O processo de ocupação da Amazônia tem sido disputado, ao longo dos tempos, por 3 correntes ideológicas básicas: produtivistas, santuaristas e sustentabilistas, embora, como é compreensível, boa parte dos reais operadores dessas correntes nem sempre tenham clareza teórica acerca disso.

Para os produtivistas a natureza é um mero depósito de recursos inesgotáveis, razão pela qual sustentam que a lógica é utilizar esses recursos sem qualquer preocupação de preservação e mesmo de conservação. Os santuaristas, por seu turno, alardeiam que os recursos naturais já estão exauridos e, portanto, advogam o congelamento de todo passivo ambiental, sem uma explicação minimamente razoável do que se vai fazer com os 7,6 bilhões de humanos do planeta, muito dos quais ainda vivendo em condições de extrema pobreza. Já os sustentabilistas procuram demonstrar o caráter anticientífico dessas duas correntes e desenvolver um modo de produção sustentável que, a um só tempo, combine produção com conservação e mesmo preservação de parte dos recursos naturais como reserva estratégica. Advogam, portanto, a máxima de que não há desenvolvimento sem sustentabilidade e nem sustentabilidade sem desenvolvimento.

O recrudescimento dos focos de queimadas na Amazônia e a reação, mundial e nacional, contra a política ambiental do atual governo, é uma decorrência natural do choque de concepções dessas correntes, especialmente produtivistas e santuaristas. De um lado os santuaristas, antagonizados com os produtores em decorrência, às vezes, do exagero de multas e repressão, que caracteriza a política de comando e controle; do outro lado a concepção predatória do presidente e de seus principais operadores que, ao desmoralizarem os órgãos ambientais e científicos, indicam para o conjunto dos produtores que eles também podem e devem afrontar as normas legais. O resto são apenas as labaredas!

E elas tendem a se agravar, tanto pelo incremento de queimadas por conta do “veranico” (precipitação menor do que evapotranspiração) que se prolongará até novembro, quanto pela intensidade de movimentos honestos e sinceros em defesa do bioma amazônico, além, naturalmente, das velhas e tradicionais manobras geopolíticas que visam exclusivamente fazer retaliações ao agronegócio brasileiro, cuja eficiência tecnológica – que o presidente tanto despreza – é capaz de rivalizar com qualquer país, o que certamente não agrada a quem defende a manutenção de um mundo assimétrico.

Os dados oficiais do INPE (1998 a 22.08.2019), indicam que os focos de queimadas no Brasil e na Amazônia Legal – que responde por algo como 75% do total – apresentaram comportamento errático, combinando aumento e redução, mas com uma tendência declinante. O menor e o maior índice de focos de queimadas ocorreram, respectivamente, nos anos 2000 (29.077) e 2005 (125.800). Em apenas 8 anos as queimadas ficaram abaixo dos 50 mil focos; em 9 anos oscilaram entre 50 e 100 mil, incluindo o ano de 2019 com 79.513 focos; e em 5 anos (2003, 2004, 2005, 2007 e 2010) as queimadas ultrapassaram os 100 mil focos, com destaque para o maior índice de focos, ocorrido em 2005.

E num período de 30 anos (1988 a 2018) o desmatamento na Amazônia Legal avançou sobre 436 mil km² ou 55 milhões de campos de futebol, mas teve uma redução de 64% entre 2018 e 1988. Nem sempre focos de queimadas implicam em desmatamento na mesma proporção. Como já visto, o ano 2000 teve o menor índice de queimadas (29.077) de toda a série histórica, mas um grande incremento de desmatamento (18.226 km²), enquanto 2010, o ano com um dos maiores índices de queimadas (118.939 focos) ostentou um desmatamento de 7 mil km².

Como é fácil constatar, os anos de maior incidência de focos de queimadas – não necessariamente de desmatamento – ocorreram todos no governo Lula. Mas não houve pânico porque o governo de então não estimulava esses disparates e adotava medidas, no plano interno e externo, para conter práticas predatórias. Ademais, assumia metas espontâneas de redução de dióxido de carbono (CO?) nos fóruns internacionais, fortalecia os órgãos ambientais e criou linhas de financiamento para a mecanização da agricultura, o que, sem dúvidas, contribui para a redução de queimadas.

O governo atual faz o inverso. Estimula práticas predatórias, nega a ciência, desmoraliza os órgãos ambientais e de pesquisa e, portanto, facilita a chantagem econômica contra o país por parte dos eventuais concorrentes, que sempre recorrerão a qualquer expediente para proteger os seus interesses. As bravatas do governo facilitaram o serviço desses agentes. Não adianta reclamar, ele é o responsável pela ofensiva contra o Brasil. A sociedade vai tomando consciência que esse governo atrapalha!

Por outro lado, é preciso rearticular os Movimentos de Defesa da Amazônia, como instrumento de pressão contra os disparates que o governo produz e, ao mesmo tempo, retomar políticas de incremento tecnológico ao produtor de base familiar, bem como mecanismos de agregação de valor à matéria prima regional, sem o que o produtor estará condicionado a uma vida de subsistência. É preciso pacificar o campo, não incendiá-lo.

Porque a Amazônia tem caráter estratégico. 

O chamado bioma amazônico tem em torno de 7,5 milhões de km², distribuídos no Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname, Venezuela. Dessa área, o Brasil concentra em torno de 5,5 milhões de km2 ou algo como 75% da Amazônia Global.

Além de 350 milhões de hectares de floresta, em torno de 20% da água doce do planeta, uma planície mineral tão densa quanto diversificada, a maior biodiversidade da terra e uma extraordinária malha de rios navegáveis – o que levou naturalistas, como Agassiz, a questionar se a Amazônia deveria ser entendida como terra firme ou água – a Amazônia é responsável, também, pela manutenção do equilíbrio climático em escala planetária, através da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), fenômeno que transporta, para o norte e para o sul, a massa de vapor d’água que a Amazônia produz. Sem esse recurso, em tese, a temperatura da terra experimentaria uma grande oscilação diária de temperatura, o que naturalmente inviabilizaria a vida em boa parte do planeta.

O caráter estratégico da Amazônia foi sublinhado desde o 1º registro literário conhecido, da larva do Frei Gaspar de Carvajal, e assim se sucedeu com Cristóbal de Acuña e todos os naturalistas que por aqui passaram e tentaram entender a sua complexidade. Somente alguns poucos, porém, conseguiram interpreta-la adequadamente.

Como regra predominou o preconceito, concepções metafisicas ou simplesmente o expansionismo autoritário que levou dezenas de “estudiosos” a destilarem barbaridades contra seus povos e, como regra, defenderem abertamente a ocupação da região por levas de estrangeiros.

Na obra clássica “Novo descobrimento do grande rio das Amazonas”, o Frei Cristóbal de Acuña, em 1642, analisou o espaço geopolítico da Amazônia nos seguintes termos:

“se as pessoas se impressionam e acham tão importantes o vasto império da Etiópia, cujo território ocupa um espaço de 900 léguas; a China, que assombra o mundo por encerrar em 2 mil léguas de fronteira, 15 diferentes reinos; e o Peru, com 1.500 léguas, que vai do Novo Reino de Granada até os confins do Chile, imaginem o que não dirão do Amazonas, em cujo espaço de quase 4 mil léguas de contorno, possui mais de 150 nações de línguas diferentes, cada uma delas suficiente, por si só, para formar um vasto reino e, todos juntos, um novo e poderoso império”.

Em seguida, após descrever em minúcias as particularidades e as riquezas da Amazônia, se encanta também com o clima da região: “não há calor que aborreça nem frio que canse, nem variação que seja incômoda; se não houvesse a praga dos mosquitos, que abundam em muitas paragens, poder-se-ia dizer, a boca cheia, que se trata de um imenso paraíso”.

Seu relatório foi proibido de circular porque alertava o mundo para o outro mundo que ali existia. E a partir de então não foram poucas as manifestações que, recorrentemente, expressaram o desejo e a determinação de que essa vasta e estratégica região fosse ocupada por estrangeiros.

Para Charles Marie de La Condamine (1701-1774), que aqui esteve em 1735, os nativos eram “inimigos do trabalho, indiferentes a toda ambição da glória, honra ou reconhecimento; unicamente ocupados das coisas presente, e por elas sempre determinados”, concluindo que “não se trata por enquanto senão de fazer deles uns homens, o que não é pequeno trabalho”;

Em “Viagem ao Brasil 1865-1866”, o naturalista Louis Agassiz sustentou que “um Império poderia considerar-se rico com a posse somente de uma dessas fontes de indústria que abundam no Vale do Amazonas!”. E diante da imensidão do espaço amazônico sugere que “chegará necessariamente a época em que a humanidade dele tomará posse” e, sem se fazer de rogado, sustenta que “a emigração deveria afluir em ondas para essa região tão favorecida pela natureza e tão vazia de homens!”, assentando, como se percebe, a base da teoria de “uma estrada para levar homens sem-terra a uma terra sem homens”, como a ditadura militar justificava a construção da Transamazônica.

E foi nesse mundo complexo, de múltiplos interesses, que Bolsonaro se meteu talvez imaginando que simplesmente poderia repetir a tática diversionista com a qual tem aprisionado a maioria dos adversários no terreno que lhe convém. Errou redondamente e está completamente isolado.

A Amazônia lhe impôs a primeira grande derrota!

Eron Bezerra é engenheiro agrônomo, doutor em ciências do ambiente e sustentabilidade na Amazônia, e professor e atualmente Diretor do CCA – Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É membro do Comitê Central do PCdoB.