Trata-se de uma forma privada de propriedade com crescente participação acionária do Estado (“politically-connected investor”). Este processo é amplo e racional. Em 2000, 12% das empresas estatais tinham esse tipo de participação acionária em empresas privadas. Em 2020, esta participação chegou a 25%. As estatais, em média, tinham investimentos com seis empresas privadas em 2000. Em 2015 esse portfólio alcançou a média de 15 empresas por investidor estatal.

Essa ação de guarda-chuva do Estado tem um efeito cascata. Pois, leva à tendência das empresas privadas turbinadas pela participação acionária estatal estender seus vínculos a empresas privadas menores, elevando o grau de centralização empresarial no setor privado do país. No final das contas como podemos interpretar essa não oficial “estatização em desapropriação”? Neste espaço deixaremos de lado uma visão que alimenta o subjetivo irracional do policymaker norteamericano e sua crescente paranoia em relação à China. Vamos por outro caminho.

Ao menos dois grandes autores sustentaram por décadas em sofisticadas e conhecidas publicações a completa conversão chinesa à “economia de mercado”. Barry Naughton desde “Growing out of the plan” (1995) até “The Chinese econonomy: transitions and growth” (2007) e Nicholas Lardy em uma série de publicações com destaque ao “Markets over Mao” (2014) sustentaram as narrativas que alimentam muito do que o senso comum ortodoxo pensa sobre a China. Por outro lado, esses mesmos autores, recentemente, passaram a perceber uma inesperada “mudança de rumos” com a elevação da presença do Estado sobre os pontos fulcrais da economia chinesa. Naughton em “Is China socialist?” (2017) se pergunta se a China não teria restaurado o socialismo. Lardy (2019) joga com a hipótese do “fim das reformas” em seu interessante livro “The State Strikes Back: The End of Economic Reform in China?” (2019). Que tipo de processo esses autores não perceberam? Em que eles “erraram”?

É muito complicado falar em erros ou acertos, mas de problemas de origem. Vejamos. Deveria ser muito evidente que o processo de reformas econômicas na China não estava sendo encaminhada por nenhuma mão invisível. O Estado construiu uma economia de mercado nas zonas rurais levando ao surgimento de um crescimento mercantil virtuoso, baseado no consumo e na conversão industrial de antigas unidades produtivas industriais/rurais em grandes empresas de cantão e povoado, precocemente ligadas ao mercado externo. O que Robert Wade chamou de “governando através do mercado” foi a chave ao surgimento de novos esquemas de divisão social do trabalho nas zonas rurais chinesas desde 1978. Nas cidades, um poderoso setor privado, de fato, foi emergindo no país desde então impulsionado, também, pela transferência de ativos estatais a entes privados em meados da década de 1990.

O que mais importa é o filme. Em meio a este aparente big bang poucos se deram conta de que a ação estatal foi ganhando em qualidade desde 1978. Primeiro, preparando seu território para abrigar milhares de empresas estrangeiras em zonas econômicas especiais escolhidas a dedo desde 1980. Em seguida, e em plena década de 1990, criou seus grandes bancos de desenvolvimento, reconstruiu seu setor produtivo estatal formado, à época, por quase duas centenas de conglomerados (hoje são 96). Ainda na década de 1990, maxidesvalorizou sua taxa de câmbio e fechou sua conta de capitais. Uma moderna (e estatal) economia monetária de produção estava sendo formada

A quem acompanhou de perto esse processo não se surpreendeu com sua contraparte: centenas de empresas estatais executaram um ensaio geral de intervenção em massa do Estado na economia com o programa do “Grande Desenvolvimento do Oeste” lançado em 1999, transformando o desenvolvimento econômico em ação coordenada para diminuição das desigualdades regionais. Em 2003 surge a SASAC (State-owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council) com a missão de transformar as estatais chinesas em grandes players internacionais.

Recém-lançado livro do economista italiano Alberto Gabriele (“Enterprises, Industry and Innovation in the People’s Republic of China – Questioning Socialism from Deng to the Trade and Tech War”. Springer, 2020) não apenas problematiza os conceitos de capitalismo e o socialismo quanto demonstra, aproximando-se de nossa visão, que a China é algo diferente, tratando-se da primeira experiência de uma nova classe de formações econômico-sociais. Sofisticado, Gabriele abre inúmeras possibilidades de novos e poderosos argumentos.

Seguindo a trilha de Gabriele, esta nova formação econômico-social não seria síntese de quatro décadas em que de forma paciente os chineses foram lançando ondas de inovações institucionais que foram levando o Estado a um cada vez maior “protagonismo qualitativo”, incluindo desde a construção de musculosos braços produtivos e financeiros estatais, passando pela incorporação – via estatais – à economia real de novos aportes em matéria de planificação econômica até a tendência apontada pelos autores do trabalho citado no começo deste texto? Ou seja, uma nova forma histórica de propriedade privada não estaria surgindo na China demonstrando os equívocos de quem analisa a propriedade privada partindo de sua forma pós-leis dos cercamentos ingleses?

* Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do IE-Unicamp e Elias Jabbour é professor do Programas de Pós-Graduação em Economia (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)