construção da nova sociedade.

Entre as medidas adotadas então pelo governo albanês estavam a alfabetização da população que pulou de meros 15% em 1938 para 98% no final dos anos 60; a instituição do Estado laico e da escola pública laica; escolaridade obrigatória para todas as crianças, envolvendo as meninas que não eram autorizadas em inúmeras famílias a frequentar escola; incentivo para as mulheres trabalharem fora de casa e em qualquer profissão pois anteriormente por motivos religiosos isso não acontecia em muitas áreas do país. Também foi instituída a proibição de uso da burca e do xador que cobrem total ou parcialmente o corpo de mulheres muçulmanas. A única permissão foi para o uso de um simples lenço sobre a cabeça.

Desta forma, todos os locais de culto foram fechados e os clérigos das diferentes confissões religiosas deixaram o país. A religião e as festas religiosas foram transformadas em questão restrita ao ambiente doméstico e à vida de cada família sem manifestações públicas. Uma curiosidade consequente desta complicada situação foi que o governo proibiu o uso de barba pelos homens. O objetivo da decisão, diziam, era reduzir a influência ortodoxa e muçulmana sobre a população masculina que tinha no fetiche barba a identificação de sua identidade religiosa.

A questão da integração das mulheres em igualdade de condições na nova sociedade, uma luta constante do Partido do Trabalho da Albânia, acumulava avanços significativos. Se, em 1938 só 4% das mulheres albanesas trabalhava fora de casa; na década de 60 esse índice pulara para 40%. Em instâncias do poder, 40% das vagas no Conselho do Povo eram ocupadas por mulheres e, na Assembléia Popular, 31%. Na área da educação feminina, o número de meninas nas escolas secundárias era 175 vezes superior ao de 1938. E, para facilitar a vida doméstica das mulheres, o governo havia criado uma cadeia de locais tipo padarias com fornos especiais. Ali as mulheres deixavam, diariamente, antes de se dirigir aos locais de trabalho, os alimentos a serem assados que seriam recolhidos prontos ao voltar para casa ao final da jornada. Detalhe: a tradicional culinária albanesa do dia-a-dia, de origem turca, envolvia folhados assados salgados chamados Bureka recheados de carne, espinafre, berinjela ou queijo ou folhados doces chamados Baklava.

No plano econômico, para reduzir as enormes desigualdades regionais, o Partido do Trabalho da Albânia adotara medidas importantes que gerariam reação de setores atrasados da sociedade. Nas regiões mais pobres do país, montanhosas, sem áreas para desenvolver a agricultura, fora acelerada a exploração estatal do subsolo rico em minerais como cobre, cromo, ferro, níquel. Nas demais regiões foram expandidos, pela adoção do sistema de cooperativas agrícolas, os cultivos de cereais, legumes, verduras, tabaco, frutas e desenvolvida a pecuária e avicultura. Em 1970 não só as colinas tinham se transformado em extensos laranjais como a meta de eletrificação de todo o país fora alcançada. Este último sucesso com a ajuda dos chineses. Também com a ajuda chinesa a Albânia desenvolvera seu parque industrial estatal envolvendo indústrias do ramo têxtil, químico, açucareiro, medicamentos, siderúrgico.

A CIDADE

Tirana era, então, a capital e maior cidade do país. As pessoas circulavam pelas ruas, passeavam, frequentavam cafés e confeitarias. Quando havia espetáculos teatrais, seja musicais folclóricos, óperas, ou dramatizações, os teatros lotavam. Pelas ruas circulavam poucos carros sempre oficiais. O comércio era limitado ao que se produzia no país e constituído majoritariamente de estabelecimentos estatais. Não havia produção industrial de carros, eletrodomésticos ou cosméticos. Mas havia abundância de tapetes magníficos de fabricação artesanal pela tradição muçulmana de usá-los espalhados por todo o ambiente doméstico. A indústria têxtil era de boa qualidade, então, bonitos tecidos lotavam as lojas. Porém, a confecção feminina e de calçados femininos, só com produção artesanal. Já camisas masculinas confeccionadas com bons tecidos de algodão eram encontradas fartamente nas lojas, um indício ainda latente da tradição muçulmana onde o homem é que mostra vaidade e boa aparência social.

Havia feiras livres sem controle estatal que comercializavam frutas, legumes, ovos produzidos em pequena escala. Porém, a produção frutífera e de legumes em grande escala só era comercializada em estabelecimentos estatais com um detalhe interessante: na época de final de ano havia uma grande oferta e variedade de frutas frescas e secas. O país também produzia bons vinhos tintos e brancos. Já no setor de panificação, além de biscoitos, a oferta se limitava a um único tipo de pão preto muito bom feito com mescla de cereais, pois o país não cultivava trigo.

Tirana era cheia de cafés, onde a bebida era servida à moda turca: uma mistura direta de água fervente com o pó e açúcar sendo necessário para beber esperar alguns segundos para que o pó do café se acumulasse no fundo da xícara. Nesses estabelecimentos a frequência era majoritariamente de homens que podiam beber ali outra tradição herdada dos turcos, o Raki, um destilado de ameixa com alto teor alcoólico. Também havia quiosques espalhados pela cidade que vendiam cigarros de boa qualidade de fabricação albanesa e algumas confeitarias onde se podia tomar um chocolate quente muito bem feito com tortas doces deliciosas. E mais: pequenas lojas de chocolate artesanal ofereciam variedade de bombons pois uma tradição no país era ofertar às visitas um café turco acompanhado de bombom.

Nós e outros estrangeiros da Rádio, aos domingos, optávamos por almoçar num grande hotel no centro de Tirana. O hotel tinha um restaurante enorme, que oferecia pratos ocidentais, em geral italianos, muito bem elaborados. Era o nosso descanso semanal agradável com boa comida e bons papos com nossos colegas de trabalho estrangeiros.

A RÁDIO

Ao regressarmos a Tirana da viagem pelo país nos instalaram em uma casa de dois andares mobiliada, com televisão, aquecimento e quintal, em uma rua onde se encontravam embaixadas de países que mantinham relações diplomáticas com a Albânia. Tínhamos ali duas auxiliares durante a semana, Nana e Madjia cedidas pelo Partido do Trabalho, uma vez que passávamos oito horas trabalhando na Rádio. Durante o dia até o nosso regresso elas cuidavam da casa, da roupa, da cozinha, dos suprimentos domésticos. 

 

Faixada da Rádio

 

Além disso, Nana e Madjia estavam sempre atentas às condições de nossa saúde. No caso de qualquer indisposição ou emergência, chamavam por telefone nossos tradutores que nos levavam a médicos, hospitais ou clínicas odontológicas. Um exemplo: tive um problema odontológico sério que exigiu uma cirurgia feita por dentistas locais e acompanhada por Carlos que fizera 3 anos de Medicina no Brasil antes de optar pelo curso de Economia. Ele elogiou depois a competência dos cirurgiões-dentistas do país, pois me recuperei rapidamente do procedimento. Nesses dias de repouso em casa nossas queridas auxiliares albanesas se comportaram como mães atentas à recuperação e acompanhamento da paciente, esbanjando atenção e cuidados. Elas também nos auxiliavam com o idioma e com informações sobre ruas, comércio, enfim, com o que precisássemos na cidade. Sentimos naquela instalação residencial diferenciada que o Partido do Trabalho da Albânia tinha muito respeito pelo PCdoB.

Nossa casa estava situada a várias quadras da Rádio Tirana, mas o deslocamento para o local de trabalho não exigia uso de transporte coletivo que era gratuito, constituído na época de ônibus antigos, aparentemente de construção soviética. Então caminhávamos até lá sem esforço. Nosso primeiro dia de trabalho consistiu numa reunião, na companhia de Alberto Dias, com o Diretor da Rádio que nos saudou e se colocou à disposição para o que precisássemos. Depois, fomos apresentados aos funcionários albaneses que seriam os responsáveis pela parte técnica das gravações e transmissões.

Oficialmente, naquele dia, fomos integrados à equipe de funcionários da Rádio Tirana. A partir dali, passaríamos a receber um salário semelhante ao dos funcionários albaneses entregue no final de cada mês. Um bom salário, esclareço, uma vez que não tínhamos de cobrir despesas domésticas assumidas pelo Partido do Trabalho como parte da solidariedade com o PCdoB. Como nossos gastos pessoais no comércio eram reduzidos, abri uma conta na Caixa Econômica local para depositar o valor recebido pelo casal como salário e não utilizado. Antes de partir do país, anos depois, retirei a boa quantia economizada, coloquei num envelope e entreguei a um funcionário do Comitê Central do Partido do Trabalho da Albânia com os meus agradecimentos pela estadia no país.

Na Rádio, após as apresentações de praxe, Alberto nos levou à uma ampla sala destinada à redação do programa onde nos mostrou como produzia o material a ser transmitido. Depois de ver cópias de programas anteriores, assistimos em estúdio à gravação daquele dia. O batismo na nova função fora feito com sucesso. Quando Carlos e eu assumimos a responsabilidade pelas transmissões, após o retorno de Alberto para o Brasil, percebemos que precisávamos diversificar nossas fontes de informação. A direção da Rádio atendeu nosso pedido de assinatura de vários jornais brasileiros para acompanharmos o que ocorria oficialmente no Brasil. Também repassavam o material da Agência Albanesa de Notícias e de outras agências internacionais de notícias que a Rádio recebia. Além disso, continuamos a transmitir artigos do jornal A Classe Operária que o PCdoB encaminhava para o país através de seus próprios canais. Utilizávamos, ainda, como fontes de informação nossos amigos estrangeiros e jornais que eles nos emprestavam. A locução do programa era dividida entre Carlos e eu. Diariamente redigíamos o programa a ser gravado composto de noticiário internacional, noticiário sobre a Albânia, noticiário sobre o Brasil. Líamos, também, artigos específicos da Classe Operária ou de nossa autoria sobre o que ocorria em nosso país.

A partir de 1972 com a chegada de um novo casal de brasileiros, Álvaro e Lourdes, enviados pelo PCdoB para integrar a equipe, o programa em português da Rádio deu um salto de qualidade. Depois da gravação do dia, fazíamos reunião de pauta para discutirmos o que iríamos transmitir no dia seguinte e já dávamos início ao trabalho de redação. O programa não só foi ampliado, como diversificado, pois eram quatro redatores de artigos e notícias, quatro vozes diferentes para transmissão, quatro opiniões para a escolha do noticiário. Ali atingimos o que de melhor podíamos oferecer aos nossos ouvintes no Brasil: pessoas que captavam a programação ao acaso e de quem vez ou outra recebíamos alguma carta com comentários estimuladores; militantes do PCdoB que tomavam conhecimento das transmissões pelo jornal A Classe Operária e, depois, o pessoal do Araguaia que tinha na programação da Rádio Tirana uma fonte confiável de informação.

A RESIDÊNCIA

A chegada de Álvaro e Lourdes alterou para melhor não só a dinâmica do trabalho na Rádio como em nossa casa. O casal foi residir conosco na grande casa que ocupávamos. Eles tinham um filho de alguns meses, Duduca, que se transformou na alegria do pedaço. Passamos assim a constituir uma grande família: os pais do garoto e os tios de empréstimo. Nossa vida doméstica era como a de qualquer família. Nos revezávamos no preparo do jantar, na manutenção da caldeira de aquecimento à base de carvão, nos cuidados do garotinho. E não esquecíamos de manter a atividade política em dia organizando, vez ou outra, reuniões domésticas para discutir o desenrolar da política internacional e a do Brasil.

Os homens da casa, Carlos e Álvaro, influenciados pelas palavras de ordem que emanavam da China mergulhada, então, no complexo processo da Revolução Cultural, um belo dia resolveram aplicar na prática o slogan de ‘aliar o trabalho intelectual ao manual’. Pois é, não estávamos imunes, como os jovens da esquerda mundial, ao que acontecia na grande nação. Desta forma, do dia para a noite, com visível espanto de nossas auxiliares albanesas, os dois viraram ‘camponeses’.

No grande quintal da casa tinha um pequeno casebre para ferramentas onde eles decidiram instalar gaiolas para criar coelhos, encomendados às nossas auxiliares que atendiam a todas as demandas dos moradores. A partir disso, diariamente, antes de sair para o trabalho, eles tratavam de alimentar os bichinhos, limpar as gaiolas e acompanhar seu crescimento. Quando os coelhos atingiam o ponto de abate os dois encarregavam-se pessoalmente da tarefa. Resultado: durante um bom tempo degustamos deliciosos jantares à base de coelho a provençal. Depois dessa experiência, eles decidiram fazer uma pequena plantação de feijão preto. Como havíamos recebido de presente de Pedro Pomar em visita à Albânia alguns pacotes do pretinho nacional, Carlos e Álvaro separaram um pacote para semente. Em seguida prepararam a terra no quintal com enxadas e plantaram os grãos de feijão. Por inacreditável que pareça, a plantação se desenvolveu bem e resultou em boa colheita. Desta forma, durante alguns meses comemos boas feijoadas. Claro que agradecemos de coração aos chineses por terem criado o slogan de unir o trabalho intelectual ao manual.

Ainda sob a influência dos processos culturais vindos da China, por sugestão de Álvaro, decidimos iniciar um programa de exercícios físicos diários num local que nossos tradutores encontraram. Porém, algum tempo depois Carlos começou a demonstrar cansaço e desânimo. Um dia passou muito mal. Então, como a racionalidade predominou, pois poderia ser algum problema cardíaco ou cerebral, resolvemos encerrar nossa atividade de atletas domésticos. Por outro lado, Lourdes e eu decidimos organizar uma festa de aniversário para Duduca, que estava para completar um ano. Embora a iniciativa não fosse comum por lá, a festinha contou com a presença de crianças filhos de nossos colegas estrangeiros e também de alguns funcionários da Rádio. Duduca celebrou, assim, seu primeiro aniversário na Terra da Águias com direito a uma animada festinha e a um bonito bolo de aniversário que consegui fazer naquela ocasião.

Nossa vida cultural no país era cultivada de diversas formas. Assistíamos, a convite do Partido do Trabalho da Albânia, a óperas encenadas nos teatros de Tirana, assim como espetáculos de dança e de músicas regionais. Em casa, à noite, ligávamos os canais de TV da Itália de fácil recepção. Acompanhávamos os noticiários diários e os debates políticos. Além disso, víamos bons filmes clássicos e modernos do período áureo do cinema italiano. Também líamos livros de autores brasileiros que os dirigentes do partido nos presenteavam quando visitavam a Albânia, além da literatura política e de ficção albanesa traduzida para o espanhol. A Albânia tinha bons escritores.

VISITANTES

De tempos em tempos chegavam à Albânia dirigentes do PCdoB que ficavam alguns dias por lá. Embora sem muito tempo disponível para nós pelos seus compromissos com os albaneses, sempre abriam algum espaço para nos encontrar. Eram boas ocasiões para confraternização e para atualização sobre a vida política no Brasil. No período em que trabalhei na Rádio visitaram o país em épocas diferentes Carlos Danielli e Guilhardini para participar de encontros internacionais promovidos pelo Partido do Trabalho da Albânia, além de Pedro Pomar e Diógenes Arruda. Com Danielli e Ghilhardini tivemos encontros rápidos, mas envolvidos em grande afeto e apoio pelo trabalho que desenvolvíamos na Rádio. Com Pomar tivemos ocasião de conversar mais longamente durante alguns dias. Ele nos apontou caminhos de raciocínio extraordinários. Por exemplo, mostrava preocupação naquele período com o recuo da atuação do partido nos centros urbanos e sindicatos, onde se concentrava o maior número de trabalhadores. Na sua opinião, só um forte preparo político dos trabalhadores e um forte apoio urbano de massa garantiria o desenvolvimento da luta já iniciada no Araguaia.

Diógenes Arruda e Teresa, que haviam se instalado em Paris, passaram a nos visitar com mais frequência. Arruda tinha como características inerentes à sua personalidade uma habilidade e um didatismo políticos inacreditáveis. Os dois foram para nós de uma fraternidade enorme e constituíram um forte ponto de apoio psicológico. Quando nos visitavam, seu modo de ser descontraído, alegre e generoso de nordestinos, nos envolvia num clima de amizade e familiaridade que nos fazia esquecer que estávamos há muitos anos afastados de nosso país, nosso povo e nossa cultura.

CONFLITOS

Não tínhamos conflitos em nosso dia-a-dia? Sim, como em qualquer família. Mas procurávamos contorná-los da melhor forma possível. No entanto, os problemas individuais, ficavam no âmbito de cada casal. Um deles, ocorreu comigo. Meu relacionamento com Carlos sinalizava exaustão e não sabíamos ainda como resolver no isolamento em que vivíamos. A ocasião surgiu de forma bastante complicada quando chegou a época de renovar passaportes. Viajamos para o exterior. Eu escolhi renovar o passaporte na embaixada brasileira de Roma. Carlos optou pela embaixada brasileira de Estocolmo. Como descendente de suecos dizia que queria localizar parentes e, também, aproveitar para uma consulta preocupado com o grande mal-estar que havia sentido.

Retornei para a Albânia logo após receber meu novo passaporte. Carlos não. Nos vários telefonemas trocados com ele percebi que encontrava justificativas pouco convincentes para continuar na Suécia mesmo depois de receber seu passaporte. Aquilo durou uns dois meses até que ele assumiu que não pretendia regressar e que tentaria entrar em contato com alguém do PCdoB para substitui-lo. Comuniquei então a um funcionário do Partido do Trabalho da Albânia que Carlos decidira ficar na Suécia. Solicitei que fossem tomadas providências para que ele fosse desligado da Rádio e suspenso o pagamento de seu salário que eu estava recebendo na sua ausência. Aquele fato foi complicado, mas decidi não discutir os detalhes do que acontecera. Apenas comuniquei a Álvaro e Lourdes que Carlos não regressaria. Certo ou errado, deixei o problema no âmbito pessoal e continuei a trabalhar normalmente. Depois, refletindo sobre aquela situação, compreendi que cada indivíduo tem seus próprios limites de tolerância ao isolamento de sua cultura, de sua família, de seus amigos. Ninguém sabe qual é o seu.

A partir dali a equipe ficou reduzida a 3 pessoas. Eu permaneci mais um período, completando 5 anos de trabalho na Rádio Tirana até que o PCdoB conseguiu enviar um novo casal para me substituir. Quando chegou outro casal, que não cheguei a conhecer pois havia uma decisão acertada do partido nesse sentido por razões de segurança, deixei a Albânia. Ao sair, em meados de 1974, viajei até Estocolmo para me despedir de Carlos. Ele ficou por lá. Continuamos amigos.

Depois viajei a Paris para me despedir de Diógenes Arruda e de Teresa. Arruda me enviou para a Argentina, a fim de encontrar com Dynéias Aguiar antes do meu regresso ao Brasil. Encontrei Dynéias em Buenos Aires e passei alguns dias conversando com ele. Recebi então uma orientação bem precisa: ao regressar não deveria entrar em contato com ninguém conhecido do partido por razões de segurança. Foi o que fiz. Desembarquei no Brasil, voltei a trabalhar, me envolvi na minha profissão e, pouco tempo depois, o PCdoB seria golpeado mortalmente pelo regime militar. Todos os grandes, generosos e fraternos dirigentes do PCdoB que eu conhecera no período de trabalho na Albânia estavam mortos, assassinados pelos militares no poder. Também não voltaria a rever Arruda que faleceu logo depois de retornar do exílio no período da anistia. A notável experiência que eu vivera, porém, ficaria gravada na minha mente para sempre.

REFLEXÃO

A pequena Albânia socialista, situada no Mar Adriático, na Península dos Balcãs, com apenas 28,7 km2 e população em torno de 2,5 milhões de pessoas, tinha um porte humano e político gigantesco. Os dirigentes do Partido do Trabalho da Albânia, escolados na luta guerrilheira de 1940-1945 contra os militares do eixo nazista-fascista, se pautavam pela solidariedade em relação a pessoas e partidos de esquerda perseguidos politicamente. Em seu território mantiveram e abrigaram a partir da década de 60 do século XX famílias de refugiados políticos de vários países. O marxismo-leninismo era a teoria que orientava suas ações políticas e o humanismo era a marca de suas ações nas relações com outros partidos fora do poder espalhados pelo mundo.

Por isso, causou perplexidade o que ocorreu a partir da década de 90 do século XX, quando a avalanche imperialista destruiria todo o arcabouço que sustentava as sociedades socialistas na Europa, incluindo a Albânia. E isso ocorreu ali sem grandes reações internas. Se, no conjunto de suas ações políticas, o governo socialista albanês cometera equívocos, pode-se afirmar com segurança que o balanço de acertos foi enorme. O Partido do Trabalho da Albânia recebeu, ao derrotar o nazi-fascismo em 1945, um país do ponto de vista político, econômico, social e cultural mergulhado no feudalismo. No período em que governou alfabetizou sua população, construiu escolas e universidades, modernizou sua agricultura e indústria, elevou a mulher à condição de ser humano com direitos, mas foi derrotado com mudez interna. As campanhas de mídia bem coordenadas e desenvolvidas pelo imperialismo americano e seus aliados contra os antigos regimes socialistas conseguiram apagar nas gerações que se sucederam o que de positivo ofereceram no pós-guerra a milhões de pessoas numa Europa arrasada e mutilada pela guerra.

Talvez a lição que se possa tirar do que aconteceu seja a de que a implantação de uma nova sociedade com novo regime social e com estrutura econômica, cultural e política diferenciadas envolva tamanha complexidade que não possa ser compreendida com base em simples ilusões intelectuais. Todos sabem que entre a teoria e a prática há um longo caminho de contradições por envolver seres humanos e não simples equações matemáticas. Muda-se com relativa rapidez a estrutura econômico-política de um país. Mas essa mudança não altera automaticamente a adesão ao novo. A componente humana de qualquer sociedade envolve um conjunto secular de tradições, domínios, costumes, que exigem mais do que sucesso econômico. Exigem tempo para amadurecer e se consolidar. E isso se complica quando se enfrenta assédio permanente de inimigos externos e internos que atuam a cada passo para impedir qualquer avanço em direção ao novo.”

PEDAGOGIA DA MEMÓRIA

Estes relatos induzem a uma única conclusão. Os que viveram experiência tão rica de diversidade, de dedicação, de entrega pessoal, sem dúvida, tiveram coladas em suas almas penas de Águia. Esta ave é símbolo de força, coragem, superação, resistência. Nada mais comparável a esse grupo de brasileiros e aos que os sucederam no trabalho da Rádio Tirana e que passaram anos sem contato com seus familiares, amigos e sua cultura do que a ave símbolo da pequena e altiva Albânia nas décadas de 60 a 80 do século XX. O tempo mostrou sua importância e para lembrá-los é importante citar o que escreveu Augusto Boal: “temos de acreditar na pedagogia da memória não como vingança, mas porque só através do estudo do passado poderemos entender o presente e preparar o futuro”.

Notas

(1) Albânia em albanês é Shqiperia que significa Terra das Águias.
(2) Carlos faleceu em 2012 em Estocolmo, Suécia, onde residia.

Branca Ferrari é jornalista, escritora e autora do romance Ao norte do Horizonte (Biblos-2011).