Programa golpista é mais do mesmo da direita
A manifestação a favor da democracia e contra o golpe em marcha é a deflagração de um conflito social de grande escala no Brasil. Bem-vindos, companheiros e companheiras, brasileiras e brasileiros, ao mundo onde já estão Grécia, Portugal, Espanha, Estados Unidos e muitos outros países nos quais o neoliberalismo vem fazendo estragos de grande monta. A tensão febril que se instalou no Brasil, com a agressiva campanha da mídia para consumar o golpe com a velocidade de um relâmpago, tem a única finalidade de remover barreiras para que o grande capital possa se movimentar livremente.
E isso quer dizer que os direitos do povo estão na alça de mira da direita para serem rapidamente suprimidos. Conquistas sociais asseguradas nos capítulos sétimo e oitavo da Constituição e na Consolidação da Leis do Trabalho (CLT), toda a legislação que protege a soberania nacional e até as garantias de funcionalidade da democracia estão seriamente ameaçadas. Essa agenda do retrocesso é o programa do golpe, a verdadeira intenção dos que querem abreviar o mandato da presidenta Dilma Rousseff, liquidar a imagem popular do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e encurralar a esquerda.
O programa de governo da direita, que não por acaso está sempre guardado a sete chaves, é bem visível por sua atuação política ao longo da história; ele nunca venceu uma eleição livre e honesta exatamente porque tudo o que prescreve é a imposição de limites à participação do povo na vida política e econômica do pais. Sua luta ideológica se resume a combater as forças que tentam equalizar o escandaloso desnivelamento social brasileiro. A direita defende o que ela chama de lei e ordem — tradução de imobilidade social — somente porque a quase totalidade dos seus privilégios advém da pobreza e da exclusão da vida econômica de dezenas de milhões de brasileiros.
Mero oportunismo
Essa lógica ganha sentido de urgência atualmente porque a crise que se alastrou pelo mundo desde o colapso do gigante financeiro Lehman Brothers põe em xeque a sobrevivência do sistema que permite ganhos fabulosos no mercado financeiro, o gigantesco mecanismo de parasitismo da economia. O programa do golpe se resume a esse ponto. A adesão de setores produtivos a ele revela apenas o pensamento histórico do grande empresariado brasileiro.
Quando Lula se apresentou com reais possibilidades de vencer as eleições presidenciais de 1989, esses setores pularam rapidamente na canoa furada da candidatura de Fernando Collor de Mello por mero oportunismo. Esse empresariado viu, naquela aventura, a possibilidade de suprimir as conquistas sociais e trabalhistas e quebrou a cara. Mais adiante, ele embarcou na nau de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e mais uma vez se viu em apuros. É que não há meio termo: ou se produz ou se especula no mercado financeiro.
Mas o empresariado que agora sobe na embarcação dos golpistas sempre achou que pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O resultado é que se o Estado não tivesse se preocupado com a industrialização do país nosso atraso seria ainda muito maior. É possível dizer que se tivéssemos dependido unicamente do capital privado no Brasil, ou se, por outra, não tivéssemos contado com o Estado desenvolvimentista de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck, provavelmente ainda seríamos um país agropastoril.
Divisão do trabalho
O que prevaleceu até aqui no Brasil foi o egoísmo, a inépcia ou a má vontade dos detentores do grande capital. A bolsa de valores, por exemplo, só foi aparecer na década de 1960. E, é provável, mais por conta de um decreto ou da exigência das multinacionais que chegavam com poderes absolutos pelas mãos dos golpistas de 1964 do que por um real desejo dos atores brasileiros que podiam se organizar — os trabalhadores e os democratas estavam arrochados pela tirania — para instaurar no mercado doméstico a lógica do capitalismo, mesmo que primitiva.
Tanto isso é verdade que ainda hoje o capital que transita pelas bolsas brasileiras não cumpre a função de financiar projetos, investir em novos negócios, apostar em pesquisas de ponta. O dinheiro está lá, mas não de fato, como deveria. Está lá para ser usado na ciranda financeira especulativa. Coisa da servil oligarquia brasileira. Nossa sociedade foi estruturada de modo a preservar o acúmulo, a impedir a migração social. Para a direita, quem nasce vassalo deve morrer vassalo, não importa o talento que tem nem o esforço que faz.
A noção de coletivo passa ao largo — sempre passou — da ideologia das classes dominantes. Foi assim que a divisão do trabalho em escala mundial, trazida pela “globalização” neoliberal, encontrou terreno fértil no Brasil. Enquanto os países centrais ficaram com a radiante missão de guiar a economia do planeta, outras nações da periferia que se lançaram na aventura neoliberal receberam a vil função de consumir as quinquilharias alheias, adotá-las e produzi-las com tecnologias de segunda mão.
Horizontalidade social
Do ponto de vista geopolítico, o Brasil nas mãos da direita apostou num sólido alinhamento com os Estados Unidos e seu projeto de “globalização” neoliberal, aceitando a internacionalização dos centros de decisão brasileiros e a fragilização do Estado, em troca de um projeto de “governança global” rigorosamente utópico. Do ponto de vista econômico, a disponibilidade de capitais internacionais financiou o abandono da estratégia desenvolvimentista, a volta às políticas econômicas ortodoxas e ao livre-cambismo do século XIX.
Faltava ao Brasil ousadia — o país estacionou no cassino global e lá ficou. A criatividade brasileira, que tanto desponta em campos como a música e o futebol — e que a rigor nunca pôde ser aproveitada em um projeto de nação —, era inútil naquele mar de mediocridades. Muitos brasileiros que não pertenciam ao jogo fácil de ganhar dinheiro às escuras passaram a integrar o pelotão dos perdedores — segundo os preceitos do neoliberalismo. A regra neoliberal é clara: quanto mais necessidade o capital impor ao trabalho, mais este é instado à produção. Quem não se encaixa nessa regra por não possuir as condições de, mesmo pressionado, produzir mais, é solenemente ignorado.
Daí o ódio da direita quando se trata de qualquer iniciativa de construir a horizontalidade social. Não é difícil entender por que esse discurso quimérico, de pregação do deus-mercado, que entre outras coisas ignora a real função da necessidade e do indivíduo no processo econômico, descambou para Estados altamente elitizados, com vocações autoritárias, e cidadãos arrochados. Eles querem um Estado policialesco — principalmente para reprimir a resistência às mazelas sociais que advêm de seu projeto de sociedade.
Tentação ao autoritarismo
Os neoliberais ignoram a questão social em seus discursos aritméticos. Não levam em conta que a coletividade tem direitos que precisam ser atendidos. A consecução do engenho humano, portanto, é inviável pela sua ideologia. Em termos de gestão estatal, a dose ideal de participação do governo, especialmente em um país como o Brasil, aponta para uma maior regulação econômica. Essa função do governo pode significar a diferença entre um país eletrizado pelo ambiente de oportunidades e um país que se arrasta com uma massa de desistentes.
O que os golpistas propõem é esse mais do mesmo. Nada mais. O desespero para desfechar um golpe rápido na democracia advém desse quadro adverso global, com os países centrais sofrendo desequilíbrios macroeconômicos de grandes proporções, como déficits das contas correntes e orçamentárias em simultâneo, além de se confrontarem com inflação crescente, contínua desaceleração do crescimento e debilidade cambial que faz aumentar o valor real de bilhões de dólares de suas dívidas públicas.
O golpe está inserido nessa ofensiva global contra os trabalhadores e os povos, mais uma expressão violenta do capitalismo e da sua natureza exploradora e parasitária. O sistema já não consegue viver sem elevar o parasitismo ao máximo, criando um círculo vicioso, uma rosca sem fim. A incapacidade de resolver a crise se traduz na tentação de vastos setores do grande capital de recorrer de novo — como na primeira metade do século XX — ao autoritarismo e à violência para impor o seu domínio. Essa é a natureza da guerra deflagrada pela direita contra o mandato da presidente Dilma Rousseff e o legado do ex-presidente Lula. Somente essa.