Segundo a teoria conservadora, antikeynesinana, governos não devem intervir nas economias. Afirma-se que os investimentos públicos ocupam o lugar reservado à iniciativa privada – e com um agravante por hipótese, o governo é considerado sempre menos eficiente que a iniciativa privada. Diz-se, ainda, que as reduções das taxas de juros e as políticas monetárias expansionistas somente geram inflação. Enfim, o impacto sobre o produto e o emprego dessas políticas é considerado desprezível e/ou efêmero.

Ademais, alguns poucos pregam que a tentação não deve levar ao pecado: mesmo em momentos de crise, nenhuma política intervencionista keynesiana deveria ser implementada. A receita é esperar pacientemente que a economia retorne por si só às fases de normalidade e crescimento. Se a demanda se reduz, preços tendem a cair. Se o desemprego aumenta, os salários se reduzem. Com preços menores, as compras aumentam. Com salários mais baixos, mais trabalhadores são contratados. Assim, teria-se como resultado o fim do desemprego, o incremento da produção e a volta aos tempos de prosperidade.

Está aberta a possibilidade de o mundo enfrentar uma recessão profunda com deflação, isto é, produto e preços em queda. Uma das mais importantes condições para que isto ocorra emergiu: o medo e a precaução de trabalhadores e empresários. A expectativa generalizada de que preços podem cair em função da queda esperada da produção e do nível de emprego por parte de uns e o medo da perda do emprego e da falência por parte de outros geram as chamadas profecias autorrealizáveis. Se a expectativa dos consumidores e empresários é de que preços irão cair, haverá desemprego e quebras de empresas, grande parte da sociedade tende a adiar seus gastos. Esse adiamento forçará uma queda de preços e produção. Dessa forma, as profecias se realizarão. Na grande depressão de 1929-33, preços e produção caíram cerca de 30% nas principais economias.

As ideias intervencionistas keynesianas foram quase que enterradas durante as últimas décadas. Contudo, diante da possibilidade de uma recessão com deflação mundial, inusitadamente, quase todos tornaram-se intervencionistas keynesianos.

Os mesmos que diante da possibilidade de uma grave crise mundial são keynesianos, em tempos de prosperidade, pregam a liberdade irrestrita de ir e vir dos capitais especulativos, a desregulamentação dos mercados financeiros, o fim dos controles sobre o comércio internacional, o equilíbrio orçamentário (como um princípio moral) e a constituição de bancos centrais independentes (voltados unicamente para o combate à inflação). Como regra, são antikeynesianos e, excepcionalmente, em momentos de crise, são ardorosos defensores do intervencionismo keynesiano. O economista inglês John Maynard Keynes, certamente era favorável à realização de intervenções emergenciais. Entretanto, sua concepção de planejamento era algo muito mais amplo do que intervenções em períodos de exceção.

Segundo Keynes, planejamento possui um significado mais extenso que política econômica. O primeiro, além de englobar o segundo, refere-se à construção de instituições e regras econômicas que devem ser duradouras. Instituições, regras, metas e políticas econômicas devem ser estabelecidas em tempos de normalidade visando a três objetivos: (i) estimular a atividade empresarial de investimento e geração de empregos, (ii) criar barreiras para evitar crises e (iii) criar uma sociedade de bem-estar social. As metas estabelecem limites para as principais variáveis macroeconômicas: emprego, produto, inflação e saldo comercial e de capital com o exterior. As instituições e regras tentam induzir a economia a se manter dentro das metas-limite. As políticas macroeconômicas devem ser utilizadas, em tempos de normalidade, quando há sinais de que as regras e instituições não serão suficientes para manter a economia dentro desses limites.

Quando a economia está fora dos limites estabelecidos, as políticas emergenciais são válidas. Nestas circunstâncias de crise, Keynes admitiu que até mesmo encher garrafas com dinheiro e enterrá-las em minas de carvão abandonadas para estimular a atividade empresarial e reduzir o desemprego seria aceitável. Contudo, observou que “seria mais sensato construir casas ou algo semelhante, mas se tanto se opõem dificuldades políticas e práticas, o recurso citado não deixa de ser preferível a nada”.

Portanto, o planejamento keynesiano é concebido sob a lógica de que o capitalismo do laissez-faire pode conduzir as economias para situações de recessão e deflação e, possivelmente, de mais desigualdade, pobreza e miséria. Assim, sugere uma intervenção branda, embora permanente, em economias com metas estabelecidas, com regras claras e com instituições públicas fortes para que não tenha que realizar intervenções profundas somente em momentos de crise. Evitar crises é uma prioridade do planejamento econômico keynesiano. Diferentemente, os que, atualmente e de forma repentina, se tornaram keynesianos defenderam as ausências de instituições, regras, metas e políticas macroeconômicas durante os períodos de normalidade e prosperidade. Contudo, são exatamente tais ausências que abrem as portas das economias modernas para as crises. Assim, enquanto as economias continuarem desgovernadas, por proposição dos “keynesianos” de ocasião, continuar-se-á a saborear ciclos com alguma prosperidade em tempos de laissez-faire e, consequentemente, crises amargas com intervenções emergenciais.

Em tempos de crise, são comuns os debates sobre a existência de oportunidades. Alguns acabam até por identificar pontos positivos que consideram característicos dos períodos de turbulência aguda. Contudo, cabe ser afirmado que crises são sempre negativas. Crises são sempre indesejadas.

Oportunidades aproveitadas em tempos de crise não emergiram com a crise, já existiam. Grande parte dos países em desenvolvimento e, particularmente, o Brasil poderia utilizar o momento para ir além das políticas (necessárias) de enfrentamento da crise, isto é, aprofundando o debate sobre a construção de um planejamento estratégico em que o objetivo de uma sociedade de bem-estar seja a meta final. Entretanto, esta não é uma oportunidade aberta pela conjuntura de crise, mas sim pela estrutura de sermos um país não desenvolvido.

Uma sociedade de bem-estar

Grande parte da sociedade organizada não tolera mais a realidade brasileira de País não-desenvolvido, de País em que o cidadão comum não tem qualidade de vida e que muitos não têm sequer as condições mais básicas de sobrevivência. A intolerância está acentuada pela falta de perspectiva: estamos onde não desejamos e não sabemos para onde estamos caminhando. Muitos se envolvem em debates acalorados sobre problemas conjunturais: são tensas as discussões sobre a inflação, a alta taxa de juros e a taxa de câmbio. Contudo, as decisões de políticas macroeconômicas estão desassociadas, pelo menos de forma explícita, de um planejamento estratégico do País, seja ele qual for: de construção de um País de bem-estar social ou de um País de economia primarizada com renda e patrimônio concentrados. O Governo atua, age, inaugura obras, tenta fazer o melhor, mas isso é pouco. O que precisamos é de um projeto de futuro para que possamos sonhar. E, também, para que possamos fazer os links entre ações presentes e o futuro desejado.

A era neoliberal que predominou nos últimos 25 anos acabou. O Brasil e tantos outros países que adotaram o receituário neoliberal não obtiveram o resultado prometido. Não houve desenvolvimento, não houve melhora significativa na qualidade de vida. As reformas de inspiração neoliberal desestruturantes do Estado e da sociedade não entregaram o que prometeram. A realidade derrotou o neoliberalismo, mas muitos de seus adeptos repetem suas ideias por falta do que dizer. É a inércia que predomina em momentos de transição. As poderosas entidades multilaterais que foram símbolos e instrumentos do neoliberalismo se encontram falidas, principalmente do ponto de vista de sua reputação, autoridade intelectual e capacidade de intervenção política. Estamos vivendo um vácuo histórico: faltam discursos e projetos. O neoliberalismo acabou e uma nova estratégia de desenvolvimento ainda não nasceu enquanto realidade social.

O objetivo final de uma estratégia de desenvolvimento deve ser a construção de País democrático, tecnologicamente avançado, com emprego e moradia dignos para todos, ambientalmente planejado, com uma justa distribuição de renda e da riqueza, com igualdade plena de oportunidades e com um sistema de seguridade social de máxima qualidade e universal – cujas partes imprescindíveis devam ser sistemas gratuitos de saúde e educação para todos os níveis e necessidades. O Estado de bem-estar social é o conceito que resume esse conjunto de realizações. O Estado de bem-estar social é a maior conquista da civilização ocidental ao longo do século XX. Foi a única conjugação de fatores sociais, políticos, econômicos que conformou um ambiente institucional que valoriza a liberdade, a individualidade, o trabalho, a gestão republicana do Estado, a justiça e o bem-estar. Sua construção, de forma mais acentuada, teve início ao final da década de 1940 na Europa ocidental, o palco da sua realização. Hoje há um Estado de bem-estar social em diversos países europeus, com destaque para os países nórdicos.

A implantação de um Estado de bem-estar no Brasil está longe de ser apenas a tentativa de realização de uma cópia do modelo europeu. O Estado de bem-estar social europeu deve ser visto como uma “obra aberta”, sua construção no Brasil deve ser um ato de “improvisação criadora” para utilizar os termos de Umberto Eco. É o equilíbrio entre a observação, a interpretação e a criação que deve balizar os limites do que está definido e do que está aberto na obra de arte social europeia. Portanto, “definitude” e “abertura” de um modelo social são importantes conceitos de limite que devem ser considerados em um processo de construção de uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil. Há de singular, de definido, no Estado de bem-estar social implantado na Europa um conjunto específico de pilares que não podem ser re-interpretados ou re-criados, tal como o sistema universalista de seguridade social. A seguridade social universal é o que garante o exercício da individualidade do cidadão sem discriminação. Re-interpretar a seguridade social universal ou recriá-la, neste caso particular, significa transformá-la, e corre-se o risco assim, por exemplo, de criação de um modelo contábil e atuarial de seguridade social que torna-se “foquista” (somente atende aos que contribuíram).

Entretanto, o tipo de democracia, ou seja, qual o “jogo” de inclusão política do cidadão é o mais adequado para se alcançar e manter uma sociedade desenvolvida está para ser definido.
Apesar de se ter clareza dos limites, ou seja, da “definitude” e também da “abertura” interpretativa e criadora que se pode ter a partir da referência, que é o Estado de bem-estar social europeu, não é possível fora de um movimento concreto de construção de uma estratégia de desenvolvimento do País estabelecer com maior exatidão o desenho da sociedade desejada. Por ora, é suficiente reproduzir as palavras daquele que soube definir a felicidade de forma perfeita em diversas passagens de sua obra.

Enfim, o que se deseja para o Brasil é um País onde se tenha “Tempo para a peteca e tempo para o soneto. Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo. Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto” (Vinicius de Moraes, referindo-se ao Rio de Janeiro, no poema Cidade Antiga).

Cabe ainda observar que por mais definida que seja uma estratégia de desenvolvimento, ela estará sempre em construção, seja para aqueles, tal como o Brasil, que ainda estão fazendo o vestibular para entrar na rota do desenvolvimento, seja para aqueles que já são desenvolvidos. Uma estratégia de desenvolvimento está sempre em construção, inclusive nos países mais desenvolvidos do planeta. Verdadeiros gestores de estratégias de desenvolvimento sentem de forma permanente aquilo que Camille Claudel sentia da distância imposta por Auguste Rodin: “há sempre algo de ausente que me atormenta” (fragmento extraído de carta de Camille a Rodin de 1886).

João Sicsú é diretor de Estudos Macroeocnômicos do Ipea e professor da UFRJ.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 32, 33, 34, 35