A dinâmica chinesa de desenvolvimento tem passado por transformações qualitativas que muitas vezes escapam aos olhos dos analistas em geral, incluindo os mais atentos. Não é incomum ouvir, desde acadêmicos e pesquisadores de alto calibre até turistas com nível razoável de informação, algumas máximas, sendo as mais comuns expressões do tipo “milagre” ou “nunca houve algo parecido na história”. Reações compreensíveis para quem tem se acostumado com a decadência civilizacional ocidental alimentada por demanda tanto reprimida quanto represada.

Em tese, somente em tese, o fenômeno que acomete a China desde o final da década de 1970 pode ser considerado, desenvolvimento comparado entre diferentes países, um milagre. Porém, tende-se a observar aquele processo como um milagre porque não pode, ou é difícil, se explicar com as teorias existentes. Na verdade, não podemos advogar aquilo como produto de um milagre, muito menos de um acaso. Trata-se, certamente, de mais uma página da construção da civilização humana. Um processo intenso de transformações que, ao mudar constantemente a face do sistema econômico, pode estar levando ao esgotamento de determinadas teorias mais apropriadas à apreensão do século 20 do que necessariamente uma engenharia social completamente nova; uma distinta formação econômico-social.

Não são poucas as perguntas a serem respondidas. Estaria, no seio desta nova e complexa engenharia social, surgindo uma “nova economia” já não mais ancorada no capital como fator estratégico em deslocamento para novas formas de planificar e projetar saltos a partir de imensas capacidades estatais construídas ao longo das últimas décadas? Dentre tais capacidades estatais poderíamos perceber a possibilidade real de o Estado, apoiado em instituições, soberania monetária e capital produtivo e financeiro próprios, recriar – em patamar superior – o que Ignacio Rangel chamou em 1959 de “Economia do Projetamento”, economia aquela fruto das inovações institucionais que levaram o homem a dominar a natureza pela via, e síntese, da planificação soviética, o consenso regulatório keynesiano e a economia monetária?

Logo, estamos diante de uma “Nova Economia do Projetamento” sintetizada na possibilidade de a China – a partir da incorporação à economia real, por suas 97 empresas estatais e “campeãs nacionais”, da fina flor da 4º Revolução Industrial – não somente projetar saltos qualitativos em sua divisão social do trabalho, mas também enfrentar os desafios de grandiosos projetos como a Nova Rota da Seda, o Made in China 2025 e todas as etapas rumo ao domínio de toda a cadeia da Inteligência Artificial?

Um socialismo high tech fruto da busca por soluções historicamente colocadas por profundas contradições não estaria a surgir pelas paragens chinesas como um caminho forçoso no rumo de uma estratégia alternativa ao capitalismo com traços prometeicos e baseada na maxirracionalização do processo de produção anexa a esta “nova economia”? A nosso ver a resposta a todas essas questões é positiva.

São claras as evidências acerca dos albores de uma “Nova Economia do Projetamento” que brota na China. Uma análise do crescente papel desempenhado pelos 97 grandes conglomerados empresariais estatais chineses – cada vez mais próximas de megaestruturas produtivas voltadas a executar de grandes projetos dentro e fora do país, e do nível de progresso técnico adquirido por esse grupo de campeãs nacionais – nos levará a afirmar de forma positiva que algo de novo surge na China. Com duas grandes macroestruturas, o Estado e o Partido Comunista, a controlar o ritmo das inovações institucionais necessárias ao incremento da coordenação de uma economia do país que cada vez menos tem sua planificação voltada a construir um organismo econômico que se adapte a um mercado externo e interno ultracompetitivo.

Explicando, os chineses continuam, conforme Robert Wade, a “governar através do mercado”, mas cada vez mais o regulador do sistema tem passado a ser um outro ente abstrato que podemos chamar de “projeto”, fruto de uma maxirracionalização do processo de produção, causa e consequência do surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica.

Pacotes fiscais cíclicos de centenas de bilhões de dólares continuam a levar aos crentes na “lei dos rendimentos decrescentes” mundo afora a se perguntarem sobre o “tamanho da conta” que chegará aos chineses. Por outro lado, a construção de muita capacidade produtiva “na frente”, suntuosas reservas cambiais e a formação de um profundo e capilarizado sistema financeiro de longo prazo são os pilares de uma economia voltada completamente à inovação e, principalmente, à consecusão de grandes projetos dentro e fora do país. “A conta chega”, mas é paga com ganhos de escala.

Em meio ao consenso formado sobre a tendência presente do sistema a ressuscitar Alvin Hansen e sua noção de “estagnação secular”, Michel Aglietta, em artigo publicado na New Neft Review em 2016 (“America’s slow down”) apontava discordância desta tese. A ele a revolução industrial que será necessária para mitigar os danos ambientais e adaptar habitats hostis envolveria bens públicos transnacionais, investimentos pesados e instituições para lidar com novos riscos sistêmicos. O economista francês afirmou que a China não só tem uma necessidade aguda, mas também os recursos financeiros e a vontade política de mobilizar grandes reservas de recursos para essa prioridade suprema.

Certamente transformações tecnológicas revolucionárias no seio das 97 “campeãs nacionais chinesas” a condicionaram a cumprir esta tarefa cuja regulação mercantil vai deixando de ser a métrica ideal. A métrica é o “projeto” e sua capacidade de superação da incerteza e de criação de mercados futuros. O motor são, nas palavras de A. Hirschman, as tensões e desequilíbrios gerados pelo processo de desenvolvimento.

Enquanto na China a política de anabolizar campeãs nacionais tem contraparte no ocidente com imensas fusões e aquisições patrocinadas por Estados Nacionais com “expectativas racionais”, no Brasil de Paulo Guedes ainda se acredita na fantasia de Alfred Marshall de um organismo econômico funcionando como uma floresta composta por uma miríade de empresas pequenas e médias disputando a preferência individual dos consumidores. Em teoria, nesta floresta nenhuma árvore poderia passar de um nível determinado de tamanho em detrimento das outras. No Brasil, a floresta é incendiada e trocada por grandes oligopólios, muitos deles – de forma nada irônica – composta por… empresas estatais chinesas.

Essa “Nova Economia do Projetamento”, como antítese ao capitalismo financeirizado, dá interessantes e grandes sinais de vida. Dentre tantos exemplos, o relacionado à candente questão ambiental é bastante sugestivo. Em 2017, um quinto de todos os carros elétricos do mundo foi vendido em apenas seis cidades chinesas onde já existe legislação restringindo a utilização de carros movidos por combustíveis fósseis. Em 2025, projeta-se a venda de 11 milhões de carros elétricos, sendo que deste montante 19% serão vendidos na China, 14% em toda a Europa e 11% nos Estados Unidos.

No ano de 2040, a previsão é que 40 milhões de veículos elétricos estarão rodando na China. A cidade de Shenzen, com uma população de 14 milhões de habitantes, foi escolhida recentemente para ser a “cidade modelo socialista”. Atualmente nesta cidade o transporte público e os táxis não são movidos a gasolina ou diesel. Prevê-se que as técnicas inerentes ao Big Data serão postas a serviço da administração e governança da cidade. Certamente somos contemporâneos de uma época em que lado a lado convivem propostas de sociedade que tanto trabalham com modelos de equilíbrio geral apontando para o caráter nada esférico da Terra quanto em um lugar como a China, onde sua nova e avançada engenharia social aponta a uma crença no progresso com traços virtuosos na relação com a natureza. O mundo não está perdido, definitivamente.

Fonte: Brasil Debate