A revista Nature publicou em 15 de junho um estudo que expressa grande avanço nos usos da mecânica quântica para fins de processamento da informação, particularmente de criptografia. Os pesquisadores usaram um protocolo denominado de distribuição de chaves quânticas (QKD na sigla em inglês) codificados em fótons emaranhados quanticamente os quais foram emitidos de um satélite para bases na Terra, cobrindo distâncias da ordem 1.200 km. A novidade foi o uso de tal procedimento em distâncias desta ordem. Os protocolos de criptografia quântica foram criados na década de 1980 por C. H. Bennett e G. Brassard; enquanto o nosso entendimento da propriedade do emaranhamento quântico é devido a John S. Bell, em resultado formulado em 1964. Tais protocolos são considerados o sonho da engenharia de telecomunicações porque o emissor ou receptor das mensagens saberia em tempo real se algum espião tinha tido acesso à informação transmitida. Os protocolos atuais, como o RSA, dependem da velocidade dos computadores para serem quebrados. Com os computadores atuais eles são seguros, mas chegará o dia em que computadores mais potentes permitirão a qualquer jovem hacker acessar informações transmitidas na rede. A distância agora atingida sinaliza a possibilidade de que tais procedimentos mais seguros possam vir a ter aplicabilidade prática em futuro não remoto.

A notícia chamou a atenção da imprensa não especializada também por certa singularidade. O jornal El Pais anunciou “China cria um sistema de comunicação quântica desde o espaço, impossível de ser espionado.” De fato, o experimento foi liderado por Jian-Wei Pan, assinado por 22 outros cientistas chineses e um físico ocidental. O pool de instituições parceiras é composto por 7 chinesas e 1 britânica e o satélite é chinês, Micius. Daí o interesse da notícia no jogo da geopolítica. Preservação de segurança nas informações e posição de vanguarda da China nesta busca. O campo de informação quântica é relativamente recente, o termo começa a ser usado no início dos anos 1990. No seu início era assunto para físicos europeus e norte-americanos. O chinês Pan, por exemplo, fez seu doutorado em Viena com Anton Zeilinger, um dos líderes deste campo. Então em menos de vinte anos os chineses saíram de uma posição subordinada para uma posição de liderança. Isto foi feito em colaboração com grupos ocidentais e preservando tais colaborações, mas competindo para assumir posições de maior protagonismo, como o resultado agora anunciado. O resultado também evidencia uma outra dinâmica de deslocamentos científicos. Os físicos na origem histórica destas pesquisas, a exemplo de John Bell, não eram bem vistos pela comunidade dos físicos. Eles trabalharam de modo a transformar uma área considerada marginal para uma vibrante área de fronteira, como mostrei em livro que escrevi (The Quantum Dissidents, 2015).

O episódio nos chama a atenção também para as vicissitudes que cercam a ciência no Brasil. Nos anos 1970 tivemos liderança nas telecomunicações mundiais, em especial graças a cientistas da Unicamp, como Sergio Porto, Rogério Cerqueira Leite e José Ellis Ripper Filho, os quais haviam retornado ao país atraídos pelo apoio que os militares de então asseguraram ao desenvolvimento da ciência brasileira. A mesma ditadura militar que perseguiu tantos brasileiros, inclusive alguns de nossos melhores cientistas, também apoiou a ciência, a tecnologia e as universidades. Na década de 1990, tempos de predominância do neoliberalismo, esta posição de vantagem foi relativizada ou perdida. Ainda nesta época, jovens pesquisadores brasileiros deram contribuições importantes para aquela área que está na base do sucesso chinês, fundamentos da mecânica quântica e informação quântica. Cabe registrar os nomes de Luiz Davidovich, UFRJ; Amir Caldeira, Unicamp; e Carlos Monken, UFMG. No início do século XXI, estes e outros cientistas foram apoiados nos governos Lula com a criação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, dois deles relacionados precisamente a este tema. Em 2015, segundo levantamento da The Economist, o Brasil aparecia no mapa da corrida por tecnologias quânticas não secretas, investindo 11 milhões de euros, enquanto os EUA investiam 360 e a China 220. Era pouco mas estávamos no mapa.

Hoje o cenário é de pouca esperança. Não apenas os recursos para apoio à ciência e tecnologia escassearam dramaticamente, a própria reputação destes cientistas tem sido sistematicamente atacada pelo Governo Bolsonaro, a exemplo da exoneração de Ricardo Galvão da direção do INPE por trazer à tona dados sobre a deflorestação da Amazônia que não eram do agrado do governo federal. Pior ainda, para o nosso futuro. Na década de 1970 foram repatriados cientistas que haviam saído do Brasil na nossa primeira leva de evasão de cérebros, em fins da década de 1950. Hoje começamos a presenciar uma nova leva de evasão. Em 2015 eu visitei, em pesquisas para o livro que escrevia, os laboratórios de Zeilinger, o orientador do chinês Pan em Viena, e de Nicolas Gisin, em Genebra. Fiquei feliz em ver estudantes brasileiros nos dois laboratórios, e pensei nos exemplos de Porto, Davidovich e Caldeira. Mas a analogia é falha porque sem condições de trabalho no Brasil estes jovens vão se dirigir para o exterior e nós teremos um futuro reservado a adquirir tecnologias produzidas pelas potências ocidentais, e agora também orientais, como o Japão, e agora a China.

*Olival Freire Junior é Historiador da ciência, Professor Titular do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA)