Liberalismo e Fascismo: afinidades eletivas
Num artigo escrito há alguns anos atrás tratamos da relação conflituosa, às vezes explosiva, entre o liberalismo e a democracia política. Buscamos, seguindo as preciosas indicações de Domenico Losurdo e João Quartim de Moraes, demonstrar que os mecanismos da democracia moderna – especialmente o sufrágio universal e o direito de organização – são frutos das lutas populares e que, em certo sentido, foram vitórias dos trabalhadores contra o liberalismo.
Lembramos, por exemplo, que os principais ideólogos da burguesia, os liberais, foram porta-vozes do sufrágio censitário – baseado na renda – e do sufrágio qualificado – baseado na educação formal e/ou nas funções sociais de mando exercidas. As duas formas de sufrágio teriam por finalidade excluir as classes populares do jogo político. Democracia, entendida como soberania popular, seria quase um sinônimo de “despotismo das massas”.
John Stuart Mill (1806-1873), um liberal bastante avançado para a sua época, chegou a declarar: “Considero inadmissível que uma pessoa participe do sufrágio sem saber ler, escrever e, acrescentaria, sem possuir os primeiros rudimentos de aritmética”. Em outra passagem, sem meias palavras, afirmou: “Um empregador é mais inteligente do que um operário por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos (…). Um banqueiro e um comerciante serão provavelmente mais inteligentes do que um lojista, porque têm interesses mais amplos e mais complexos a seguir (…). Nestas condições, poder-se-iam atribuir dois ou três votos a todas as pessoas que exercessem uma destas funções de maior relevo.”
Naquele artigo tratamos apenas da análise da gênese da democracia e não das características que ela assumiu ao longo dos últimos séculos. A democracia política, ao contrário do que pensavam os operários e burgueses no século 19, demonstrou que também poderia ser funcional ao capitalismo. Por isso mesmo, a resistência burguesa foi se reduzindo pouco a pouco. Reduzida, mas não completamente eliminada. A democracia política não é – e jamais será – um valor universal para ela e seus ideólogos.
Paradoxalmente, no início do século 20, os ideólogos do fascismo foram buscar no arcabouço liberal clássico muitas de suas teses sobre o direito à participação política das massas populares. Vejamos o que afirmou Mussolini, em 1925, logo após a sua triunfal “Marcha sobre Roma”: “é absurdo conceder os mesmos privilégios a um homem inculto e a um reitor de universidade. Não é abaixando as classes elevadas que se cria a igualdade (…). Atribuem-me a ideia de restringir o sufrágio universal. Não! Todo cidadão conservará seu direito de voto ao parlamento de Roma. Mas um professor universitário ou um grande técnico deve ter mais uma palavra a dizer do que um carregador analfabeto”. Mussolini também, como a maioria dos liberais dos séculos 18 e 19, era contrário ao sufrágio feminino. No mesmo discurso, citado acima, declarou: “Sou partidário do sufrágio universal, mas não do sufrágio feminino”.
Poucos se espantaram com tal declaração, pois ela estava dentro do senso comum liberal-conservador predominante na época. Mesmo o sufrágio universal masculino era uma novidade na grande maioria dos países capitalistas e as mulheres ainda não tinham direito ao voto nem na Inglaterra, mãe do liberalismo, e nem na França, terra da revolução liberal-democrática.
Este descompasso entre democracia política e liberalismo ainda podia ser sentido na segunda metade do século 20. Um dos fundadores do neoliberalismo, Von Hayek, chegou a defender que não haveria nenhuma incompatibilidade entre sufrágio censitário, exclusão política das mulheres e a democracia. Escreveu ele: “É útil recordar que, no país em que a democracia é mais antiga, e mais bem-sucedida, a Suíça, as mulheres ainda são excluídas do voto e, pelo que parece, com a aprovação da maior parte delas. Também parece possível que, numa situação primitiva, um sufrágio limitado, por exemplo, reduzido somente aos proprietários de terra, consiga formar um Parlamento tão independente do governo que possa controlá-lo de modo eficaz.”
Continuou o decano do neoliberalismo: “nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e qualquer ampliação da democracia é um bem. Independentemente do peso dos argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e deve ser julgada pelo que realizar. (…) A decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não são os da democracia em si”. Os princípios aos quais ele se refere seriam: a defesa da propriedade privada e da “livre iniciativa” (para o capital). Dentro deste esquema limitado, as ditaduras de direita, sob determinadas condições, também poderiam se tornar “os melhores métodos” para os fins últimos propostos. Não deixa de ser irônico que os liberais ainda sustentem que é a esquerda que tem uma visão limitada e instrumental da democracia política.
Liberalismo e colonialismo
Mas é em relação ao problema do colonialismo que o velho e o novo liberalismo mais se aproximam das teorias reacionárias e proto-fascistas. Ao contrário do que geralmente se pensa, o liberalismo na sua forma clássica não se constituiu num entrave ao colonialismo e ao imperialismo nascente. Ele forneceu as justificativas ideológicas para a expansão europeia – e, mais tarde, estadunidense – sobre a África, a Ásia e a América Latina.
Como bem lembrou Losurdo, um liberal do porte de um Tocqueville comemorou assim a vitória inglesa sobre a China na infame Guerra do Ópio: “Eis afinal a mobilidade em combate contra o imobilismo chinês! Trata-se de um acontecimento grandioso, sobretudo quando se considera que é mera continuação, última etapa numa série de acontecimentos da mesma natureza, que gradativamente vão empurrando a raça europeia para além de suas fronteiras, submetendo sucessivamente todas as outras raças ao seu império ou sua influência (…); é a sujeição das quatro partes do mundo, por ora da quinta parte. Por isso, é bom não se maldizer demais o nosso século e a nós mesmos; os homens são pequenos, mas os acontecimentos são grandiosos”.
John Stuart Mill, por sua vez, na sua obra clássica Da Liberdade, escreveu: “O despotismo é uma forma legítima de governo quando se está a lidar com bárbaros, desde que o fim seja o progresso e os meios sejam justificados pela sua real consecução. A liberdade, como princípio, não é aplicável em nenhuma situação que anteceda o momento em que os homens se tenham tornado capazes de melhorar através da livre discussão entre iguais. Até então não haverá nada para eles, salvo a obediência absoluta a um Akbar ou a um Carlos Magno se tiveram sorte de encontrá-los.” Para Mill, parece que liberdade e a democracia só teriam plena validade no mundo ocidental e cristão. Também não podia ter pesos iguais para a elite e as massas trabalhadoras, mesmo nos países capitalistas centrais. Por isso, o voto censitário e qualificado. Assim, essas noções não poderiam ter nenhum valor universal.
Certas ideias dos séculos 18 e 19 continuaram fazendo estragos nos séculos seguintes. Karl Popper – liberal e defensor das chamadas “sociedades abertas” –, num artigo recente, escreveu: “Libertamos esses Estados (as colônias) de modo muito apressado e simplista” e comparou este fato ao de “se abandonar uma creche a si mesma”. O que ele se esqueceu de dizer é que a libertação das colônias não foi dádiva das metrópoles europeias, mas uma conquista arrancada com muita luta Em muitos casos precisou-se de anos de guerras de libertação nacional sangrentas. As potências ocidentais França, utilizaram os meios mais bárbaros para manter seus impérios além-mar. O filme Batalha de Argel retrata bem esses métodos ditos civilizados usados pelo colonialismo francês no norte da África.
O fim da União Soviética e das experiências socialistas no Leste Europeu ocasionou uma profunda alteração na correlação de forças mundial a favor do imperialismo. Isso teve impacto no campo da luta de ideias. O liberalismo – na sua versão neoliberal – tornou-se amplamente hegemônico, e velhos valores reacionários (como o racismo), anteriores às revoluções socialistas e anticoloniais, adquiriram novo vigor. Justificam-se a guerra e a ocupação de territórios do terceiro-mundo em nome da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. Como no passado, novamente, a barbárie se impõe em nome da civilização e do progresso.
Fascistas e liberais
Não pretendemos aqui colocar um sinal de igualdade entre liberalismo e fascismo. Após a trágica experiência de ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, a esquerda aprendeu a importância de distinguir os dois termos. A confusão neste terreno conduziu os trabalhadores a uma das maiores derrotas de sua história, que ocorreu num fatídico janeiro de 1933.
Se fascismo e liberalismo não são iguais, tão pouco existe entre eles uma muralha intransponível. Diria mesmo que existem mais pontos de convergência do que sonha nossa vã filosofia. Isso se explica, fundamentalmente, porque os dois são expressões ideológicas de uma mesma e única classe: a burguesia. Esta constatação não é secundária.
Durante as últimas décadas, os ideólogos burgueses procuraram reverter o jogo e colocaram um sinal de igualdade entre o comunismo e o nazismo, tachando-os indistintamente de totalitários. Neste esquema a contraposição ao totalitarismo (comunista e nazista) seria feita pelo liberalismo político e econômico. Dentro desta mesma operação ideológica, o termo liberalismo novamente foi amalgamado com o de democracia. Os pais do liberalismo foram promovidos a pais da democracia moderna. Constituiu-se, assim, o mito ou a fórmula mais eficiente da política moderna: liberalismo = democracia.
Ironicamente, Quartim de Moraes afirmou: “Os politicólogos liberais costumam enfatizar as semelhanças entre fascismo e comunismo, apresentando-os como duas variantes do que chamam de totalitarismo (…) (mas) qualquer estudo histórico-estatístico minimamente objetivo mostraria que a quantidade de liberais que aderiram ao fascismo foi incomparavelmente maior do que a de comunistas”. Por fim, não “foi nos países do extinto bloco soviético que os exterminadores de judeus e de comunistas, membros da SS ou esquadrões da morte (…) encontraram refúgio, mas principalmente no muito liberal Canadá”. Acrescentaria aqui a operação secreta realizada pelo governo estadunidense – em comum acordo com o Vaticano – para dar cobertura à fuga de criminosos de guerra alemães, especialmente oficiais e cientistas.
No entanto, foi no nosso continente que o conluio entre liberais e fascistas tornou-se mais evidente – uma aliança que produziu uma das páginas mais sombrias da nossa história. Os liberais latino-americanos tornaram-se a vanguarda ideológica e política da maior parte dos golpes militares ocorridos na segunda metade do século 20, inclusive no Brasil. Por aqui, em 1964, os muito liberais Estadão, Folha e UDN conclamaram abertamente a intervenção militar e aplaudiram a repressão que se seguiu à autodenominada “redentora”. O mesmo fenômeno se repetiu no Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai etc.
Não foi sem razão o esforço feito por alguns neoliberais para retirar as ditaduras militares latino-americanas da lista de regimes ditos totalitários. Elas passaram a ser definidas apenas como autoritárias. Males menores diante da ameaça do totalitarismo comunista.
Escreveu Hayek, “o oposto de democracia é governo autoritário: do liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais”. E continuou: “Devo confessar que prefiro governo não-democrático sob a lei a governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei)”. Por isso, ele e Milton Friedman deram apoio aberto e assessoraram o governo neoliberal “não-democrático” de Pinochet.
Maior exemplo da possibilidade de articulação entre neoliberalismo e fascismo pode ser extraído da vergonhosa entrevista dada pelo mesmo Hayek ao jornal chileno El Mercúrio em abril de 1981. Depois de dar apoio à ditadura, justificou: “Uma sociedade livre requer certas morais que em última instância se reduzem à manutenção das vidas; não à manutenção de todas as vidas, porque poderia ser necessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de vidas. Portanto, as únicas normas morais são as que levam ao ‘cálculo de vidas’: a propriedade e o contrato”. Naquele exato momento em que o papa do neoliberalismo dava sua entrevista, muitas vidas estavam sendo sacrificadas nos porões da ditadura fascista do general Pinochet.
* O título original desse artigo era Fascismo, liberalismo e colonialismo e foi publicado no livro Marxismo, história e a revolução brasileira (Editora Anita Garibaldi, 2009).
** Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi
Bibliografia
LOSURDO, Domenico. Fuga da história? Rio de Janeiro: Revan, 2005.
________________. Democracia e bonapartismo. São Paulo: Ed. Unesp; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
________________. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
________________. A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense. São Paulo: Boitempo, 2010.
MORAES, João Quartim de. “Contra a canonização da democracia”, in Crítica Marxista, n. 12, São Paulo: Boitempo, 2001.
________________. “Liberalismo e fascismo”, in Crítica Marxista, n. 8, São Paulo: Xamã, 1999.
MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: De onde vem, para onde vai? São Paulo? Senac, 2001.