O presidente Jair Bolsonaro sempre proferiu palavras extremamente ofensivas à memória de mortos e desaparecidos políticos e a seus familiares. Porém, uma vez eleito presidente da República, ele precisaria se conscientizar de que o cargo impõe deveres e não lhe dá o direito de ofender cidadãos e cidadãs, mesmo aqueles que não fazem parte do público que o elegeu.

O seu comportamento nos últimos dias demonstra cabalmente que ele não compreende o caráter republicano do seu cargo, que significa que ele deve governar um país e não para seus eleitores. Ele não assimilou sequer que esse país tem uma Constituição sobre a qual jurou, tem leis e condenações nacionais e internacionais que ele deve cumprir.

Infelizmente, o presidente continua se comportando como um militar de baixa patente, mau e alinhado com a defesa dos crimes praticados por agentes dos porões.

A crueldade da ofensa que Bolsonaro lançou à família Santa Cruz para satisfazer seu desejo de humilhar o presidente de uma das mais importantes instituições brasileiras é típica do comportamento desses agentes e não de um presidente da República. O que ele disse foi uma “contrainformação”, ou seja, uma versão que serve para confundir e manter as famílias das vítimas sob tensão e com receio de reagir para evitar que a reputação de seus entes queridos seja assassinada também. Com isso, a contrainformação desvia o foco das verdadeiras responsabilidades, dificulta as investigações e garante a impunidade.

A dificuldade de Bolsonaro em agir conforme o seu cargo exige é tanta que ele sequer teve o cuidado de dar um verniz de razoabilidade para a versão que ele disse ter “intuído” de sua experiência naquele período. O que ele disse sobre a AP (movimento chamado inicialmente de Ação Popular) ser “sanguinária” não tem o menor fundamento, principalmente no contexto de fatos ocorridos a partir dos anos 70.

O golpe de 1964 foi materializado com a colocação nas ruas de tanques do Exército, com canhões prontos para disparo. Esses tanques passavam entre as pessoas civis que transitavam pelas ruas, inclusive idosos e crianças. As manifestações estudantis de protesto contra o governo que depôs ilegalmente o então presidente eleito, que fervilharam em todo o país nesses anos de 64 e 65, foram combatidas por soldados armados que não hesitaram em atirar nos rostos, peitos e mãos de jovens desarmados.

Data deste período a instituição de movimentos de resistência armada contra a ditadura militar. Dezenas de jovens dispostos a dar a vida pelo país estavam convencidos de que precisavam aprender a usar armas e bombas para mostrar que poderiam derrubar aquele governo como ele mesmo havia feito com o governo anterior. Certa ou errada essa decisão, e ainda que tenham cometido crimes com essa intenção, esse tipo de atividade não é considerada terrorismo e sim resistência.

O terrorismo se caracteriza pela prática de atos criminosos que visam prejudicar, impedir a atuação de um governo legítimo. Não era este o cenário de 1964, portanto, as atividades de protesto contra aquele governo, mesmo ilícitas, não podem ser classificadas como terroristas.

O que é classificado como terrorismo, foi o terrorismo de Estado praticado pelas forças oficiais de segurança, pois, em resposta aos movimentos armados que chegaram a obter a libertação de presos políticos, a violência da ditadura recrudesceu a partir de 1969. A ordem era desmantelar e exterminar os movimentos de resistência mediante a intensificação dos crimes de perseguição, tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados.

Em 1970, portanto, grande parte daqueles jovens idealistas já havia sido morta, estava presa ou banida do país. Outros jovens, que ainda eram crianças e adolescentes em 1964, vieram se somar aos que restaram, mas estavam todos acuados. Debatiam entre si sobre como dar continuidade à resistência e foram se dividindo. Alguns insistiram na luta armada e clandestina, mas a maioria optou por manter uma atividade de resistência civil, com a divulgação de panfletos, jornais e conscientização da população sobre a gravidade do que se passava. Este foi o caso da AP que, pelo menos a partir de 1972, tornou-se a APML (Ação Popular Marxista-Leninista). Por isso, seus integrantes são historicamente tidos como intelectuais e não afeitos ao embate corporal.

Logo, é absolutamente inverossímil que, em 1974, quando morreu Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, a AP ou APML seja tratada como violenta. Nesse caso, a crueldade das palavras que o presidente Bolsonaro proferiu sobre os integrantes da AP tem nome e é calúnia. O fato, a critério dos ofendidos, pode dar ensejo a mais um pedido de explicações perante o STF e, eventualmente, a uma queixa-crime.

A exoneração sumária de pessoas que ocupavam funções de uma maneira que o incomodou, como ocorreu com a minha exoneração e a do diretor do INPE, por outro lado, não pode ser classificada como cruel. Somos pessoas com muitos anos de experiência profissional e, para nós, é possível aceitar o fato sem nos deixar atingir emocionalmente. Mas o mesmo não ocorre com as pessoas que tinham nesses espaços suas poucas esperanças de que estado brasileiro continuaria cumprindo suas funções.

As exonerações sumárias efetivadas por Bolsonaro foram cruéis com as pessoas e comunidades que dependiam desses órgãos, que hoje se sentem expostas e apreensivas. No caso da Comissão sobre Mortos, temos recebido todos os dias manifestações sofridas de familiares preocupados com a preservação de restos mortais, de amostras genéticas e com o uso indevido de seus dados íntimos e privados. Para dizer o mínimo, é cristalino que estes atos vingativos do presidente da República são incompatíveis com o princípio da moralidade administrativa, cuja defesa pode ser feita em ações civis e até em ações populares.

A bondade não é um requisito escrito para que alguém possa governar um país, mas é exigido de qualquer servidor público que aja com lealdade, urbanidade, ética, respeito às leis e instituições e até que se apresente dignamente vestido em público. A crueldade demonstrada por Jair Bolsonaro no episódio relativo a Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira revela o descumprimento de todos esses deveres.

*Eugênia Augusta Gonzaga é Procuradora Regional da República e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Publicado originalmente no El País