Até que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se manifeste de forma contrária, as eleições municipais estão mantidas para 2020. Nas cidades – das capitais às mais interioranas – os movimentos de pré-campanha são perceptíveis, mesmo com todas as restrições impostas pela pandemia de covid-19. Mas se tornaram latentes também o papel de prefeitos e vereadores nessa crise, e como a compreensão disso pela população pode contribuir para que tenhamos resultados mais esperançosos saindo das urnas.

É fato que o negacionismo irradiado do Palácio do Planalto deixou autoridades municipais imprensadas entre a necessidade de impedir um colapso na saúde e a pressão exercida pelos grupos econômicos locais que replicam, a todo instante, a insanidade desencadeada em Brasília. Mesmo assim, é possível identificar, em cada município, que prefeito ou prefeita, que vereadores ou vereadoras deram conta de responder satisfatoriamente aos desafios que a pandemia impôs.

Dispensa-se nominar os casos, mas a partir das situações generalizadas a seguir, cada leitor, cada leitora terá condições de identificar em quais as autoridades do seu município se encaixam.

Em municípios onde o prefeito ou prefeita não almeja a reeleição, a resistência à pressão dos grupos econômicos parece estar sendo (ou ter sido) mais firme. Os conflitos que esse caminho gerou (absurdamente, mas gerou) puderam ser enfrentados porque os desgastes, por mais que venham, não impactam diretamente no pleito que se avizinha. Até que candidaturas futuras venham, esses desgastes terão se diluídos.

Prefeitos nessa situação tiveram de lidar inclusive com a pressão de suas obedientes bases aliadas. Vereadores acossados pelo lobby de dirigentes lojistas locais não raro foram a público reivindicar a dita flexibilização do distanciamento social. Fazer coro ao pleito inconsequente do empresariado garantiu ficar bem na fita com esse pessoal. As consequências do afrouxamento – o caos no sistema de saúde – não recaem na conta política do vereador, sim na do prefeito.

Já administradores municipais que vislumbram recondução ao poder nas eleições deste ano estiveram entre os mais titubeantes. Dependendo do interlocutor, o posicionamento muda. De manhã, pede-se o “fique em casa”; à tarde, depois da afronta das carreatas, o papo é o de que a “economia não pode parar”; à noite, ninguém entende o que se diz. E o resultado é esta confusão que estamos vendo, que leva à falta de compreensão e consciência cívica de parte considerável dos cidadãos.

Mesmo dentro dessa complexidade, não é difícil separar quem agiu com coerência, com respeito a princípios básicos de humanidade, e quem se curvou a forças alienígenas. Mais ainda: as competências de cada autoridade ficaram mais visíveis, portanto dá para medir quem se omitiu, quem agiu, quem tergiversou.

Teve administração municipal que optou por garantir desembolsos às empresas concessionárias de transporte coletivo, alegadoras de queda no movimento, em vez de usar o dinheiro para adotar alguma medida de auxílio aos pequenos negócios, de modo que seus trabalhadores pudessem ficar em casa com renda mínima assegurada. É certo que medidas econômicas de peso são de alçada federal, todavia gestores municipais têm também instrumentos para realizá-las em seu âmbito.

Por outro lado, diante do descaso com a cultura em esfera nacional, teve administração municipal que articulou com artistas locais, com empreendedores de economia criativa (o das famosas “feirinhas”) meios para que continuassem expressando sua arte pela internet e obtivessem um mínimo de remuneração.

Algumas administrações municipais foram firmes em interditar parques, praias e outros pontos centrais públicos de aglomeração, mas “se esqueceram” de voltar as atenções para orientar os moradores dos bairros sobre o risco de continuar se reunindo em festas, bailes, peladas de futebol. Ficou explícito que camadas da sociedade alguns governos priorizam, em detrimento de outras.

Teve administração municipal que de pronto abriu hospitais de campanha, incorporou, de alguma forma, leitos privados à rede pública, envolveu acadêmicos de Ciências da Saúde nas ações emergenciais. Outros administradores, no entanto, intensificaram a cessão de estruturas públicas de saúde para famigeradas organizações sociais, em nome de uma falsa eficiência.

Como até a Organização Mundial de Saúde observou, a ausência de uma integração nacional para o enfrentamento da pandemia no Brasil tem ocasionado perdas irreparáveis ao país. Alguns administradores municipais pouco, ou nada, ou mal fizeram para minimizar essa inoperância. Alguns, contudo, conseguiram – dentro de seus limites de atuação – evitar o pior.

Se isso for compreendido pela maioria da população até outubro, ou até novembro ou dezembro – seja lá quando for a eleição municipal – teremos condições de iniciar uma trajetória de reconstrução. Assim seja.

*Wagner de Alcântara Aragão é jornalista e professor. Mestre em estudos de linguagens. Licenciado em geografia. Bacharel em comunicação. Mantém e edita a Rede Macuco