Como é possível alguém alegrar-se com o mundo,
a não ser quando se refugia nele?

Franz Kafka. Aforismos.

O dia 7 de janeiro de 2015 será lembrado pelo terror que mais uma vez golpeou duramente a humanidade. A cidade de Paris confrontou-se nesta data com a violência paroxística de um ataque que deixou 12 pessoas mortas e mais uma dezena de feridos, alvejados na sede do semanário francês Charlie Hebdo. O atentado foi o pior ocorrido na cidade desde 1961, quando ativistas de extrema direita, contrários à independência da Argélia, explodiram uma bomba na linha de trem entre Estrasburgo e Paris, matando 28 pessoas. No ataque ao Charlie Hebdo, homens encapuzados e armados com devastadores fuzis Kalashnikov, supostamente agindo em honra da Guerra Santa Islâmica, mataram alguns dos mais reconhecidos cartunistas e jornalistas da França, entre eles o editor da revista Stéphane Charbonnier (o Charb), Jean Cabut, Georges Wolinski, Bernard Maris, Bernard Verlhac (o Tignous).
O Charlie Hebdo era conhecido mundialmente pela maneira como usava o humor para intervir desabusadamente no debate mundial político, cultural e de costumes. Entre os “alvos” do escracho da revista estavam o profeta Maomé e o fundamentalismo islâmico, além de outras fontes de extremismo, sobretudo à direita. A reação de fundamentalistas ditos muçulmanos à linha editorial do Charlie Hebdo foi o que o tornou, nos últimos anos, ainda mais conhecido e em escala mundial; e também o que levou as autoridades francesas a providenciarem escolta policial permanente para o diretor Charb, que jamais retrocedeu no intuito de manter a verve humorística aguerridamente crítica aos extremismos de toda a espécie. Em resposta a um ataque perpetrado à revista em 2011, Charb não hesitou em revelar-se firme em seus propósitos profissionais: “eu não tenho filhos, nem esposa, nem carro, nem crédito. Pode parecer um pouco pomposo o que vou dizer, mas eu prefiro morrer de pé do que viver de joelhos”. Assim ocorreu. Ao menos esta batalha o terror venceu.
Para pensar sobre o fato, que, no que tem de horrendo, traduz muito da dinâmica global contemporânea, é preciso deixar claro que um ato como esse é inaceitável e manter vigília atenta para que os culpados sejam encontrados e punidos no rigor da Lei e pelas autoridades competentes, sem o revanchismo selvagem estimulado por alguns setores conservadores. Além disso, é imprescindível refletir em contexto sobre o terrível evento, considerando o seu lugar no processo histórico hegemônico do mundo atual. Por fim, é preciso ter clareza quanto aos efeitos que um ato com tal envergadura e tal repercussão pode ter sobre o desencadeamento de fundamentalismos outros, de norte a sul, de leste a oeste, além de lutar para que eles não ganhem força.
Tratemos, então, de colocar o fato no contexto contemporâneo, relativizando-o, não para diminuir a sua gravidade, mas para melhor enxergar algo de sua forma própria, a qual gera impactos sobre nós, que, mesmo à distância, damo-nos ao trabalho de perguntar “para onde é que vai este ‘açougue bárbaro que um dia foi a humanidade’? Lembremo-nos, para início de conversa, de que no mesmo dia 07 de janeiro de 2015, um atentado fundamentalista no Iêmen matou mais de 30 pessoas e deixou ao menos 50 feridos. Segundo noticiaram alguns poucos veículos de comunicação no Brasil, um carro bomba explodiu fora de uma escola da polícia e atingiu alunos da instituição, candidatos que esperavam para se inscrever e transeuntes. Embora tenha matado e ferido mais pessoas, o atentado no Iêmen não teve na mídia global a mesma repercussão que aquele contra o Charlie Hebdo.
Um dos motivos para isso é que ataques dessa estirpe são muito mais comuns no mundo árabe e na África, mas a repercussão que eles conhecem no Ocidente é, para dizer pouco, muito restrita. Aos olhos ocidentais, enquanto a carnificina ocorre longe de suas fronteiras centrais, ela parece pouco real ou significativa. A máquina ideológica do ocidente nos faz pressentir que nesses lugares “excêntricos” a violência está em seu habitat natural e que não há muito o que fazer contra isso, nem mesmo impressionar-se ou indignar-se. Entretanto, quando a violência do terrorismo ocorre, por assim dizer, “dentro de casa”, ela parece ter o dom de nos interpelar ideologicamente, para que confirmemos, em nosso refúgio de cidadãos tocados pela civilização, “o avanço perigosíssimo das concepções fundamentalistas bárbaras, sobre o nosso confortável mundo civilizado”.
Todavia, quem conhece um pouco de história sabe que o horror não é exclusividade do mundo bárbaro, não-civilizado, ou não-ocidental. O próprio mundo civilizado (dir-se-ia ocidental; dir-se-ia capitalista) foi capaz de promover terríveis barbáries em nome da civilização. Basta lembrar de como certa ideologia iluminista, certo humanismo burguês, certo catolicismo, somados ao bom e velho liberalismo econômico não apenas toleravam, mas eram cevados, por exemplo, pelo trabalho escravo em escala global.
Noutros termos, diríamos que se o capitalismo é, ao mesmo tempo, um fenômeno local e mundial, não é difícil entender criticamente sua ideologia e sua cultura, que se pautam no seguinte raciocínio cínico: para efeito local, a barbárie é algo inaceitável; para efeito global ela é não apenas tolerada, mas, às vezes, empregada a favor da reprodução dos valores civilizados. Não nos esqueçamos de alguns exemplos recentes: invasões ao Vietnã, ao Iraque e ao Afeganistão; a prisão de Guantânamo; o uso sistemático e institucionalizado da tortura; o apoio a ditaduras ou a Estados psedo-democráticos genocidas…Como exemplo final e cabal, basta forçar um pouco a memória, adelgaçando a inocência, para reconhecer no que hoje chamamos de fundamentalismo islâmico um resultado (ou um traço genético) de elementos culturais e políticos que, há pelo menos quarenta anos, vêm servindo ao imperialismo norte-americano e à expansão global do capitalismo. O terrorismo de hoje, portanto, não pode ser compreendido sem a sua historicização ou sem considerá-lo também resultado da expansão do “mundo democrático”, dos “valores ocidentais”, do “direito ao consumo”, do “direito à liberdade burguesa”. Todos esses são elementos angelicais de aparência, que escondem a demoníaca essência de voracidade do capital.
Ocorrendo no mesmo dia, os atentados no Iêmen e em Paris nos mostram, portanto, ao menos uma coisa: o terror e a barbárie são fenômenos globais, não desvinculados dos processos civilizatórios capitalistas. Além disso, tais fenômenos precisam ser interpretados a partir da sua condição de resposta radical ao avanço global do mundo do capital. O capital e sua máquina cultural, pelo menos desde os anos 90, estão confrontando intensivamente regiões do globo e culturas até então relativamente infensas a ele. Este é o processo que precisa ser descrito, para não cairmos na tentação de julgar os eventos do 7 de janeiro de 2015 de forma maniqueísta como um confronto entre o fundamentalismo dos bárbaros e a liberdade como valor fundamental da civilização. Isso, sobretudo, pelo fato de que muitos dos que irão sofrer na pele os desdobramentos cruéis do atentado não são os jornalistas de todo o mundo, que tiveram a sua liberdade de exercício de profissão golpeada pela chacina do Chaelie Hebdo. Eles são, nesse contexto, os players mais fortes do jogo. Quem sofrerá na pele as consequências deste ato, certamente, se não houver vigilância das forças verdadeiramente progressistas de todo o mundo, serão as numerosas famílias de imigrantes que sustentam a Europa, que para lá são atraídas pelo capitalismo e que serão cada vez mais oprimidas em seu direito de professar, dentro do ocidente, um comportamento não ocidental.
O esforço dos conservadores em escala global será, certamente, o de aliar-se com a mídia monopolista a serviço do capital e colocar o atentado ao Charlie Hebdo na conta de uma violência contra o abstrato valor da “liberdade de expressão”. Com isso, o objetivo de governos e de setores oportunistas da direita mundial será o acirramento do “estado de sítio global”. O problema é que os conservadores aferrados ao mundo capitalista, aqueles que estão, portanto, mais vinculados aos tipos mais espúrios e silentes de fundamentalismo e terror, enxergam a “liberdade” como um dogma. Em nome dela, tudo é possível, tudo é permitido. Os reacionários brasileiros, por exemplo, já começam a se mexer no que se refere à pauta que lhes interessa relativamente a essa questão: nos dois dias posteriores ao massacre de Paris, a mídia do país fez um esforço hercúleo para distorcer os argumentos e vincular a agressão ao semanário francês e as negociações empreendidas em diversas partes do mundo, em especial da América Latina, para a regulação responsável da mídia.
Na esteira desse argumento bestializante e de corte interesseiramente abstrato, abre-se, portanto, espaço para que a boa e velha direita global, sedenta de fascismo, aumente o volume do discurso em favor do recrudescimento do controle dos direitos dos cidadãos, da restrição de liberdades migratórias, da acentuação do estado de sítio do mundo, pois o Outro é muito, muito perigoso. A expansão global do capitalismo se vale quase sempre da seguinte artimanha ideológica: criar, na dinâmica histórica, valores inquestionáveis e depois deixá-los girar em falso, como se sempre estivessem ali e daquele jeito, com aparência de “segunda natureza”, ainda mais natural que a primeira. Assim funciona também com as ideias de fundamentalismo e de liberdade, apropriadas pela perspectiva política que interessa à reprodução do capital.
Numa obra de juventude, a Crítica da filosofia do direito de Hegel, Karl Marx discorria sobre como seria possível extrair, da vergonha e do terror, a coragem necessária para a verdadeira transformação social. Ali encontramos uma frase lapidar, que nos serve de lição para hoje: “É preciso ensinar o povo a se aterrorizar de si mesmo, a fim de nele incutir coragem” . Não se trata de simplesmente indicar culpados para o atentado ao Charlie Hebdo, além daqueles que apertaram o gatilho e de outros possíveis envolvidos diretamente no plano. É inescapável compreender o processo que nos leva até esse ponto de inconcebível violência e, assim, avaliar melhor o atoleiro em que nos metemos contemporaneamente. Um atoleiro que, às vezes, para suportar o insuportável, transformamos em refúgio, quando seria melhor tentar abandoná-lo, construindo coletivamente outro horizonte possível, no qual fosse permitido resignificar a palavra civilização.
Mas, por enquanto, somos todos Charlie.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com