Aos 80 anos, Marilena Chauí se mantém uma crítica feroz do neoliberalismo e da agenda imposta ao Brasil desde a derrubada de Dilma Rousseff da Presidência da República em 2016. Ela não tem papas na língua ao apontar a atuação irresponsável da burguesia nacional, carente de projetos para a Nação, e indiferente ao desmantelamento institucional que o país experimenta nos últimos cinco anos.
 
“A democracia não é uma forma de governo, é uma forma de sociedade, de criação de direitos e de realização de direitos”, lembra. “Então, numa sociedade que é hierárquica, oligárquica, autoritária e violenta, você não tem criação de direitos e quando tem direitos criados não se tem a garantia e a conservação deles. Isso é o que nós somos”.
 
Professora da USP, nascida em Pindorama, ela diz que não se pode comparar o momento atual com o que o Brasil viveu com o Golpe de 1964, quando João Goulart foi deposto numa quartelada. Aponta que, apesar de algumas similiaridades, muita coisa mudou, inclusive as Forças Armadas, que perderam um compromisso com a formação nacional.
 
“A estrutura da sociedade é a mesma, a tendência aos golpes de Estado permanece, a maneira pela qual a burguesia brasileira mantém o poder é através do controle direto que tem sobre os chefes de Estado, mas não tem projeto, não tem programas, as Forças Armadas estão vinculadas ao mundo neoliberal e o anticomunismo pega nesses 25%, 27% do eleitorado [de Bolsonaro]”, ressalta.
 
Nesta entrevista à Focus Brasil, Marilena Chauí diz que a possibilidade de Lula se eleger em 2022 é alta, mas a brutalidade da disputa política será um teste para as esquerdas, que precisam de unidade de ação. Ela avalia que o grande teste será depois da vitória, porque haverá muita expectativa e a cobrança incessante do mercado e da grande mídia.
 
“Será complicadíssimo. É por isso que a unidade da esquerda é tão importante. Mas, ao mesmo tempo, precisamos desmontar o discurso da política como gestão”, adianta. “A extrema-direita, o Bolsonaro está se encarregando de desmontar enquanto força política. Ela continua sendo uma força eleitoral, mas como política, ele a desgastou. Mas os liberais vêm com tudo com a ideia de que não é preciso fazer política, é preciso gerir. E a primeira crítica através da Rede Globo que vai ser feita a um governo de esquerda e a um governo Lula vai ser essa”.
 
Como a senhora enxerga essa recente divisão na direita brasileira?
A minha impressão é a de que havia um projeto da extrema-direita e de uma parte da chamada direita liberal, da qual o [governador João] Doria faz parte. A ideia era que a figura do Bolsonaro interessava porque ele era tomado a partir da incompetência política. A ideia era: “esse cara politicamente é ignorante e, portanto, nós vamos controlá-lo”. Exercer um controle sobre alguém que na cena política se apresentava sempre como um incompetente. E, além disso, todo o vínculo dele com Olavo de Carvalho e com a “terra plana”, “evolução das espécies é mentira”, “teoria da relatividade não tem fundamento” — ou seja, todos esses pronunciamentos e mais o vínculo com o fundamentalismo religioso, tornavam o Bolsonaro uma figura apetecível, primeiro de tudo para a direita. Antes de ser para a extrema-direita, estou pensando na Faria Lima e companhia. Como aquele que, dada a sua absoluta incompetência, é perfeitamente controlável. O que eles não esperavam era a entrada em cena da extrema-direita, o fato que a extrema-direita tinha agenda e que, para ela, Bolsonaro não era o incompetente controlável, era a “ponta de lança”.
 
E como foi possível fazer o casamento entre essas duas imagens, já que elas são incompatíveis? Como a imagem da “ponta de lança”, que vem da extrema-direita, e a imagem do “incompetente controlável”, que vem da direita. Como elas puderam se fundir? A minha interpretação é do que acontece com a política no universo neoliberal. O que nós temos assistido, vimos a tentativa de isso acontecer nos EUA, a tentativa de fazer isso acontecer na França, no Reino Unido e, evidentemente, no Brasil, que é um processo de desinstitucionalização do espaço público. Na medida em que o neoliberalismo opera, e é por isso que eu digo que ele é totalitário, com uma única forma de organização que deve ser a organização de todas as esferas da sociedade e do próprio Estado que é a ideia da empresa. As instituições sociais são todas empresas a serem geridas e o Estado é uma empresa a ser gerida. Bom, como funciona uma gestão empresarial quando há conflito, seja interno ou externo? Ela não funciona senão por um único meio, que é o que ela dispõe, o Judiciário. As questões, os conflitos, as contradições são sempre transformados em questões jurídicas. Então, isso o que a gente chama de judicialização da política é, na verdade, a expressão dessa desinstitucionalização do espaço público, a desinstitucionalização da política, a impossibilidade de trabalhar efetivamente os conflitos políticos e econômicos a não ser sob a forma jurídica, sob o império da lei.
 
O que eu penso que o Bolsonaro exprime é este instante complicado, um conflito entre a judicialização e a ditadura. Ele tem uma enorme dificuldade – era isso que eles não esperavam que fosse ter – para lidar com essa desaparição da política sob a sua forma jurídica.
 
Há um paradoxo.
Bolsonaro não é capaz de lidar com isso. Só é capaz de fazer o enfrentamento, de pôr em dúvida isso, ininterruptamente, de acelerar e aumentar o conflito. Bolsonaro vive numa esfera anterior, do ponto de vista ideológico, a isso que ocorre na esfera neoliberal de desinstitucionalização da política. Ele opera numa esfera na qual o espaço privado define todas as decisões e todas as ações que vão aparecer no contexto público. Então, você tem do lado neoliberal oficial, aquele que tem Legislativo, Judiciário, mundo empresarial, esse universo da gestão jurídica do conflito que é incompreendido pelo Bolsonaro, inaceitável para a extrema-direita. Ele opera, portanto, pela produção de um terceiro conflito. Você tem o conflito da extrema-direita com a esquerda, você tem os conflitos no interior da direita resolvidos pela via jurídica e depois você tem os conflitos com a extrema-direita que põem em dúvida essa maneira de reinstitucionalizar o conflito pela via jurídica. Então, você tem a produção do caos. Quando se esperou controlar o Bolsonaro, tenho a impressão de que se esperava colocar um cara como o Guedes e um conjunto de asseclas para fazer o serviço e deixar Bolsonaro fazer o papel que se espera que faça e tem feito. Esse papel não teria maiores consequências se não fosse esse quadro que explicitei.
 
Qual é o papel do Bolsonaro?
Eu vou dar a imagem desse papel. Quando você vai ao circo há um momento, depois que o apresentador falou com o respeitável público, no qual precisam ser montadas infraestruturas para o espetáculo acontecer. É preciso preparar a cena. Há uma série de coisas do nível de infraestrutura para que o espetáculo possa acontecer. No entanto, o respeitável público vai ficar impaciente, então existe uma figura que tem como função segurar a atenção e a presença do respeitável público enquanto o circo de verdade se organiza. Essa função é do palhaço. É produzir uma série ininterrupta de eventos enquanto o picadeiro vai tomando forma. Eu vejo o Bolsonaro realizando isso. A coisa seria menos complicada se ele realizasse isso na forma clássica da palhaçada. Mas ele dispõe de dois grandes instrumentos que tornam essa palhaçada cruel e muito perigosa. Ele tem as redes sociais e parte das Forças Armadas. Então, ele tem um universo potente no nível da opinião através das redes sociais e um universo potente através da ameaça contínua de um golpe.
 
A senhora viveu o Golpe de 1964. As marchas da família, o conservadorismo daquela época, a senhora consegue ver similaridade entre as ações dessa extrema-direita com aquelas que foram para as ruas no eixo Rio-São Paulo lá atrás?
Olha, existe uma e existe nenhuma. A similaridade é a estrutura da sociedade brasileira. Você tem uma sociedade vertical, hierárquica, oligárquica, autoritária e violenta. Ela é isso e ela usa ininterruptamente, como é sua função, o aparelho do Estado para fazer isso. Raramente, deixa entrever o que ela é só no nível social. Ela faz com que isso se estabilize pelo modo como opera no aparelho de Estado. Isso é um dado que percorre a nossa história. Tinha em 1964, tinha em 1968 e tem agora. Existe essa estrutura social. Normalmente, a gente tenta analisar a partir do Estado e não é. É preciso analisar a partir da formação social. Nós não temos uma formação social democrática. Por isso a democracia não funciona, por isso não dura. A democracia não é uma forma de governo, é uma forma de sociedade, de criação de direitos e de realização de direitos. Então, numa sociedade que é hierárquica, oligárquica, autoritária e violenta você não tem criação de direitos e quando tem direitos criados não se tem a garantia e a conservação deles. Isso é o que nós somos. Então, se você vai procurar uma semelhança, eu te diria que isso está lá em 1822, em 1889, em 1930, em 1937, em 1964 e em 1968. Agora, isso assume aspectos diferenciados. Mas é essa classe dominante, autoritária, oligárquica e violenta que está no poder. Se é para estabelecer uma semelhança, acho que é preciso estabelecer de 1822 até agora, porque a história política do Brasil é uma história de golpes de Estado. A proclamação da Independência é um golpe de Estado, a Proclamação da República é um golpe de Estado, a República nascida da chamada Revolução de 1930 é um golpe de Estado. 1964 é um golpe de Estado. A história brasileira, em momentos minúsculos, conhece um instante de política no sentido mais comezinho da compreensão liberal da política. O que se tem é a realização, pura e simplesmente, da via autoritária do poder.
 
E as diferenças?
Primeira diferença, sob a orientação do Departamento de Estado norte-americano e da Operação Brother Sam, criada pelo [John] Kennedy na luta contra Cuba e pegando, portanto, a ideia da bilateralidade e de que “as Américas são nossas”, desceu para as Américas inteiras um programa econômico e um projeto político. A condição para a instauração desse programa e desse projeto feito pela chamada Aliança para o Progresso — que era a política do Kennedy — foi a convocação e a formação dos militares da América Latina para uma tomada do poder de uma determinada forma e eles fizeram na América Latina inteira.
 
Este ponto nós não temos, ou seja, não existe um projeto latino-americano e muito menos um projeto brasileiro em termos econômicos e políticos. Não tem projeto. Essa é uma diferença enorme. Quando os militares diziam que tinham realizado uma revolução, na cabeça deles, eles tinham. Eles estavam propondo o projeto do Brasil grande, do Brasil potência que os EUA tinham prometido. Imagine se o Olavo de Carvalho é capaz de pensar um projeto para a Nação, se o Kim Kataguiri é capaz de um projeto para o Brasil. No lugar do projeto, se tem uma coisa interessantíssima, que é o que dá ao Bolsonaro o poder junto às armas. Quando a gente fala do número de militares no governo e nos governos, eles não estão presentes lá como militares, eles estão presentes como aqueles que galgaram um posto no mundo neoliberal de formação rápida de riquezas e interesses econômicos. Então, eles estão agarrados aos cargos, não para a realização de um projeto nacional, mas por interesses econômicos pessoais e às vezes corporativos. Essa é uma diferença profunda.
 
Soluções diferentes para crises institucionais diferentes…
É isso que faz com que o “cara” saia no dia 7 de Setembro e o golpe não aconteça. Ele prepara o golpe, ele monta o esquema dos caminhoneiros e o golpe não acontece, porque não interessa para esses militares que estão no governo, alterar a situação na qual eles estão, por enquanto. Isso é muito instável, pode ser que amanhã seja outra coisa. Isso faz uma diferença grande. As Forças Armadas de 1964 não são as Forças Armadas de 2021.
 
Em 1964 não havia a percepção da possibilidade de um golpe. Como a coisa estava estruturada, você tinha a Aliança para o Progresso caminhando não através do governo federal porque o Jango estava lá. Caminhava através de governos estaduais. Havia governadores e legislativos sendo inteiramente patrocinados ideologicamente e financeiramente pela operação da Aliança para o Progresso. Por outro lado, havia do lado ideológico um aglomerado de deputados estaduais e federais que estavam fazendo a tarefa da desestabilização. Em São Paulo, por exemplo, se tinha Auro de Moura Andrade, Cunha Bueno e você tinha o governador Adhemar de Barros. Em Minas, tinha o Magalhães Pinto. Então, se tinha uma infraestrutura no universo político de governadores e de deputados estaduais e federais vinculados ao projeto da Aliança para o Progresso. Eles se unem à extrema-direita da Igreja, a dom Jaime de Barros Câmara, e começam aquilo que na década de 1950 e, depois, no início de 1960 funcionava para a classe média que era o horror, o pânico do comunismo. A ideia era que você tinha que salvar o país do comunismo.
 
Ao mesmo tempo em que você tinha tudo isso sendo montado, como estava funcionando do ponto de vista dos que estavam à esquerda. [Miguel] Arraes estava realizando as Ligas Camponeses e o projeto educacional do Paulo Freire e aquilo estava germinando e progredindo no Nordeste. [Leonel] Brizola estava fazendo coisas semelhantes no Rio Grande do Sul. Eles não estavam pensando em uma reação que pudesse haver. Jango estava convencido de que existia um racha na Igreja e nas Forças Armadas e a ideia deles era de que o golpe não aconteceria porque as Forças Armadas estavam divididas e esse foi um equívoco monumental que cometeram.
 
Agora não têm projeto.
A estrutura da sociedade é a mesma, a tendência aos golpes de Estado permanece, a maneira pela qual a burguesia brasileira mantém o poder é através do controle direto que tem sobre os chefes de Estado, mas não tem projeto, não tem programas, as Forças Armadas estão vinculadas ao mundo neoliberal e o anticomunismo pega nesses 25%, 27% do eleitorado dele. Não pega mais sobretudo no grande eleitorado popular porque houve o governo Lula e o governo Dilma. Houve a experiência de governos de esquerda sem que acontecesse o Doutor Jivago, que era, por exemplo, o que a Globo exibia toda noite durante a campanha eleitoral de 1989, na campanha do [Fernando] Collor.
 
Então, para essa comparação com 1964, 1968 ou com o Collor, eu vou usar uma imagem que me parece muito propícia: a História acontece no mínimo sempre duas vezes. Na primeira, como tragédia. Na segunda, como farsa. Não que a farsa não seja uma coisa terrível. Ela não é uma comédia, ela é uma farsa. Então, como disse um conhecido meu, o 7 de Setembro foi o “18 Brumário” que não aconteceu. Não tem estrutura para que aconteça. A burguesia se deu conta não de que não tem controle sobre Bolsonaro, não tem o controle sobre nada da economia. Na hora em que pegou o Capital de jeito e pode estraçalhar aqui, não. Eles não aceitam.
 
O bolsonarismo que ascendeu tão rápido, já está em decadência? Pelo que a senhora disse, o que levou o Bolsonaro ao poder não se repete, ele não vai conseguir enganar as pessoas de novo. Então, só o que sobraria para ele seria o golpe, é isso?
Eu vejo assim. Mas eu não acho nem que seja porque ele não consegue mais enganar. É que o que se esperava dele, não cumpriu. Ele se desmanchou por isso, porque foi uma aposta que foi feita de um lado — “é um fantoche que vamos puxar os fios” — do outro lado, da extrema-direita — “é aquele que vai dar as armas e o país para nós”. E ele não cumpriu nenhuma das duas. Eu não acho tanto que é porque o governo é um desastre. Dentro do que eles estavam se propondo, fizeram muita coisa, olha o desmatamento. Mas eu acho que é porque dos dois lados havia um pressuposto que não foi cumprido. E ele poderia ter feito isso. Na hora em que ele comprou o Centrão, tinha a faca e o queijo na mão. Veja que o impeachment não sai nunca. A CPI da Covid vai mostrar coisas inenarráveis e estamos vendo a ponta do iceberg porque o que eles têm de documentação é uma coisa absolutamente gigantesca, mas não vai acontecer nada a não ser o desgaste dele e o isolamento em que vai ficar.
 
A partir desse desgaste do Bolsonaro, qual a senhora acha que seja o desafio da esquerda brasileira para conseguir voltar ao poder em 2022?
Primeiro, eu acho que a gente precisa modular melhor a expressão “união das esquerdas”. E eu vou começar com uma coisa que é o contrário disso para poder chegar na minha conclusão. Uma das coisas mais ricas, historicamente mais interessantes, é a pluralidade da esquerda. Por que que há uma pluralidade? Porque ao contrário da direita que, simplesmente, exerce o domínio econômico, social e o poder político e, portanto, pode ter um pequeno conjunto básico de ideias que serve para toda ocasião, no caso da esquerda existe uma reflexão contínua sobre a realidade, uma análise contínua. Existem perspectivas de análise diferentes, então, ao invés de considerar, como todo mundo considera, que a pluralidade e as divergências no interior da esquerda são um mal, elas são um bem. É isso o que faz com que as esquerdas, ininterruptamente, tenham presente um fantasma que elas têm que combater, que é o fantasma do dogmatismo. Mas existem três ou quatro pontos comuns e quando falamos em união temos que ir em busca desses pontos comuns que permitem, na pluralidade de perspectivas, operar em conjunto. Então, quando eu falo que nós vamos ter que unir as esquerdas, é nessa perspectiva. O que temos que ter juntos é um projeto e um programa, sem abdicar das nossas diferenças.
 
Agora, é claro que a gente quer a vitória do Lula. A gente precisa da vitória do Lula. O Brasil precisa. É a primeira vez que eu digo uma coisa dessa na minha vida. Mas o Brasil precisa. O que aconteceu conosco foi de tal ordem, de tal desestruturação, de tamanha bandidagem, canalhice, crueldade e ódio, chegou a um ponto tal que a gente precisa de alguém que tenha a força política, a força moral e a força psicológica para dizer “chega”. E o Lula tem. Agora, vai ser uma tarefa hercúlea porque você vai ter que refazer o Brasil, refazer as instituições. A economia vai se virar, a gente sabe que o capitalismo se vira. A questão é o social e o político que foram desmanchados.
 
Primeiro, refazer o conceito de política e o interesse e o respeito pela política, não fazer da política uma coisa odiosa e odienta. Porque é o que você vê, quando você vê essa bandidagem, porque eles são gangsters, a tendência do senso comum é dizer que a política é isso. É importante que a gente desmanche isso desde agora porque se o Doria for candidato, esse vai ser o discurso dele. E esse foi o discurso do Collor: “eu sou um gestor, eu não sou um político”. É por isso que eu tenho me empenhado tanto em fazer a crítica do neoliberalismo, do ponto de vista político, como a ideia de que o Estado é uma empresa e que você precisa de um gerente. Porque gestor é isso. Gestor é a palavra elegante, moderninha e engraçadinha para falar gerente. Mas desde quando o Estado precisa de um gerente? Então precisa desmontar desde já a ideia de que a política é gestão. O discurso que o tal centro vai trazer é esse. Vão dizer que não farão política porque política é politicagem e ainda vão dizer que vão proteger do comunismo, vão gerir.
 
Então, eu diria que a tarefa vai ser hercúlea, gigantesca. Porque uma coisa é você pegar o governo depois do PSDB, depois do Fernando Henrique. Outra coisa é você pegar depois do Temer e do Bolsonaro. E num primeiro momento vai haver uma expectativa popular tão grande que vai ser frustrada. Será complicadíssimo. É por isso que a unidade da esquerda é tão importante. Mas, ao mesmo tempo, precisamos desmontar o discurso da política como gestão. A extrema-direita, o Bolsonaro está se encarregando de desmontar enquanto força política. Ela continua sendo uma força eleitoral, mas como política, ele a desgastou. Mas os liberais vêm com tudo com a ideia de que não é preciso fazer política, é preciso gerir. E a primeira crítica através da Rede Globo que vai ser feita a um governo de esquerda e a um governo Lula vai ser essa.
 
Aos 80 anos, depois de tudo isso que vivemos e da visão crítica que a senhora tem sobre a classe média e a elite brasileira, a senhora continua otimista quanto ao nosso futuro?
Olha, eu não diria que eu sou otimista. Eu sou cautelosa. Tudo o que eu falei aqui dá mostras de uma visão cautelosa. Mas eu acho que nenhum de nós à esquerda têm o direito de não trabalhar com a esperança. Temos a obrigação política, ética e intelectual de descortinar as possiblidades do futuro. Eu sempre digo que “a luta continua” porque é preciso fazer isso. Veja, Spinoza — eu quero encerrar com o meu filósofo do coração e da cabeça — diz que nós somos seres essencialmente afetivos, que nós sentimos o que se passa no nosso corpo, na relação do nosso corpo com os outros corpos e na nossa relação com os outros. Nós somos sentimentos. Nosso pensamento é um tipo de sentimento. Spinoza diz que é um desejo racional ou é uma razão desejante. Pensar é um desejo, é um afeto. E ele diz que existem três afetos que estão na origem de todos os outros e de tudo o que nós somos: a alegria, a tristeza e o desejo. A alegria não é ficar “contentinho”. Alegria é aumentar a capacidade de existirmos e dos outros existirem também. É aumentar a potência do nosso ser. Os afetos de alegria aumentam a potência da nossa existência, do nosso ser e dos que nos rodeiam. A tristeza faz exatamente o contrário. A tristeza abaixa a nossa potência existencial, a nossa potência de sentir, a nossa potência de pensar e a dos outros. E o desejo é o que nos leva a fazer alguma coisa. Entre os afetos de alegria, Spinoza coloca o amor e a esperança, e entre os afetos de tristeza ele coloca o ódio e o medo. O medo e a esperança se opõem e o amor e ódio se opõem e a oposição é entre o que faz crescer a nossa força vital, a nossa força de pensamento, a capacidade transformadora do nosso desejo e aquilo que mata isso na raiz. Então, entre o medo e a esperança, eu escolho a esperança.