“‘Conhece-te a ti mesmo’, estava escrito às portas do mundo antigo; ‘sê tu mesmo’, deverá estar escrito nas portas do novo mundo”. Oscar Wilde

“De forma alguma, o amor masculino foi e será sempre sinal de uma tendência pervertida, depravada (…). Aqueles que avançam em semelhantes epítetos aceitam o ponto de vista das leis criminais reacionárias, (…) baseadas em preconceitos”. Bernstein 

“Não desejo, absolutamente, com minha crítica, pregar o ascetismo. Longe disso. O comunismo deve trazer não o ascetismo, mas a alegria de viver, o bem-estar físico e a plenitude do amor”. Lênin

Marx e Engels não fizeram da homossexualidade objeto de nenhum de seus livros ou artigos. Em cartas reservadas datadas de 1869, pelo menos uma vez, revelaram preconceito. Marx emprestou a Engels um livro de Karl H. Ulrich, iniciador do movimento contra a criminalização aos homossexuais. Depois de lê-lo, respondeu-lhe Engels: “Os pederastas estão começando a contar-se e estão se dando conta que são um poder nesse estado. Só lhe faltava organização, porém segundo esta fonte aparentemente ela já existe em segredo. E como tem homens importantes nos velhos partidos, inclusive nos novos (…), não podem deixar de triunfar (…). A propósito somente na Alemanha um homem como esse pode vir e converter esse lixo numa teoria”. Felizmente, alguns dos seus principais discípulos defenderiam firmemente a descriminalização dos homossexuais.    

A segunda metade do século XIX caracterizou-se como um período bastante conservador, especialmente no campo moral, tanto na Alemanha quanto na Inglaterra. Ainda não existia um movimento organizado e significativo em defesa dos homossexuais. Ao contrário, a luta das mulheres atingira certo patamar e chamado a atenção da sociedade. Surgiu uma bibliografia marxista expressiva e de qualidade científica tratando da opressão feminina. Mais à frente, a luta anticolonial e antirracista fez com que a esquerda fosse obrigada a debruçar sobre esses temas e produzisse trabalhos teóricos importantes. Por sua vez, o problema da opressão aos homossexuais entrou tarde na agenda. Afinal, os marxistas são pessoas do seu tempo e só podem dar respostas aos problemas lhes são colocados, especialmente pelos movimentos sociais.     

 

Caricatura de Magnus Hirschfeld, lutador pela revogação do Parágrafo 175 na Alemanha (Foto: Arquivo)

A Federação Alemã do Norte aprovou em 1860 um novo código penal considerando o homossexualidade crime. Após a unificação do país (1871) ficou conhecido simplesmente como Parágrafo 175. Em agosto de 1862 foi preso por prática pública de atos homossexuais o advogado socialista Jean Baptiste Von Schweitzer, a segunda figura mais importante da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, partido fundado por Ferdinand Lassale. Alguns membros da organização pediram o seu imediato afastamento da direção. Lassale respondeu-lhes: “O que ele fez não está correto, porém não pode ser considerado um crime. De qualquer maneira, não nos permitiremos perder alguém com suas qualidades, uma pessoa realmente fenomenal. Em última instância, a atividade sexual é um problema de gosto individual e deve ser uma decisão de cada um, sempre e quando não ferir os direitos de outras pessoas”. No ano de 1864, Lassale morreria num duelo e Schweitzer o substituiria por oito anos. O seu grupo (lassaliano) se uniu aos marxistas (eichenianos) fundando o Partido Social Democrata Alemão no Congresso de Gotha, realizado em 1875.     

Cerca de 20 anos depois, em 1897, formou-se o “Comitê Científico e Humanitário”, dirigido pelo Dr. Magnus Hirschfeld. O seu objetivo era estudar o comportamento sexual humano e lutar pela descriminalização dos homossexuais. Para isso elaborou-se uma petição ao parlamento alemão. Um dos seus primeiros e mais decididos apoiadores foi o deputado Augusto Bebel, presidente e principal expressão pública do Partido Social Democrata. Numa de suas sessões, em janeiro de 1898, defendeu a eliminação do “Parágrafo 175”. Argumentou, entre outras coisas, que seu cumprimento era praticamente impossível: “não existem outros aspectos de nosso código penal que não teriam (…) tanta necessidade de serem revisados. (…) Há certas disposições em nosso código penal (…) em que as autoridades, ainda que cientes da sua violação sistemática (…) em raríssimos casos se incomodam em levar a acusação ao Procurador (…), pois o número destas pessoas é tão grande e atinge tão amplamente todas os estratos sociais que, se a polícia cumprisse escrupulosamente o seu dever, o Estado seria imediatamente compelido à construir duas novas penitenciárias, apenas em Berlim!”. E “haveria um escândalo em proporções que o mundo até hoje nunca viu (…)”. Então, “surge a questão se tal disposição pode legitimamente ser mantida”.  

Seguindo a trilha dos conservadores alemães, em 1885 a Grã-Bretanha aprovou a “emenda Labouchere”, criminalizando o homossexualidade, e dez anos depois ela faria sua mais importante vítima: Oscar Wilde. Este foi condenado a dois anos de trabalhos forçados. O autor de O retrato de Dorian Gray havia escrito o interessante livreto intitulado A alma do homem sob o socialismo de caráter “anarco-utópico-socialista”. Nele afirmou: “Socialismo, Comunismo, ou que nome se dê, ao transformar a propriedade privada em bem público, e ao substituir a competição pela cooperação, há de restituir à sociedade sua condição própria de organismo inteiramente sadio, e há de assegurar o bem-estar material de cada um dos seus membros”.     

 

Bernstein, autor de artigo em defesa de Wilde (Foto: Arquivo)

Eduard Bernstein, um dos principais ideólogos da social democracia alemã, escreveria um artigo denunciando o fato no Die Neue Zeit, órgão oficial do partido. “Ainda que a vida sexual pareça algo de pouca importância para luta econômica e política da social democracia, isso não significa que não nos é obrigatório encontrar uma norma para julgar este aspecto da vida social, uma norma que se baseie num ponto de vista científico no lugar de concepções morais arbitrárias (…). As atitudes morais são fenômenos históricos. (….) As relações sexuais entre os indivíduos do mesmo sexo são tão velhas e estão tão disseminadas que não há etapa da cultura humana da qual se possa dizer que estava livre desse fenômeno”. 

A Alemanha, continua ele, “é um dos poucos países a condenar a ofensa de que Wilde é acusado. (…) Existem ainda grandes diferenças de opinião, inclusive dentro do movimento socialdemocrata, quanto à posição que se deveria adotar em relação às práticas sexuais que não se inserem no âmbito do que é considerado normal”. Mas, “há poucos sinais de uma tentativa séria para se conquistar e manter um ponto de vista moderno e cientificamente fundamentado. Há mais pré-julgamentos do que julgamento. O libertarismo extremo (…) alterna-se com uma moralidade ultra-puritana”. Apesar de recusar ser a homossexualidade algo antinatural, prefere o termo “anormal” nas condições da sociedade capitalista, pois, ele “corresponderia melhor ao fato de que os pontos de vistas morais são manifestações históricas, não são guiados pelo que se supõe ter havido no estado natural, mas sim pelo que é considerado normal num dado estágio do desenvolvimento social”.

 

Capa de revista sobre Oscar Wilde na prisão (Foto: Arquivo)

Bernstein critica a ideia moralista dominante que relacionava a prática da homossexualidade aos chamados períodos de decadência: “Os atenienses estavam praticando o amor masculino bem antes de Péricles, o que não impediu o seu crescimento nacional. (…) Costumes semelhantes existiram entre outros povos em períodos de verdadeiro crescimento”. Segundo ele “de forma alguma, o amor masculino foi e será sempre sinal de uma tendência pervertida, depravada (…). Aqueles que avançam em semelhantes epítetos aceitam o ponto de vista das leis criminais reacionárias, (…) baseadas em preconceitos (…). A atividade sexual humana é influenciada por outros fatores além do excitamento sexual, como as sensações momentâneas: opinião pública, hábitos estabelecidos e o que pensa o indivíduo que é correto; tudo influencia o desejo e as ações e pelo menos as pessoas envolvidas assim terão a possibilidade de reagir a tais práticas de prazer sexual que levam ao seu enfraquecimento psíquico, mental e moral”. 

Os homossexuais passaram a ser mais duramente perseguidos após a ascensão de Hitler ao poder. Entre 1933 e 1945, cerca de 100 mil pessoas foram registradas pela polícia e levadas às prisões e campos de concentração nazistas, onde usavam um triângulo rosa costurado nos uniformes e obrigadas a realizar trabalhos forçados. Muitas morreram nas câmaras de gás, ao lado de judeus, ciganos e comunistas.

Revolução Russa e descriminalização da homossexualidade

Durante os primeiros anos da Revolução Russa o tema sexualidade não se desenvolveu no interior da direção do partido soviético, embora ele já tivesse acendido o debate nos meios científicos (médicos, psicólogos), entre a juventude e as mulheres comunistas. Lênin e Trotsky, por exemplo, não se dedicaram muito ao assunto. A própria descriminalização da homossexualidade se deu sem grandes polêmicas. Foi o resultado natural da revogação das leis moralistas czaristas, embora muitos tivessem consciência plena do seu significado e o defendesse. As maiores defesas de tais medidas vieram de fora da Rússia, dos países onde a discriminação sexual continuava a existir: como a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos.    

Destaque caberia às opiniões de Lênin dadas à Clara Zetkin: “Ouvi dizer que, em vossas reuniões noturnas dedicadas à leitura e aos debates com as operárias, ocupai-vos sobretudo com as questões do sexo e do casamento. (…) O primeiro Estado no qual se realizou a ditadura proletária está cercado de contrarrevolucionários e a própria situação da Alemanha exige a máxima união de todas as forças revolucionárias proletárias para repelir os ataques sempre mais vigorosos da contrarrevolução. E, justamente agora, as comunistas tratam da questão sexual (…). Disseram-me que o folheto de uma comunista vienense sobre a questão sexual tivera amplíssima difusão. (…) As poucas noções exatas que contém, as operárias já as conhecem desde Bebel (…), mas sob a forma de uma propaganda apaixonante, agressiva, cheia de ataques contra a sociedade burguesa. As hipóteses freudianas mencionadas no folheto conferem ao mesmo um caráter que se pretende ‘científico’, mas no fundo se trata de uma confusão (…). Parece-me que essa abundância de teorias sexuais, que não são em grande parte senão hipóteses arbitrárias, provém de necessidades inteiramente pessoais, isto é, da necessidade de justificar aos olhos da moral burguesa a própria vida anormal ou os próprios instintos sexuais excessivos (…). O sábio Salomão dizia: cada coisa a seu tempo. (…) Neste momento, todos os pensamentos das operárias devem estar voltados para a revolução proletária. Ela é que criará inclusive base para as novas (…) relações entre os sexos. (…) Não desejo, absolutamente, com minha crítica, pregar o ascetismo. Longe disso. O comunismo deve trazer não o ascetismo, mas a alegria de viver, o bem-estar físico e a plenitude do amor”. Contudo, “a luta pela consolidação do poder soviético ainda está muito longe de seu termo. (…) Através desse processo ganharão igualmente importância a questão das relações entre os sexos. (…) Não deveis permitir que tais questões sejam tratadas de maneira não marxista, que criem um terreno favorável a desvios e deformações”. 

Visto com os olhos de hoje – descontextualizando o texto – Lênin pareceria um moralista pequeno-burguês ao negar a importância das mulheres e jovens estarem dedicando suas atenções (e energias) a discussões sobre a sexualidade. O diálogo se deu entre 1919 e 1920 quando uma guerra civil sangrenta ameaçava a Rússia soviética e a vitória bolchevique não estava garantida. E a Alemanha também estava vivendo um período revolucionário. Rosa de Luxemburgo acabava de ser assassinada. Nesta conjuntura dramática, desviar-se do problema das revoluções em curso e concentrar-se no debate sobre as questões sexuais parecia ser um erro, especialmente quando ele se dava sem nenhuma base marxista consistente. Isso exigiria “conhecimento marxista, claro e preciso, e de uma enorme quantidade de materiais” não disponíveis naquele momento. Lênin não disse que o tema era sem importância ou irrelevante para o socialismo, mas que naquele momento não era o central e nem o mais urgente. 

Em dezembro de 1917 o governo soviético aboliu a legislação czarista contra os homossexuais. Também legalizou o aborto, o divórcio e reconheceu os filhos “ilegítimos” (bastardos). Depois da Guerra Civil, em 1922, foi possível consolidar o primeiro Código Penal da República Socialista Federativa Soviética Russa, atualizado em 1926. Nele também não havia nenhuma medida de criminalização da homossexualidade. Apenas proibia o sexo com menores de idade e não consentido, através da violência e coerção. Como disse Wilhelm Reich, desde então “os reformadores (da moral sexual) austríacos e alemães (…) na sua luta contra as leis discriminatórias à homossexualidade, referiam-se sempre à URSS progressista que tinha revogado o castigo da homossexualidade”. Continua ele: “A justificativa (…) era que a questão da homossexualidade devia ser tratada exclusivamente de maneira científica e portanto não era passível de pena. (…) Esse ato do governo soviético deu um enorme impulso ao movimento na Europa e na América”. 

No livro A Revolução Sexual na Rússia (1925), o Dr. Gregori Batkis dá uma visão ampla do espírito reinante nos primeiros anos da revolução: “A legislação sexual atual da União Soviética é resultado da Revolução de Outubro. Essa revolução é importante não apenas como fenômeno social, que garante à classe trabalhadora o exercício do controle político, mas também para as revoluções que, emanando dela, se estendem por todas as áreas da vida. (…)  A revolução não permitiu a permanência de nenhuma das antigas leis despóticas e não-científicas; não seguiu o mesmo caminho da legislação reformista burguesa (…). A legislação soviética se baseia no seguinte princípio: o Estado e a sociedade não interferirão em absolutamente nenhuma questão homossexual, contanto que ninguém seja ferido e que os interesses de ninguém sejam prejudicados.” O texto foi publicado como contribuição aos trabalhos da Liga Mundial pela Reforma Sexual. Entre 1923 e 1930, Batkis trabalhou no Departamento de higiene social da Universidade de Moscou. 

 

Chicherin, Comissário do Povo para relações internacionais da URSS (Foto: Arquivo)

A primeira edição da Grande Enciclopédia Soviética (1930), escrita num momento de transição, trazia um verbete tratando da homossexualidade no qual ainda se afirmava: “nos países avançados capitalistas, a luta pela abolição de leis hipócritas está em plena ebulição (…) enquanto a lei soviética já não a considera delito contra a moralidade”. O texto ainda se referia positivamente aos trabalhos de Magnus Hirschfeld, um dos mais importante ativistas dos direitos homossexuais. Alexandra Kolontai, primeira mulher a compor um ministério – comissária do povo para assuntos do bem-estar social – compareceu aos primeiros congressos internacionais para a reforma sexual. E não estava só. Muitos intelectuais soviéticos, especialmente da área da medicina e psicologia, participaram.

Entre 1917 e 1930 houve maior aceitação da homossexualidade na URSS. Curiosamente, talvez, os primeiros anos do governo Stálin tenham sido os mais tolerantes. Um exemplo desse “liberalismo” foi a indicação e permanência de Georgy Chicherin – homossexual reconhecido – no importante cargo de Comissário do Povo para as relações exteriores em 1919, substituindo Trotsky. Função desempenhada até 1930. Segundo um autor: “Stalin valorizava as opiniões de Chicherin. Em 1928, Chicherin declarou querer um melhor relacionamento com os países capitalistas para incentivar o investimento estrangeiro. Essa política teve o apoio entusiástico de Stalin (…). Stalin disse: ‘dificilmente se pode duvidar que o camarada Chicherin esteja melhor informado sobre o clima nos círculos de investimento estrangeiro que qualquer um de nós’. Era raro Stalin reconhecer que alguém tinha mais conhecimento que ele”. 

Estagnação retrocesso na Revolução Sexual na URSS

No início da década de 1930, a homossexualidade começou a ser vista, em alguns círculos importantes do Estado e do Partido Comunista, como resultado da decadência moral e ideológica da burguesia. A comunista alemã Clara Zetkin, agraciada com a Ordem Lênin e morta em 1933, contrapôs a essa tendência conservadora no interior do movimento comunista russo e internacional. Seu esforço foi em vão. 

Inesperadamente, em março de 1934, aprovou-se um decreto contra a homossexualidade, considerando-a um “crime social”. Ele dizia: “As relações sexuais de um homem com um homem serão punidas com a privação de liberdade por um período de até cinco anos. A pederastia comprometida com a aplicação de força física ou ameaças, ou com relação a um menor, ou com a vantagem da posição dependente da vítima, será punida com a privação de liberdade por um período de até oito anos.” A imprensa soviética desenvolveu uma campanha contra a homossexualidade considerando-a como ‘um fenômeno de desestruturação da burguesia fascista”. Pouco tempo antes da aprovação do decreto haviam ocorrido detenções em Moscou, Leningrado, Karkhov e Odessa. Entre os presos encontravam-se muitos artistas, atores, músicos, acusados de organizarem “orgias homossexuais”. 

 

Homossexuais nos campos de concentração nazista (Foto: Arquivo)

A confusão se generalizou, afinal vários dirigentes e militantes comunistas eram homossexuais e não tinham razões de se envergonhar disso até então. O espanto e a dúvida se expressariam na carta de Harry Whyte enviada ao próprio Stalin, escrita em maio de 1934. Whyte era homossexual assumido e militante comunista britânico. Havia sido contratado para a equipe do Moscow News em 1932. No ano seguinte passou a compor o corpo editorial do mesmo jornal e acabou sendo premiado com o título de “trabalhador de vanguarda” na sua área de atuação. Citarei mais longamente a carta, pois expressa a perplexidade dos homossexuais comunistas e simpatizantes naquele difícil momento. 

“Camarada Stalin, o autor desta carta (…) solicita uma fundamentação teórica do decreto de 7 de março do Comitê Executivo Central da URSS sobre [a instituição de] responsabilidade penal por sodomia. (…) Acredito que o decreto contradiz tanto os fatos da própria vida quanto os princípios do Marxismo-Leninismo (…). A questão é a seguinte: pode um homossexual ser considerado alguém digno de pertencer ao Partido Comunista? (…) A lei recentemente promulgada sobre responsabilidade criminal por sodomia (…) aparentemente significa que os homossexuais não podem ser reconhecidos como dignos do título de cidadãos soviéticos. Consequentemente, devem ser considerados ainda menos dignos de serem membros do Partido Comunista. (…) Dirigi esta pergunta a vários dos camaradas da OGPU e do Comissariado do Povo para a Justiça, à psiquiatras e ao camarada Borodin, o editor-chefe do jornal onde trabalho. Tudo o que consegui obter deles foi um certo número de opiniões contraditórias (…). O primeiro psiquiatra de quem pedi ajuda assegurou-me (depois de verificar isto junto ao Comissariado do Povo para a Justiça) que se eles (homossexuais) são cidadãos honestos ou bons comunistas, podem organizar suas vidas pessoais como melhor lhes pareça. Borodin, disse que (…) me considera um bom comunista, de confiança e que eu poderia levar minha vida pessoal como quisesse. (…) e isto foi confirmado pelo fato de que ele me promoveu nomeando-me chefe da equipe editorial (…). Entrei em contato com a OGPU devido a prisão de certa pessoa com quem eu tive relações homossexuais. Disseram-me que não havia nada que me incriminasse. Todas estas declarações produziram a impressão de que os órgãos de justiça soviéticos não processam a homossexualidade como tal, apenas alguns homossexuais socialmente perigosos. (…) No entanto, por outro lado, depois que a lei foi emitida em 7 de março, eu tive uma conversa na OGPU na qual me disseram que a lei se aplica estritamente a todos os casos de homossexualidade que sejam trazidos à luz”. 

 “Borodin indicou-me que o fato de que eu ser homossexual de forma alguma diminui meu valor como revolucionário. Ele demonstrou grande confiança em mim, indicando-me como chefe de redação. Então, ele não me trata como alguém que pode se tornar ou que foi um criminoso. Ele também me indicou que minha vida pessoal não era algo que pudesse prejudicar até mesmo no menor grau minha condição de membro do Partido e do trabalho editorial. Quando apresentei a ele a questão das detenções, ele mais uma vez (…) assegurou-me que no caso dado as razões eram de natureza política, e de forma alguma de natureza social ou moral (…). Depois de fazer a solicitação correspondente à OGPU, me disseram: ‘Não há nada de incriminador contra você’. (…) Aceitei as detenções de homossexuais como um fenômeno totalmente natural, na medida em que na ocasião havia razões de natureza política”.

“Visitei psiquiatras em busca de uma resposta à questão de saber se era possível ‘curar’ a homossexualidade (…). Eu estava preparado para fazer qualquer coisa somente para evitar a necessidade de me encontrar em contradição com a lei soviética. (…) Se essa possibilidade fosse um fato estabelecido, então tudo seria muito mais simples (…). Mas, francamente, mesmo que esta possibilidade fosse estabelecida, eu ficaria incerto sobre se seria desejável de fato converter homossexuais em heterossexuais” (…) e “duvido muito da possibilidade de que todas as pessoas se tornem completamente idênticas em termos de suas inclinações sexuais (…). Quando os psiquiatras a quem visitei foram forçados (…) a confessar que existem casos de homossexualidade incurável, finalmente estabeleci minha própria atitude sobre a questão. Deve-se reconhecer que existe tal coisa de homossexualidade inextirpável (…) e, portanto, parece-me, em consequência, que se deve reconhecer como inevitável a existência desta minoria na sociedade, seja uma sociedade capitalista ou mesmo uma sociedade socialista. Neste caso, não se pode encontrar qualquer justificativa em declarar essas pessoas penalmente responsáveis por seus traços distintivos, traços estes por cuja criação não carregam nenhuma responsabilidade e que são incapazes de mudar mesmo que quisessem”.

Seguindo a tradição dos comunistas da época ele utiliza-se uma afirmação do próprio líder soviético para defender os seus pontos de vista: “Eu me permitirei citar uma passagem do informe do Camarada Stalin ao XVII Congresso do Partido (janeiro/fevereiro de 1934): ‘Qualquer leninista sabe, se for um leninista genuíno, que o nivelamento no âmbito das necessidades e da vida pessoal cotidiana é um absurdo reacionário digno de alguma seita primitiva de ascetas, e não de um estado socialista organizado de forma Marxista, pois não se pode exigir que todas as pessoas devam ter necessidades e gostos idênticos, que todas as pessoas vivam suas vidas diárias de acordo com um único modelo (…). Concluir que o socialismo requer o igualitarismo, a equalização e o nivelamento das necessidades dos membros da sociedade, o nivelamento de seus gostos e vidas pessoais, que de acordo com o Marxismo todos devem usar roupas idênticas e comer a mesma quantidade de um só e mesmo prato, é equivalente a proferir banalidades e caluniar o Marxismo”. A carta não foi respondida e o autor acabou sendo afastado do Partido Comunista. 

Na mesma época – dentro das concepções moralistas que se consolidavam -, Máximo Gorky escreveu: “Nos países fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a homossexualidade tem sido declarada delito social e é severamente castigada. Na Alemanha já existe um lema que diz: ‘Erradicando os homossexuais, desaparece o fascismo’”.  O Comissário do Povo para a Justiça, Nicolai Krylenko, em 1936, assim se exprimiu: “As massas trabalhadoras acreditam nas relações normais entre os sexos (…). Quem fornece a principal clientela para esse assunto (homossexualismo)? As massas trabalhadoras? Não! Os desclassificados, os resíduos da sociedade ou remanescentes das classes exploradoras. (…) Estas são pessoas que desestabilizam as novas relações sociais que estamos tentando estabelecer entre homens e mulheres dentro das massas trabalhadoras. E, portanto, são esses senhores que processamos em tribunal e privamos de liberdade”. Ironicamente, a direita fascista definia o homossexualidade como um desvio moral engendrada pelo judaico-bolchevismo para dissolver os valores saudáveis (e cristãos) da sociedade.     

Em 1936, uma nova lei soviética proibiu o aborto. O divórcio, por sua vez, somente seria concedido em casos considerados graves e após a decisão de um juiz. Estas medidas coincidiam com o crescimento da repressão política contra a oposição interna. Graças às violações da democracia socialista, afirmou o dirigente comunista João Amazonas, a “teoria progredia de maneira insuficiente, passava por uma fase de relativa estagnação. Surgiram variados problemas decorrentes do desenvolvimento objetivo da sociedade. Escasseavam respostas teóricas a tais problemas, gerando ausência de perspectiva”. Diria, mais do que estagnação ocorreu uma regressão conservadora no campo da moral sexual e mesmo   cultural, distanciado do antigo espírito emancipador intrínseco ao marxismo e ao leninismo.

A segunda edição da Grande Enciclopédia Soviética (1952) agora dizia: “A origem do homossexualismo está ligada às condições sociais cotidianas. Para a esmagadora maioria das pessoas que se entregam ao homossexualismo, essas perversões cessam assim que encontra um ambiente social favorável (…). Na sociedade soviética, com seus costumes saudáveis, o homossexualismo como perversão sexual é considerado vergonhoso e criminoso. A legislação criminal considera o homossexualismo punível, com exceção daqueles casos em que é uma manifestação de acentuada desordem psíquica”. Neste último caso a pessoa deveria ser internada num hospital psiquiátrico afim de ser tratada. Limitar os direitos das mulheres (ao aborto e ao divórcio) e dos homossexuais em nome da construção do comunismo sabemos hoje é um contrassenso teórico-político.

O freud-marxista W. Reich – um opositor ao chamado “termidor sexual” – escreveu: “A revolução tinha encontrado problemas inesperados, e os meios práticos de lidar com dificuldades tão gigantescas somente poderiam ser encontrados quando as próprias dificuldades chegassem ao seu pleno desenvolvimento e exigissem solução. (…) Não devemos esquecer: era a primeira revolução social bem sucedida. (…) Está claro hoje que a revolução cultural apresenta questões infinitamente mais difíceis que a política” e “não havia nenhuma teoria da revolução sexual soviética”.

Essa compreensão equivocada (anticientífica) sobre a sexualidade humana, difundida na URSS a partir da década de 1930, transferiu-se aos demais países socialistas nascidos após a Segunda Guerra Mundial, no Leste Europeu, na China e em Cuba. O modelo jurídico soviético era a principal referência, para o bem e para o mal. Somente mais recentemente esses erros acabaram sendo corrigidos e avançou-se, mais ou menos rapidamente, no sentido da sua correção. 

No início da revolução cubana, houve perseguições aos homossexuais, especialmente masculino. Eles não podiam trabalhar na área de educação porque se acreditava serem maus exemplos às crianças. Enviaram-se muitos às Unidades Militares de Ajuda à Produção, visando à “reeducação” pelo trabalho. No ano de 1973, a Lei 1.249 passou a tipificar crimes contra os bons costumes e à ordem da família, punindo a demonstração pública da homossexualidade. As coisas começaram a mudar na ilha revolucionária no final da década de 1980, justamente após do debacle da URSS. 

 

Parada Gay em Cuba liderado por Mariela Castro (Foto: Parada Gay em Cuba liderado por Mariela Castro)

Em agosto de 2010 o comandante Fidel Castro – já aposentado das suas funções de chefe de Estado – fez uma corajosa declaração referindo-se a homofobia em Cuba: “Sim, foram momentos de grande injustiça (…). Fomos nós que fizemos isso (…). Não estou tentando diminuir minha responsabilidade. Pessoalmente, eu não tenho esse tipo de preconceito (…). Mas, no fim, de todas as formas, se se tem que assumir a responsabilidade, assumo a minha. Não vou jogar a culpa nos outros”. Assim se porta um verdadeiro líder revolucionário: sabe exercer a crítica e, principalmente, a autocrítica.

A grande defensora dos homossexuais cubanos é a psicóloga Mariela Castro Espín, filha do ex-presidente Raul Castro e presidenta do Centro Nacional de Educação Sexual. Aboliram-se as leis discriminatórias em 1997, com a reforma do Código Penal.  Além disso, desde 2008, o Estado cubano passou a se encarregar das cirurgias de redesignação sexual de pessoas transgênero. “Cuba, portanto, reconhece seu passado LGBTfóbico e vem dando tratamento a isso, avançando em direitos em uma velocidade muito maior que boa parte das nações capitalistas e signatárias dos tratados de direitos humanos internacionais do mundo”, ressalta Bruno Mattos do PSOL. Em 2018 a Assembleia Constituinte criminalizou a homofobia, mas muito falta ser conquistado.  

A República Popular da China, por sua vez, proibiu o comportamento homossexual desde 1949, considerado uma “desgraça social ou uma forma de doença mental”. Situação mantida mesmo na sua fase mais radicalizada (e esquerdista): a da Revolução Cultural. Chegou-se a afirmar que no país não havia mais homossexuais. Algo completamente irreal. Ali, como em Cuba, vem ocorrendo uma significativa democratização no campo das relações sexuais. Importantes mudanças aconteceram no final da década de 1990, quando legalizou-se a homossexualidade e ela foi removida da lista de doenças mentais.

Na época que ocorreram essas revoluções socialistas, grande parte do Império Russo – especialmente sua parte oriental –, muitos países do Leste Europeu (como a Albânia) e a própria China viviam num estágio civilizacional muito aquém do Ocidente capitalista. Em grande parte desses territórios predominava relações de produção feudais (ou semifeudais), carregadas de todos os preconceitos culturais-sexuais-familiares imanentes a elas. Os obstáculos a superar foram muito maiores e complexos. 

Conclusão

 

Revolta de Stonewall em 1969 (Foto: Arquivo)

Na segunda metade dos anos 1960 fortaleceu-se a luta pela libertação dos negros e das mulheres. As grandes mobilizações ocorridas em 1968 foram marcos de uma verdadeira revolução de caráter moral e sexual. Nesse momento criaram-se as melhores condições para o nascimento do moderno movimento gay. Em junho de 1969 eclodiu a revolta de Stonewall na cidade de Nova York, contra a violência policial aos bares frequentado por homossexuais. A primeira Parada Gay ocorreu justamente no ano o seguinte. Então, multiplicaram-se as publicações e grupos anti-homofóbicas. Assim, a “a questão gay” retornou à pauta das organizações de esquerda, inicialmente entre os trotskistas. Mas não somente entre eles. Huey Newton, importante dirigente dos Panteras Negras, partido com forte influência maoísta, num discurso feito em agosto de 1970, falou favoravelmente do movimento de libertação gay, criticando os preconceitos existentes e convidando-o a se incorporar à luta geral anticapitalista e anti-imperialista. Muitos grupos gays aderiram a projetos revolucionários socialistas, embora ainda fossem vistos com certo receio pelos partidos comunistas mais tradicionais.   

Contudo, um dos primeiros países a descriminalizar a homossexualidade foi a República Democrática Alemã (socialista), fato ocorrido em 1968. A República Federal da Alemanha (capitalista) manteve intactas as leis discriminatórias vindas desde a segunda metade do século XIX – radicalizadas no período nazista. Os homossexuais não foram automaticamente libertados dos campos de concentração. Muitos continuaram presos e ocorreram cerca de 53.000 condenações no pós-guerra. A criminalização no Ocidente só será completamente revogada em 1994. Como afirmou uma testemunha: “Nos primeiros anos da RDA, era mais fácil viver como homossexual ali do que na Alemanha Ocidental. As pessoas (…) se achavam progressistas”. 

 

Alan Turing, matemático e herói britânico castrado quimicamente. (Foto: Arquivo)

Na liberal Inglaterra relações homossexuais mantiveram-se como crime até 1967. O matemático e herói britânico, responsável pela quebra dos códigos secretos dos nazistas, Alan Turing, foi condenado em 1952. Visando escapar da prisão teve que aceitar a castração química. Demitido do seu emprego público e depois proibido de entrar nos EUA. Humilhado e deprimido, suicidou-se pouco tempo depois. Muitos tiveram o mesmo destino. 

Nada abalou mais a consciência moral hipócrita da sociedade estadunidense quanto os polêmicos Relatórios Kinsey (1948-1953), uma ampla pesquisa sobre o comportamento sexual norte-americano. Cinquenta por cento dos entrevistados (masculinos) admitiram ter sentimentos eróticos, em algum momento da vida, em relação a homens; 37% chegaram mesmo a afirmar que fizeram sexo com outro homem, pelo menos uma vez; 4% afirmaram-se gays. Das mulheres pesquisadas, 13% disseram terem tido relações sexuais com outra mulher; 2% afirmaram-se lésbicas. Os relatórios concluíram: “tal atividade (homossexual) apareceria em escala muito maior nas pesquisas se não houvessem restrições morais e sociais”

Até 1962 a homossexualidade era caracterizada como crime em todos os estados norte-americanos. O primeiro a descriminalizar foi o de Illinois. Levou cerca de 10 anos para que outros o seguissem. No Ocidente “democrático”, além da castração química, os homossexuais eram submetidos à terapia de aversão: criavam-se sensações desagradáveis quanto a determinados tipos de comportamentos considerados “anormais”, através de choques elétricos e drogas indutoras de náuseas e mal-estares. Por fim, em alguns casos, utilizava-se a famigerada lobotomia. Esta era uma técnica cirúrgica que consistia em extrair um pedaço do cérebro, tornando os pacientes mais dóceis e livres de erotização “anormal”. Na Suécia 3.000 homossexuais foram lobotomizados. Na Dinamarca 3.500, sendo a última operação ocorrida em 1981. Nos EUA, as vítimas chegavam aos milhares. Na Alemanha Ocidental, deixou de ser aplicada em 1979.

Finalmente, em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou: “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio mental e nem perversão”. E três anos depois, a decisão entrou em vigor nos países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Ou seja, o chamado “mundo livre” (capitalista) não tratou os homossexuais melhor do que os regimes socialistas. Pelo contrário, até a década de 1960, nenhuma experiência havia sido tão avançada como aquela ocorrida na URSS entre 1917 e 1929. As razões mais profundas dos erros e dos retrocessos no campo da moral sexual ocorridos naquela importante experiência precisam ser melhor estudadas pelos marxistas-leninistas.

Leia também:

– Artigo As mulheres e a luta socialista:  http://www.grabois.org.br/portal/artigos/154812/2019-03-07/as-mulheres-e-a-luta-socialista

– Artigo de Eduard Bernstein: https://jornalggn.com.br/artigos/bernstein-e-a-homofobia-por-marcos-silva/

– Discurso de August Bebel: https://www.novacultura.info/single-post/2016/10/28/Sobre-a-Homossexualidade-e-o-Codigo-Penal

– Discurso de Huey Newton:  https://www.marxists.org/portugues/newton/1970/08/15.htm

* A elaboração deste artigo foi incentivada por Andrey Lemos, presidente da União Nacional LGBT (UNA-LGTB) e dirigente nacional do PCdoB. A quem agradeço.

** Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. Autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

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BUONICORE, Augusto. Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, SP,2016

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