Em 2002, antes da eleição de Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República, o Brasil recebeu as visitas do relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, e o representante de Comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, duas expressivas autoridades estrangeiras. Ziegler disse, no Rio de Janeiro, que havia uma guerra de classes no Brasil. “São 40 mil assassinatos por ano, de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça”, afirmou. “No Niger há fome porque só há areia e rocha, mas no Brasil, onde há terra fértil, riqueza e um clima tropical, a fome é um genocídio, não uma fatalidade. A responsabilidade é da ordem social, não da natureza. A responsabilidade é um produto de uma ordem totalmente injusta. Quem morre de fome no Brasil é assassinado”, disse o relator, um ex-deputado do Partido Socialista Suiço e professor de sociologia em Genebra e na Sorbone.

A reação do governo brasileiro foi dura. Roberto Martins, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chamou Ziegler de “maluco, desonesto e sem a seriedade necessária para representar a ONU”. O Ministério das Relações Exteriores divulgou nota lamentando “profundamente o tom pouco construtivo e a tônica desequilibrada das declarações do relator”. E o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, disse que Ziegler demonstrou “ignorância” sobre os problemas sociais brasileiros e que deveria parar de falar “bobagens”. O relator não recuou. Disse que em seu relatório recomendaria que o país criasse um instituto de controle da aplicação dos direitos do homem e atuasse em parceria com a sociedade civil. Com a posse de Lula, o diagnóstico de Ziegler foi superado.

Já Zoellick, o funcionário do governo norte-americano, iniciou suas observações sobre o Brasil recomendando prioridade para as mudanças na legislação trabalhista. “Como brasileiros apontam, as restrições regulatórias ainda reduzem os incentivos para a contratação de mais trabalhadores”, disse. Com os mandamentos neoliberais nas mãos, ele, que era o mais alto funcionário do governo do presidente dos Estados Unidos George W. Bush a visitar o Brasil, completou o arco de medidas que o governo brasileiro deveria adotar. “Limitações ao direito de propriedade, incluindo a propriedade intelectual, minam o desenvolvimento dos negócios e o potencial de investimentos, especialmente nas indústrias do conhecimento do futuro”, disse.

Outras recomendações de Zoellick: “Privatizações adicionais, particularmente nos setores bancário e de energia”, e mais “abertura da economia”. Em entrevista a um grupo reduzido de jornalista, o funcionário norte-americano repetiu uma ameaça que já havia feito em Buenos Aires, na reunião que definiu o cronograma para a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Segundo ele, se o governo brasileiro fosse devagar na negociação da Alca os Estados Unidos poderiam ‘olhar para outros lados’”. E explicou que na visão norte-americana o Brasil estava “no coração do movimento pelo livre comércio”. Além de Zoellick, Bush também visitou a América Latina, uma ofensiva para fortalecer o movimento de apoio às suas intenções. Eles sabiam que estava em gestação uma grande resistência à implantação da Alca.

Em 18 de novembro de 1999 partidos políticos de esquerda, personalidades progressistas e entidades populares e democráticas lançaram, em Brasília, o “Manifesto em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho”. O documento iniciou um amplo movimento cívico por um governo democrático e popular, capaz de assegurar um rumo progressista para o país e recuperar a confiança do povo em seu destino. Todos que de alguma forma contribuíam com a luta progressista manifestaram esse objetivo. Era uma resposta aos efeitos da crise mundial, que refletia o fracasso do neoliberalismo. O grau de exploração dos trabalhadores havia crescido assustadoramente, com as relações entre capital e trabalho em muitos países retrocedendo às condições prevalecentes nos primórdios do capitalismo, quando praticamente não existiam direitos trabalhistas.

Os lucros também aumentaram. Porém, as taxas de crescimento do PIB continuavam em declínio e o desemprego avançou para patamares só comparáveis aos registrados em alguns países nos anos 1930, no rastro da grande depressão norte-americana. Deste modo, em vez de solucionar, o neoliberalismo agravou a crise do sistema, exacerbou a desigualdade entre classes e nações, a concentração de renda e as contradições sociais. Os efeitos de tal política eram mais perversos nos países situados na periferia do sistema, onde o processo de abertura indiscriminada das economias e as privatizações agravaram a dependência econômica, os desequilíbrios das contas externas e a espoliação dos monopólios. Constrangidas às amargas e ineficazes receitas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), as nações da periferia não conseguiam fugir à lógica da estagnação econômica. A América Latina, por exemplo, depois de duas décadas perdidas, ingressou no século XXI mais pobre do que em 1982, quando eclodiu a crise da dívida externa.

Outro aspecto relevante daquela conjuntura internacional, entrelaçado à crise econômico-financeira, era a crescente ofensiva do sistema de poder dos Estados Unidos em todos as esferas e regiões. Com o colapso da União Soviética, as classes dominantes norte-americanas ficaram convencidas de que seriam donas absolutas e incontestáveis do mundo. Passaram a eleger, de acordo com suas conveniências, entre os países do chamado Terceiro Mundo uma vítima para seus bombardeios e aventuras bélicas. Promoveram a guerra no Iraque, atacaram a Somália, a Iugoslávia e mal disfarçaram o arrogante objetivo de consolidar sua hegemonia e estabelecer no porrete uma “nova ordem mundial”, cujos contornos foram esboçados em 1991 pelo então presidente dos Estados Unidos, George Bush pai — uma “ordem” unipolar em conformidade com os interesses e a vontade da burguesia norte-americana.

O império agravou o histórico bloqueio econômico contra Cuba e aumentou as represálias com base em leis extraterritoriais. Elevou as pressões para a implantação da Alca, reiterou a proposta de constituição de uma força de intervenção multinacional “em defesa da democracia”, naturalmente liderada por “boinas verdes”, e falou atém ressuscitar a ideia de “globalizar” a Amazônia, aumentando os investimentos e “ajudas” militares destinadas à Colômbia, ao Equador e ao Peru, além de promover frequentes manobras militares nas fronteiras do Amazonas. Os Estados Unidos passaram a exportar mais guerras e crises econômicas. Por trás de tudo isso está a necessidade e a dificuldade de financiar seu rombo externo, fonte da recorrente instabilidade do sistema financeiro e monetário internacional e das bruscas oscilações dos fluxos de capital. Os desequilíbrios externos da economia, destacadamente o déficit comercial elevadíssimo, fez o aquele país intensificar seu protecionismo e a ofensiva pela implantação da Alca.