Añez se autoproclamou fora da Constituição e sem quórum. Sabia que essa era a única forma de fazê-lo, já que a maioria em ambas as Câmaras pertencem ao Movimento Al Socialismo (MAS), e que a decisão foi de não fazer a sessão. 

Añez, portanto, primeiro se autoproclamou presidenta do Senado – figura que deve assumir o cargo da presidência interina logo após a renúncia do presidente e do vice – e em seguida se autoproclamou presidenta. Recebeu os aplausos das poucas pessoas presentes no recinto. 

Este passo era imprescindível na estratégia de um golpe de Estado que sempre teve como objetivo se apresentar como democrático. Esta apresentação teve, desde o início, a cobertura dos Estados Unidos, do secretário da OEA (Organização dos Estados Americanos), Luis Almagro, que nesta terça-feira (13) acusou Evo Morales de ter cometido um golpe de Estado, e de uma articulação midiática de proteção. 

Entretanto, ainda com estes respaldos, a ausência de uma formalidade de presidência dava lugar a um vazio de governo – os poderes reais sempre seguiram atuando – o que devia ser resolvido. O bloco que encabeça o golpe decidiu então acelerar os passos saltando toda a legalidade para colocar a faixa sobre os ombros da pessoa escolhida. 

Nada disso teria sido possível sem a participação de quem detém os poderes reais. Morales, que chegou na manhã desta terça ao México, junto a Álvaro García Linera, denunciou que Añez se autoproclamou “rodeada de um grupo de cúmplices e amparada pelas Forças Armadas e pela Polícia que reprimem o povo”. 

Não se tratou de uma figura de linguagem: a polícia e os militares reprimiam enquanto Añez e toda a direita celebrava na Bolívia. Aconteceu no centro de La Paz [capital do país], nos arredores da Praça Murillo, onde durante toda a tarde se manteve uma mobilização encabeçada pelos que vieram da cidade de El Alto, um dos pontos do país onde foram realizadas as maiores manifestações. 

A mobilização de El Alto foi um dos pontos de maior conflito. Na segunda-feira (11) aconteceu o primeiro levante – seu início havia sido no sábado à noite – com milhares de homens e mulheres em sua grande maioria pertencentes à nação aymara. Esse dia terminou com três mortos, segundo denunciaram. As imagens nas ruas eram de manchas de sangue sobre metros de asfalto. 

A jornada de terça foi então a anunciada chegada a La Paz, para a qual os vizinhos do centro fecharam suas casas, enquanto outros saíram para a aplaudir à massiva mobilização com a bandeira wiphala nas mãos. 

A ação de rua novamente mostrou a potência de El Alto, ao passo que denunciou uma dificuldade de direção, similar ao que aconteceu nos últimos dias antes de se consumar o golpe e onde agora se encontram as diferentes partes do processo de mudança. 

As ações de El Alto, onde se realizam encontros religiosos diariamente não são as únicas em marcha. A Coordenadoria das Seis Federações do Trópico chamou mobilização já na quinta-feira (7), e a Confederação Sindical Única de Camponeses da Bolívia decretou um plano de luta para bloquear as estradas do país e gerar um cerco sobre a cidade de La Paz que, após 48 horas de consumado o golpe, começa a apresentar dificuldades de abastecimento de gasolina e alimentos devido ao fato de muitas lojas estarem fechadas. 

Neste contexto também se soube do anúncio da Central Obreira Boliviana (COB) que dava “48 horas para reestabelecer a ordem constitucional”. Tomará a COB o fato de Añez como restabelecimento da ordem constitucional ou irá em frente com uma greve geral?

A situação na Bolívia continua com muitas perguntas, avanços dos que encabeçam o plano golpista, assim como crescimento da resistência em um contexto onde os canais de informação são poucos. Está difícil saber o que vai acontecer, tanto no epicentro político dos debates, assim como acontece em diferentes zonas de La Paz, de El Alto, e do restante do país, em particular nas áreas mais distantes, rurais. 

São muitas as denúncias de mortos, repressões, humilhações, perseguições, em um contexto de ofensiva golpista que antes de conseguir derrubar Morales desatou uma onda de violência com grupos de choque armados, e que, uma vez no poder, com ou sem governo, mantém sua ofensiva com o objetivo de destruir o processo de mudança.

*Marco Teruggi é analista político – este artigo foi produzido a partir de cobertura in loco em La Paz – Tradução: Mariana Serafini