Crise financeira, com retração do serviço público valioso à mulher, discriminação, assédio e impedimento sobre decisões pessoais, como a de conceber ou não um filho. Estes são alguns dos obstáculos enfrentados pelas mulheres na conquista de seus direitos e de seu espaço na sociedade. Mas a luta, em curso, já conseguiu importantes ganhos e fez muitos ícones. Sobre estas e outras coisas, Liège Rocha, Integrante da Executiva Nacional da UBM; Diretora da Revista Presença da Mulher e secretária nacional da Mulher do PCdoB, conversou com a Revista Princípios, no dia 9 de março

Princípios – Discute-se muito o prejuízo da crise econômica sobre as pessoas. Segundo dados da (Organização Mundial do Trabalho), a crise econômica atual afetará mais as mulheres do que os homens quanto a perdas de emprego, e pode aumentar o número de desempregadas no mundo em até 22 milhões. Como você avalia esta questão?

Liége Rocha – Em todo momento de crise se discute o impacto na vida das mulheres. Recentemente o IBGE divulgou dados que demonstram o crescimento do nível do desemprego entre as mulheres após a crise: em 2003 o índice era de 54,6%, em 2008 a média de mulheres desocupadas foi de 54,1% que, após a instalação da crise passou para 58,4. Em Camaçari-BA, a fábrica Britania demitiu de um dia para o outro 350 mulheres, evidenciando novas estratégias empresariais em decorrência da crise. A precarização do trabalho atinge também as mulheres que recebem apenas 70% do salário em relação ao do homem, apesar de ter um nível de escolaridade maior. Na medida em que a crise afeta as políticas públicas, recai sobre as mulheres a sobrecarga maior, pois são elas que mais utilizam os serviços públicos. Por exemplo, a creche é um equipamento fundamental para a mulher trabalhadora, e apesar de ser direito universal da criança de zero a seis anos, ser direito do trabalhador e da trabalhadora, quem luta e sempre lutou por creches são as mulheres. Em anos anteriores, pesquisas apontavam que as mulheres, quando desempregadas, demoravam mais tempo para voltar ao mercado de trabalho, por se envolverem com as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, ficando com menos tempo para procurar emprego. É sobre as mulheres, então, que recai mais intensamente a dupla jornada. Daí a importância dos equipamentos sociais como creches, restaurantes e lavanderias públicas que podem minimizar a dupla jornada de trabalho. O momento exige uma ampla mobilização das mulheres em defesa do emprego, da garantia dos direitos e pela diminuição da taxa de juros.

Princípios – Houve também conquistas das mulheres, nos últimos tempos?

Liége Rocha – Com certeza houve um avanço considerável. A conquista do direito de votar e ser votada, a ampliação da participação da mulher em vários espaços de nossa sociedade, vitórias significativas no campo legislativo, como a Lei Maria da Penha. A entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho formal nos últimos 30 anos é fator importante e que se deve à queda da taxa de fecundidade e à elevação do nível de escolaridade. O movimento feminista também jogou papel neste sentido, demonstrando para a sociedade que as mulheres são capazes, protagonistas da história. Mas ainda não estamos no mercado de trabalho em condição de igualdade, sofremos discriminações, assédio moral e sexual e convivemos com a diferença salarial, mesmo exercendo as mesmas funções. A criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres no primeiro dia do primeiro mandato do Presidente Lula é conquista significativa para a implementação de políticas para as mulheres e combate às desigualdades. Sabemos que há desafios a serem enfrentados, queremos que os avanços na legislação se traduzam no cotidiano das mulheres. O número de mulheres nos espaços de poder, por exemplo, está longe de ser o desejado e ainda convivemos com a sub-representação no executivo, legislativo e judiciário. Não podemos esquecer que mais mulheres no poder é uma questão de democracia.

Princípios – Como está o movimento das mulheres hoje? A luta da mulher no Brasil é unificada?

Liége Rocha – No Brasil e na América Latina o movimento de mulheres é heterogêneo. Existem vários tipos de organizações hoje – entidades e ONGs feministas, secretarias da mulher nos partidos políticos, nos sindicatos e centrais sindicais, nas entidades do movimento comunitário, redes temáticas, organizações de mulheres negras, índias etc. Em alguns momentos, como no 8 de Março – Dia Internacional da Mulher, o movimento feminista consegue, em certa medida, se unificar. Em 2002, as mulheres de 11 articulações nacionais, entre elas a UBM, organizaram a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, onde aprovaram uma plataforma política dirigida à sociedade brasileira e aos candidatos à eleição a presidência da república naquele momento. No processo de preparação da 1ª e 2ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, promovida pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, diversas organizações de mulheres integraram as comissões organizadoras nos estados e municípios. Algumas bandeiras hoje têm unificado o movimento de mulheres no Brasil, como é o caso da luta contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto, que congrega várias organizações de mulheres no país e se constitui numa frente ampla de atuação. O combate à violência contra as mulheres também é outra bandeira política que unifica. Está aí o resultado, que é a Lei Maria da Penha. Várias organizações feministas têm se articulado em torno da democratização da mídia e na luta por mais mulheres nos espaços de poder. Enfim, existem ações unitárias, mas também existem disputas e divergências.

Princípios – Além destas que você mencionou, quais outras bandeiras a luta das mulheres tem levantado?

Liége Rocha – Outra discussão que tem sensibilizado e unificado as mulheres é sobre a imagem das mulheres na mídia. Já foram realizados, por iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, com participação da sociedade civil, cinco seminários nacionais sobre mulher e mídia. O último teve como tema “Mídia, Gênero e Eleições”, debatendo a forma como a mídia tratou a questão de gênero durante o processo eleitoral. Por falar em eleições, outra questão que também nos unifica, é a participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. É visível o crescimento das mulheres na participação política. Mas nós saímos agora de uma eleição onde não se conseguiu garantir os 30% de mulheres nas chapas dos partidos políticos, e a eleição também não garantiu 30% de mulheres nas Câmaras. Depois da Segunda Conferência de Políticas para as Mulheres, se instituiu a necessidade da discussão sobre a lei de cotas, de no mínimo de 30% de mulheres. No Brasil já existe esta definição, mas não há mecanismo de punição. Se a lei não é cumprida tudo fica por isso mesmo. Esta discussão está hoje na ordem do dia e tem unificado o movimento feminista. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres baixou a “Portaria nº15, de 11 de março de 2009, publicada no Diário Oficial da União no dia 12, que institui a Comissão Tripartite para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da Lei Eleitoral (Lei 9.504 de 1997), especialmente no que diz respeito ao percentual de 30% de vagas destinadas às mulheres.”

Princípios – O caso, ocorrido em março último, do estupro e consequente gravidez de gêmeos de uma criança de nove anos no Recife, que teve a agravante do Arcebispo que excomungou a família, apresenta sinais nefastos da sociedade. Como isso se situa numa perspectiva mais geral?

Liége Rocha – Isso revela o absurdo e a incoerência de setores da sociedade. Já se sabia do risco de vida que a criança corria. Gravidez decorrente de estupro ou que representa risco de morte para a mãe são situações em que a legislação brasileira permite interromper a gravidez. No caso da menina estavam caracterizados os dois aspectos.O debate na sociedade que o caso suscitou, ressalta a importância da legalização do aborto e não criminalização das mulheres e acontece nos marcos em que se discute a instalação de uma CPI do aborto, que vem, com certeza, no sentido de criminalizar as mulheres mais uma vez. A luta pela legalização do aborto tem como principal foco garantir à mulher o direito de decidir se quer ou não fazer o aborto, também diminuir o número de mortes maternas em conseqüência de abortos clandestinos, sem assistência médica condizentes. Atualmente esta é a quarta causa de morte materna no Brasil.
O que se pretende não é o aborto enquanto método contraceptivo, isso tem que ficar claro. O que se pretende com a legalização do aborto é o direito de as mulheres decidirem se querem ou não
interromper uma gravidez sem ser criminalizadas ou correr risco de vida.

Princípios – Este caso, que é absurdo e extremo, é uma expressão de como a sociedade vê a mulher? Você acha que isso se manifesta em casos menores?

Liége Rocha – Essa discussão acontece em um contexto de preconceito e de criminalização. Sabemos que vários casos de interrupção da gravidez acontecem. Uma série de fatores leva a mulher a interromper uma gravidez. Por ela ser inoportuna num determinado momento, por aquela gravidez ter ocorrido em decorrência do estupro, por uma situação de dificuldades de vida etc. Em qualquer caso ainda há um forte preconceito na sociedade contra mulheres que abortam. Existe toda uma discussão realizada após a Primeira Conferência de Políticas para as Mulheres, quando foi criada a Comissão Tripartite para rever a legislação punitiva sobre o aborto. Estamos tratando de uma discussão que já foi feita no processo da Comissão Tripartite, composta por representantes da sociedade civil, do legislativo e do executivo. É uma discussão que leva em conta o aborto como questão de saúde pública, de direitos humanos das mulheres, de vida das mulheres, do enfrentamento à violência contra as mulheres e tem que ser garantida nos marcos do estado laico.

Princípios – Do que trata essa CPI do aborto? Quais são seus fundamentos?

Liége Rocha – Os proponentes da CPI são parlamentares conservadores, ligados à igreja e que, segundo eles, o objetivo da CPI seria o de investigar o uso e a circulação clandestina de medicamentos abortivos. Mas na prática quem é que vai ser ouvido nessa CPI? E se uma mulher for intimada a depor na CPI, qual o tratamento que vai ser dado a ela? Ela vai ser presa? Criminalizada?
Para a instalação da CPI é preciso que os líderes dos partidos indiquem os integrantes que a formarão. E existe uma articulação do movimento de mulheres com parlamentares, para que os líderes não indiquem seus representantes. Ela ainda não foi instalada.
Na Câmara tem um número significativo de parlamentares que são contra a legalização do aborto, muitos deles, inclusive, têm vários projetos que vão na linha da condenação. Nós assistimos na Comissão de Seguridade Social como foi difícil essa discussão. Não é uma coisa fácil. Mas temos que intensificar a mobilização e pressão perseguindo a legalização do aborto.

Princípios – O novo presidente dos EUA fez um movimento, no sentido de revogar algumas restrições que haviam sido feitas pelo ex-presidente George Bush em relação à ajuda a organizações que eram favoráveis a legalização do aborto. Foi um passo importante de fato?

Liége Rocha – Foi proibido, pelo antigo presidente da República dos EUA, qualquer tipo de financiamento a essas organizações. O fato de o atual presidente suspender isso foi bem visto pelo movimento feminista no Brasil. Precisamos acompanhar o desdobramento disto. Não tenho informações se essas organizações de fato já começaram a receber financiamento. Agora, que houve a suspensão do impedimento, houve! E que isso foi saudado pelo movimento feminista como um todo, também isso aconteceu.

Princípios – Na sua opinião, qual o maior símbolo da luta da mulher?

Liége Rocha – Depende de que época você está se referindo. A Berta Lutz, por exemplo, jogou um papel fundamental na luta pela conquista do voto feminino. A Simone de Beauvoir teve papel na discussão do feminismo. A Maria da Penha virou um ícone de enfrentamento à violência contra a mulher. Do ponto de vista da resistência armada contra a ditadura militar, Elza Monnerat e Helenira Rezende são símbolos de resistência. As cinco mulheres de Minas ( como Loreta Valadares e Gilse Consenza) são símbolos de resistência à ditadura militar. Sem esquecer das heroínas da história do Brasil, como Maria Quitéria e Maria Felipa de Oliveira, esta liderou a resistência popular à invasão da Ilha de Itaparica durante a luta pela independência na Bahia. Não esquecendo Chiquinha Gonzaga e Pagu entre tantas outras. Em cada momento da história tivemos aquelas que se destacaram e foram motivos de orgulho e de exemplo para milhares de mulheres na sua trajetória de luta. Precisamos resgatar e reforçar o papel das mulheres na história. Recentemente foi aprovado na CCJ o Projeto de Lei da Deputada Federal (PCdoB) Alice Portugal, que inclui no currículo do ensino médio a disciplina sobre os direitos da mulher. As mulheres estão tomando consciência do seu papel na transformação da sociedade, e estão conquistando espaço. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer na conquista da emancipação da mulher.

Carolina Ruy é secretária de redação de Princípios.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 43, 44, 45, 46