Dualidade do modelo chinês e a crise de superprodução relativa – Depois de se concentrar na produção de bens e serviços de alta tecnologia, adquirindo bens de consumo, de capital e matérias primas industriais de outras economias – especialmente China, Canadá, México, Japão e Alemanha – os Estados Unidos passaram a enfrentar déficits crescentes na balança comercial. No final de 2024, o saldo anual desfavorável entre exportações e importações atingiu a marca de 1,1 trilhão de dólares.
Apesar das sucessivas taxações impostas pelos governos Trump e Biden sobre produtos chineses, a China respondeu, em 2024, por 13,5% de tudo o que os EUA importam, representando uma pequena alta em relação a 2023. Outro grande parceiro comercial dos EUA, o México, tem recebido importantes investimentos que utilizam de insumos chineses para viabilizar a fabricação de itens, posteriormente exportados para o vizinho do Norte.
Sob o governo Trump, novas fases da guerra comercial incluíram taxações não apenas sobre importações chinesas, mas também sobre produtos de diversos países aliados, sob o pretexto de forçar o repatriamento de empresas norte-americanas. No entanto, as medidas protecionistas geram incertezas sobre as possíveis consequências danosas para a própria economia americana.
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Não é de todo improvável que o império, em contexto de declínio relativo, adote medidas arriscadas com perdas calculadas, visando infligir prejuízos maiores àqueles países que apresentam maior capacidade competitiva em setores específicos. Ao mesmo tempo, a suspensão do financiamento a agências das Nações Unidas, a retirada do Acordo de Paris, o desmonte de programas de assistência social, o retrocesso nos projetos de produção de energia eólica e a intensificação da produção de combustíveis de origem fóssil são políticas com implicações que transcendem as fronteiras dos EUA.
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Na agenda ambiental, os grandes perdedores são os trabalhadores e os setores empobrecidos, que não têm condição de suportar os efeitos da degradação ambiental, como inundações, secas, altas temperaturas, incêndios e epidemias de proporções catastróficas.
Na esfera econômica, ainda sob a gestão Biden, o imperialismo norte-americano e uma União Europeia subordinada aliaram-se contra as placas solares, os geradores eólicos e, especialmente, os carros elétricos produzidos na China. A justificativa é o “excesso de capacidade” chinesa. Em resposta, os EUA, inicialmente, impuseram uma taxa de 100% sobre os veículos elétricos produzidos na China, dada a incapacidade das montadoras locais de competir com os preços praticados pelos asiáticos. A Tesla, por exemplo, foi ultrapassada pela BYD como maior produtora de elétricos do mundo, enquanto a China se consolida como o principal mercado para esse segmento.
O argumento do excesso de capacidade chinesa é uma narrativa questionável usada pelos Estados Unidos na tentativa de dar fundamento à guerra comercial que iniciaram. No passado, os EUA inundaram o mundo com suas mercadorias industrializadas, mas hoje, incapazes de competir, adotam o protecionismo. Essa mudança desmascara a posição dos EUA no comércio internacional, uma vez que passaram de maiores defensores da retórica do mercado aberto, dos acordos internacionais para supressão de taxas, dos acordos de livre comércio para o protecionismo em larga escala. Antes, o discurso atendia ao objetivo de expandir seus capitais, produzir grandes superávits comerciais a seu favor. A realidade, contudo, é outra.
Em uma economia global amplamente integrada, as medidas dos EUA de restringir importações impactam a China, cujo crescimento depende fortemente do comércio internacional. Isso alimenta uma crise potencial de superprodução relativa, típica de economias de mercado.
A teoria marxista das crises cíclicas e de superprodução relativa são conceitos chave para entender as contradições inerentes ao modo de produção capitalista.
Na discussão marxista sobre crises, a superprodução relativa ocorre quando a produção ultrapassa a demanda efetiva, especificamente, quando mais mercadorias são produzidas do que a capacidade do mercado de absorver, levando a quedas nos preços, redução dos lucros e, eventualmente, a recessões ou depressões econômicas. O termo “relativa” refere-se ao fato de que a superprodução não é absoluta em relação às necessidades humanas, mas sim relativa à capacidade de compra da sociedade, especialmente dos trabalhadores. Em outras palavras, a superprodução é relativa ao poder de consumo efetivo da população, que é limitado pelas relações de produção capitalistas. A aplicação desse conceito à China contemporânea decorre da identificação de indícios de que o país enfrenta desafios que se assemelham a uma crise de superprodução relativa, embora com características específicas devido ao seu modelo econômico e político.
A China é líder mundial na produção de aço, painéis solares, baterias e veículos automotivos, além de expressiva capacidade produtiva em diversos ramos da manufatura, nos setores eletrônicos, químicos etc. Internamente, apresenta uma oferta de imóveis não absorvida pelo mercado, e que levou à falência da gigante imobiliária Evergrande.
Esses fenômenos são consistentes com a ideia marxista de que no capitalismo a produção tende a expandir sem levar em conta os limites da demanda efetiva, criando desequilíbrios que podem levar a crises.
Na China, o modelo de crescimento baseado em exportações e investimentos em infraestrutura priorizou a expansão da produção, mas o consumo interno crescia a um ritmo mais lento, o que fez o governo recorrer a investimentos maciços em infraestrutura e setores industriais, muitas vezes financiados por dívida. No entanto, as exportações continuam sendo essenciais para garantir o nível de crescimento do PIB, a exemplo dos 5% alcançados em 2024.
Essas crises frequentemente assumem um caráter global, já que as economias estão integradas. Nesse sentido, uma crise de superprodução relativa na China não pode ser entendida isoladamente, mas sim, como parte de um sistema capitalista mundial que enfrenta desequilíbrios semelhantes. À medida que, gradualmente, o mercado norte-americano e europeu, se fecham à produção chinesa, novos mercados são acessados, em particular os países do sul global, de modo a garantir o fluxo de mercadorias e serviços.
A combinação de elementos de planejamento estatal com uma forte presença do mercado e do setor privado, características do modelo chinês, dá a esta experiência contornos específicos, sobretudo quando se considera ser uma das maiores economias do mundo. A promoção do consumo interno, a redução da capacidade produtiva em setores como aço e carvão, e o controle do endividamento, têm sido medidas essenciais para garantir a dinâmica da economia.
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Entretanto, para além de discutir se a China enfrenta ou não uma crise de superprodução relativa, é indispensável analisar como o governo chinês está lidando com essa situação para contornar os seus efeitos tendenciais sob uma economia de mercado.
Aqui não se trata de simplesmente classificar a China como capitalista em função da ocorrência dessas crises, o que significaria abdicar de uma análise mais profunda das particularidades daquele modelo. A experiência chinesa desafia categorias tradicionais, exigindo uma análise mais profunda de suas particularidades. Na busca de um arcabouço teórico de compreensão desta realidade, no caso, o autodenominado socialismo de mercado chinês, não parece razoável rechaçar a experiência, relegando-a à categoria de mais uma expressão do sistema capitalista, sendo necessário compreender suas nuances e implicações para o futuro da economia global.
Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública, ex-secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia. É membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.