Um dos primeiros vereadores do Partido Comunista do Brasil e o seu primeiro candidato à presidência da República (1930) foi o operário negro Minervino de Oliveira. O único negro “retinto” eleito para a Assembleia Constituinte de 1946 foi o operário comunista Claudino Silva. Coube também a um deputado comunista, Jorge Amado, apresentar a emenda constitucional que garantiu ampla liberdade religiosa no país, permitindo que os cultos afro-brasileiros pudessem sair da ilegalidade. Grandes estudiosos do problema negro no país eram membros do Partido Comunista, como Edison Carneiro e Clóvis Moura. Por fim, foi de outro deputado comunista negro, Haroldo Lima, a proposta de colocar o dia 20 de novembro no calendário oficial da República, como dia nacional da consciência negra. No entanto, isso tudo não resolve o débito dos comunistas em relação à elaboração teórica e política em torno da “questão racial” no Brasil. Ainda há muito a ser realizado nesse sentido.

O movimento operário nos primeiros anos do século XX, hegemonizado por anarquistas, não deu atenção especial ao problema racial e nem procurou incorporar as reivindicações específicas dos trabalhadores negros. O PC do Brasil (PCB), herdeiro dessa mesma tradição, no seu congresso de fundação e mesmo nos seus primeiros anos de existência, também não colocou a luta pela igualdade racial entre suas bandeiras. Acreditava que os problemas eventualmente existentes se resolveriam naturalmente – e definitivamente – no socialismo, que seria conquistado através da luta dos trabalhadores negros e brancos unidos.

Contudo, no fundo, havia uma dificuldade de compreensão sobre a sociedade brasileira realmente existente. Podemos dizer que mesmo o jovem Partido Comunista estava impregnado por aquilo que ficou conhecido como “mito da democracia racial”. Esta ideologia era forte no país e impregnava até as associações negras mais atuantes. Por isso, as primeiras referências ao problema racial no país vieram, justamente, no sentido de negar sua existência. Entre nós não haveria uma questão racial, apenas social.

No mesmo ano de sua fundação (1922), numa carta dirigida à Internacional Comunista, referindo-se à existência de preconceito racial no país, o PCB afirmaria que o racismo era uma questão “absolutamente estranha ao Brasil, onde jamais se manifestaram quaisquer preconceitos de raça”. Essa foi uma resposta dada à Internacional Comunista que se preocupara com o fato de um dirigente nacional do PCB – Antônio Canelas – ter participado, no passado, de um jornal antissemita europeu. O Partido defendeu-se de uma suspeita completamente infundada, mas de uma maneira um pouco torta ao não reconhecer a existência do preconceito racial em nossa sociedade.

Passados poucos meses a IC enviou ao partido brasileiro uma nova carta comunicando a realização da sua primeira conferência sobre a “questão negra” e pedindo informação sobre a situação dos negros no país. Octávio Brandão foi incumbido de responder-lhes. “Nós enviaremos um relatório sobre a questão do negro no Brasil e a Comissão Central Executiva do nosso partido estudará a possibilidade de enviar um delegado à Conferência. Existem negros no Brasil. Mas não há no Brasil uma questão negra”, escreveu ele. Esta última afirmação, feita de maneira tão peremptória, não correspondia à realidade existente.

Quatro anos após a fundação do PCB (1926), foi publicada a primeira obra que buscava realizar uma interpretação marxista-leninista da sociedade brasileira. Ela se intitula Agrarismo e Industrialismo, de autoria do mesmo Octávio Brandão. Neste ensaio é possível observar com que perplexidade a esquerda ainda encarava a questão racial. Ali podemos ler, entre outras coisas, que no Brasil o “homem, como a terra, ainda estava em formação” e “não havia brasileiro – um tipo definido”, e sim “uma mistura desordenada de raças e sub-raças (sic!)”. Para ele, “o duplo caos da terra e do homem projeta-se sobre numerosos aspectos da vida nacional”. A angústia de Brandão quanto à miscigenação era a mesma que o escritor Euclides da Cunha havia expressado no seu monumental Os Sertões, publicado décadas antes. O positivismo, ainda dominante, os impedia de entender plenamente a complexa realidade social e cultural brasileira.

Ao exemplo de Euclides da Cunha, Brandão fez perigosa concessão ao pensamento preconceituoso predominante na academia brasileira no início do século XX. Numa carta enviada em 13 de junho de 1923 à Internacional Comunista escreveria: “Nós vivemos numa Nação na qual somos o único partido organizado; onde, salvo os anarquistas, desorganizados, somos os únicos a sofrer os golpes da reação. País de uma pequena-burguesia sórdida. País de imigrantes que vêm aqui somente para ganhar dinheiro e logo ir embora. País de mulatos, quer dizer, gente sem firmeza moral, sem caráter”. Ao bem da verdade é preciso dizer que essa afirmação problemática é algo isolado na obra desse autor e jamais será incorporada no arcabouço teórico-ideológico do PCB. Essa confusão, quanto à existência ou não de racismo no Brasil, iria prevalecer até o final da década de 1920. Isso acarretaria duras críticas da Seção Latino-Americana da Internacional Comunista.

Ao passar pelo Nordeste brasileiro no ano de 1929, o dirigente da Internacional Comunista (IC) Humbert-Droz ficaria com uma impressão diferente sobre a situação racial no país. E com uma sutil ironia aos camaradas brasileiros escreveria: “embora não exista nenhum preconceito racial no Brasil, como afirmam nossos companheiros (do PCB), uma coisa choca e se confirma a cada minuto passado aqui: carregadores, estivadores, os homens do trabalho braçal são todos negros, enquanto os contramestres e oficiais são todos brancos”. Para ele – um experiente comunista – era visível: existia uma questão negra no Brasil. Coisa que, estranhamente, os comunistas brasileiros – mergulhados na ideologia da democracia racial – ainda não tinham conseguido ver.

O Debate no seio da Seção Latino-Americana da IC

Em junho de 1929 ocorreu, em Buenos Aires, a Conferência dos partidos comunistas latino-americanos. Ali, pela primeira vez se debateu a “questão das raças” no nosso subcontinente. Papel importante nesse encontro teve o comunista peruano José Carlos Mariátegui. A conclusão provisória do debate foi feita por Humbert-Droz: “Quase todos nossos partidos negavam a existência de tal problema, limitando a questão das raças como simples questão social e afirmando que nas repúblicas da América Latina não existem preconceitos (…). Os debates da Conferência sobre esse ponto demonstraram claramente não somente que existe o problema de raças na América Latina como ele é de extrema complexidade”.

O assunto compareceu diversas vezes no Secretariado Latino-Americano da IC quando se discutiu a “questão brasileira”. Em 27 de outubro de 1929, Stepanov, representante russo, questionou o camarada Ledo (pseudônimo de Astrojildo Pereira, secretário-geral do PCB): “Creio que os camaradas brasileiros têm uma ideia falsa sobre a realidade existente no terreno da democracia formal. O camarada Ledo nos diz que (no Brasil) os negros podem até ser presidente da República, que podem ocupar qualquer posto e, contudo, 7/8 da população é iletrada. A maior parte desses iletrados (…) são negros. E, formalmente, os iletrados não têm direitos políticos”. Conclusão lógica: na prática, a maioria dos negros estava excluída dos direitos políticos por serem analfabetos e não podem ser candidatos a nada. As exceções só confirmariam a regra.

Na reunião de 31 de outubro o representante do PCB buscou responder a uma série de questões colocadas por Humbert-Droz e Stepanov, representante russo. A primeira delas seria sobre a existência de negros e a situação deles no interior do partido brasileiro. Astrojildo esclareceu que “na base e na direção do partido há muitos negros (…). O presidente do Bloco Operário e Camponês é negro. No partido não há nenhuma diferença entre negros e brancos. Em geral, acontece a mesma coisa na classe operária”. Algo que, no geral, parecia correto, especialmente quando comparado ao que ocorria em outras organizações políticas e sociais. Como já vimos, o primeiro vereador comunista – ao lado de Octávio Brandão – havia sido Minervino de Oliveira. Este também foi eleito presidente do BOC e da CGTB. Em 1930 tornou-se o primeiro candidato operário negro à presidência da República. Sinal de que a cor não era um obstáculo no interior do partido.

Na ocasião, os dirigentes da IC disseram-se preocupados com as notícias sobre um conflito ocorrido entre operários brasileiros e imigrantes jamaicanos negros, trazidos pela Ford para trabalhar numa de suas unidades no Pará. A vinda deles havia ocasionado uma greve e choques entre os próprios trabalhadores. Parecia-lhes ser esse um perigoso sinal de recrudescimento do racismo entre os operários.

Astrojildo tentou tranquilizá-los, afirmando que se tratava de algo isolado e, de forma alguma, se constituía como um problema de ódio racial. Explica que “para atrair trabalhadores a Ford fez muitas promessas: como altos salários etc. E de diversos estados brasileiros vieram operários trabalhar ali. As promessas eram uma coisa e os salários outra. Então, eclodiu uma luta entre a empresa e os operários”. Em resposta, a Ford “fez vir operários da Jamaica”, visando minar a resistência dos operários locais. Contudo, aquela não era uma briga entre brancos e negros porque “os operários nacionais não são todos brancos e há mesmo muitos negros”. Uma constatação verdadeira. A miscigenação brasileira diluía o conflito e impedia que ele se transformasse numa luta racial, como nos Estados Unidos.

A questão do preconceito no Brasil voltou à baila na reunião de 5 de novembro. Com a palavra Augusto Guralsky: “Os camaradas do Brasil não compreendem a questão das raças e, contudo, a questão é séria. Na América Latina a questão das raças joga tal papel que nós não podemos fazer uma revolução e guiar uma revolução ali sem dar uma resposta clara a essa questão (…). Nós devemos demonstrar que nem todos os brancos são opressores, que os proletários na luta contra a burguesia e os opressores de todas as raças vão resolver até o fim o problema das raças. E até aqui não temos dado uma resposta nítida e clara”.

Na sua intervenção Astrojildo procurou defender suas posições: “Como já disse no partido não somente há muitos negros, mas que os há também no CC. Há negros não porque procuramos colocá-los por serem negros, mas por serem militantes comunistas ativos. A cor da pele dos comunistas é uma questão que o Congresso do Partido não examinou quando escolheu o nosso CC. Se deseja dizer que os negros no Brasil, como nos Estados Unidos, formam uma categoria social à parte, eu reafirmo que isso é falso”.

“Nas usinas, nas fabricas, em todos os lugares há operários negros e operários brancos que possuem o mesmo trabalho, recebem os mesmos salários e têm a mesma condição de trabalho. Também nas plantações, brancos e negros, encontram-se sob as mesmas condições econômicas e sociais. É exato, sem dúvida, que no Exército e na Marinha, por exemplo, os negros e mestiços são muito raros entre os oficiais que são quase todos brancos ou mestiços (…) clareados”.

Continua o comunista brasileiro: “hoje, no Brasil, não existe uma questão específica negra. Ela existe como luta de classes dos operários brancos e negros confraternizados contra a sua condição de exploração e opressão que pesam sobre elas igualmente. Uma prova disso é que no movimento operário tal luta entre negros e brancos não existe”. A constatação de Astrojildo não era totalmente correta, mesmo quando se tratava do mundo do trabalho: ontem, ainda mais do que hoje, os negros se encontravam nas profissões menos qualificadas e ganhavam os piores salários. Droz pôde constatar isso na sua rápida passagem pelo Nordeste do país.

A cegueira quanto aos graves problemas de assimetria entre as “raças”– raça entendida aqui não como um conceito biológico e sim histórico-político ou sociológico – levou os comunistas brasileiros a se atrasarem em levantar bandeiras específicas contra a discriminação dos negros no trabalho e mesmo na sociedade. Naquele tempo a população negra– inclusive os membros das camadas médias – era excluída de vários espaços públicos, como hotéis, bares, parques e clubes. Situação que perdurou até recentemente.

Humbert-Droz continuou com suas criticas às posições de Astrojildo: “No que concerne à questão das raças e dos negros penso que Ledo deu hoje um grande passo em frente quando disse que a questão dos negros não se põe no Brasil da mesma maneira que nos Estados Unidos. Ele tem toda razão. Quando colocamos o problema de raças no Brasil e na América Latina devemos ainda estudar e ver como ele se apresenta ali. E ele, de fato, não se apresenta como nos Estados Unidos. Contudo, seria escamotear a questão afirmar que porque não existe da mesma maneira que nos Estados Unidos, ele não existiria”. E conclui: “Nós não estamos pedindo que o Partido Comunista do Brasil encare a questão dos negros como o partido dos Estados Unidos, algo que seria estúpido, nem mesmo como o caso cubano; é preciso tomar essa questão como uma questão brasileira, averiguar qual é a sua profundidade, suas características e mudar a política que aplica o partido nesse assunto”.

A nova resolução do Secretariado da Internacional Comunista sobre a Questão Brasileira de fevereiro de 1930 afirmava que “o trabalho sistemático e sério entre os emigrados e, também, entre as raças oprimidas (negros e índios) dará ao partido a possibilidade de aumentar e de estender sua influência junto às massas”. A partir daí a posição dos comunistas brasileiros começava a mudar, com a valorização da luta contra a discriminação, embora esta ainda comportasse algumas incompreensões de fundo esquerdista.

Essa alteração já podia ser vista na Conferência Sindical Latino-Americana em outubro de 1930. Ali o representante dos trabalhadores brasileiros e dirigente do PCB, Gubinelli (pseudônimo de Mário Grazzini), iniciou suas reflexões com uma pergunta: “Porque não temos feito nenhum trabalho entre os negros?” E ele mesmo buscaria respondê-la: “Porque os camaradas do partido não compreendiam e nem viam o problema de raça que tínhamos entre nós. Eles não viam o preconceito de raça que existia entre negros e brancos”. Problema que estava sendo corrigido, com a ajuda da IC.

“É verdade”, continua Grazzini, “que no Brasil o problema não se manifesta da mesma maneira que nos Estados Unidos. Mas, por exemplo, economicamente e socialmente os negros são mais explorados e têm menos direitos que os brancos. Esta não é uma questão legal, oficial. Mas é uma questão de fato”.

“Por exemplo, no comércio, não se admite negros na qualidade de empregados em hotéis. Há muito mais profissões que não admitem negros. Nos clubes esportivos não se admitem mais negros. Eu não sei como é hoje, mas, anteriormente, em São Paulo, não se admitiam negros como também mulatos (…). Essas diferenças não vemos entre os operários revolucionários, mas entre o povo em geral (…). Estou dizendo tudo isso para mostrar que há uma questão de raças entre nós, mas não tem a mesma característica dos Estados Unidos, mas ela existe de outro modo. Certamente, no movimento revolucionário e no Partido nós não temos essa separação. O secretário-geral dos tipógrafos de São Paulo é negro. Nós temos, por exemplo, o camarada (ilegível), líder do movimento sindical brasileiro, camarada negro que todo mundo ama”. Possivelmente esteja se referindo a Minervino Oliveira.

O tema continuava rendendo no Secretariado Latino-Americano da IC. Em 28 de novembro de 1930, Martinez engrossava a crítica às opiniões dos brasileiros. Afirmava ele: “Uma coisa que não compreendo é a resistência dos camaradas Silva (?) e Ledo (Astrojildo Pereira) sobre essa questão (do negro) (…). Nossa experiência demonstra que mesmo nos Estados Unidos tinha ainda em 1924 camaradas que não consideravam a questão negra como uma questão importante. Stepanov lembrou-se que um camarada cubano, em 1926, simplesmente negou a existência de um problema de raça em Cuba. Hoje a prática demonstrou o contrário e os camaradas de Cuba nos ajudam a resolver essa questão. É claro que as características da questão negra no Brasil ou em qualquer outro país da América Latina não são as mesmas que nos Estados Unidos, mas como vimos em Cuba, muitas dessas características são transplantadas em razão da influência preponderante que os Estados Unidos adquirem a cada dia; assim em Cuba, é fato, os negros são colocados vergonhosamente à margem da sociedade. Os negros foram trazidos para a América Latina porque poderiam ser mais intensamente explorados e esse estado de coisas subsiste até nossos dias. Em todos os países da América Latina constatamos que os negros são submetidos aos trabalhos mais penosos e são os mais mal pagos”.

• Obs. 1. Agradecemos a professora Marly Vianna por ter nos alertado da existência de um interessante debate em torno da questão racial na documentação da Internacional Comunista relativa ao Brasil, cuja cópia ela gentilmente nos cedeu.

• Obs. 2. A bibliografia segue na segunda parte deste artigo

*Esta é uma versão ampliada do artigo com o mesmo nome, publicado nos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Um olhar negro sobre o Brasil.

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.