A Constituinte de 1988 concentrou vinte e quatro anos de luta pela redemocratização do país. Por isso, mesmo realizada sob uma correlação de forças adversa ao campo político progressista, ela se constituiu num marco na luta pela conquista e edificação da democracia brasileira. Ela sepultou o entulho autoritário do regime ditatorial e fez inscrever em suas páginas, entre suas cláusulas pétreas, o pluralismo político com uma das pilastras sobre as quais se alicerça o Estado democrático de direito. A contra-ofensiva dos partidários do conservadorismo e do autoritarismo veio imediatamente a seguir, com as vitórias dos “Fernandos”: Fernando Collor em 1989 e Fernando Henrique em 1994 e 1998. O denominado Consenso de Washington – a par ditando uma agenda danosa à soberania dos países e aos direitos dos trabalhadores – indicava o caminho do retrocesso democrático. Para realizar a agenda econômica e social do neoliberalismo era preciso restringir as liberdades e mutilar o florescimento de nossa nascente democracia.

Num plano, os dois governos de FHC restauraram o autoritarismo e trataram as lutas do povo, suas entidades e movimentos como “caso de polícia”. Na esfera política, a aliança PSDB-PFL cravou dois punhaisna democracia: a reeleição, mecanismo antidemocrático, nunca antes presente na história da República; e a instituição da cláusula de barreira, uma afronta ao princípio constitucional do pluralismo político.

A vitória de Lula em 2002 e sua reeleição em 2006 descortinaram um novo ciclo político. É uma oportunidade preciosa para se fazer avançar e ampliar a democracia. Para tal, impõe-se corrigir as distorções do atual sistema político-eleitoral na direção de mais democracia. Jamais o inverso.
Cinco grandes distorções poderiam ser destacadas: o financiamento privado das campanhas, que resulta na prática de ilícitos e numa exorbitante interferência do poder econômico no processo eleitoral; partidos políticos no geral frágeis em contraposição à força demasiada de suas lideranças; restrição às minorias políticas cerceando-lhes o crescimento e concentrando os direitos (fundo partidário, tempo de rádio e TV, presença na mídia etc) nas mãos dos chamados grandes partidos; presença das mulheres nas instâncias de poder desproporcional ao peso quantitativo e qualitativo na população; escassos mecanismos de democracia direta, determinando pequena participação do povo na vida política.
Além disso, é preciso remover o entulho antidemocrático herdado da era FHC: a reeleição e a cláusula de barreira.

Umas das principais virtudes do atual sistema político-eleitoral é o pluralismo político assegurado pela Constituição que garante a livre organização partidária. A luta política e a vontade do povo forjaram no Brasil uma democracia com muitas cores na qual se expressam as mais diferentes correntes políticas e ideológicas.

Justamente contra essa virtude é que o governo FHC impôs a cláusula de barreira. Disseminou-se a concepção autoritária de que a governabilidade e a eficácia da democracia exigem um Congresso Nacional dominado por meia dúzia de legendas. Felizmente, em dezembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal, cumprindo seu papel de guardião da Carta Magna, por unanimidade julgou inconstitucional a lei que criou a cláusula. E mais: considerou-a um expediente a serviço do objetivo de se impor “uma ditadura da maioria”. Entretanto, o conservadorismo não se deu por vencido e apresentou no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional com o fito de restaurar a cláusula de barreira.

Este é o momento apropriado para o Congresso Nacional, de modo sistêmico, realizar uma reforma política democrática que corrija as distorções do sistema, fortaleça os partidos, assegure o pluralismo político e aumente a participação do povo na vida política nacional.

EDIÇÃO 89, ABR/MAI, 2007, PÁGINAS 3