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Interpretações sobre a construção do socialismo na América Latina do século XXI

20 de março de 2024

O que pensam alguns marxistas contemporâneos atentos para o socialismo latino-americano como o argentino Atílio Borón, o boliviano Álvaro Garcia Linera e o cubano Carlos Garrido.

Por Theófilo Rodrigues

Como construir o socialismo na América Latina? São muitas as respostas que podem surgir para essa pergunta a depender do país em que o interlocutor se encontre, da conjuntura política em que esteja ou da corrente política com a qual se identifique. Um comunista cubano na década de 1960 falaria sobre as vantagens da guerrilha. Um comunista chileno no início da década de 1970 não teria dúvida em apontar a via eleitoral como o caminho a ser seguido. Um comunista brasileiro na mesma década de 1970, no Araguaia, diria que a guerrilha rural é a solução. O mesmo comunista brasileiro, décadas depois, não apostaria tantas fichas naquela tática. Afinal, como registrou um revolucionário russo em 1920, “a alma viva do marxismo é a análise concreta da situação concreta” (1).

João Amazonas costumava dizer que “não há receita nem modelo a seguir, pois as nações do mundo são diferentes” (2). O brasileiro Amazonas pensava parecido com o peruano Mariátegui para quem “o socialismo na América não deve ser decalque nem cópia, mas sim criação heroica”. Cada formação social e histórica deve encontrar seu próprio caminho, não obstante os casos de sucesso mais conhecidos – Rússia, China, Vietnã e Cuba – terem em comum a guerra civil de libertação nacional como antecedente.

Na América Latina do século XXI, intérpretes marxistas têm apresentado diferentes caminhos para a construção do socialismo. Conhecer essas interpretações, sem necessariamente assimilá-las como decalque, cópia, modelo ou receita, é uma exigência para o debate público que tenha a pretensão de romper com a jaula de aço da hegemonia do pensamento liberal e capitalista. Entre alguns desses marxistas contemporâneos atentos para o socialismo latino-americano merecem atenção o argentino Atílio Borón, o boliviano Álvaro Garcia Linera e o cubano Carlos Garrido.

Moderar ou radicalizar?

Ex-vice-presidente da Bolívia no governo de Evo Morales entre 2006 e 2019, o sociólogo Álvaro Garcia Linera é seguramente uma das vozes marxistas com maior alcance na região.

Linera sustenta a tese de que a esquerda na América Latina passou por duas ondas diferentes (3). A primeira onda foi marcada pela ascensão de governos progressistas como Lula no Brasil, Kirchner na Argentina, Chavez na Venezuela, Morales na Bolívia, Corrêa no Equador e Tabaré Vázquez no Uruguai, entre outros. Essa primeira onda foi sustentada pela existência de grandes mobilizações sociais. Se um governo progressista for sustentado por grandes mobilizações, diz Linera, “suas possibilidades e chances de transformação serão muito maiores”.

Após alguns anos, essa primeira onda teve uma retração. A direita neoliberal, conservadora e autoritária retomou diversos governos como na Argentina, no Equador, no Uruguai, no Paraguai e no Brasil. Mas essa onda conservadora foi curta. Logo em seguida, uma nova onda progressista retornou. Nessa segunda onda, novos países foram incluídos como Colômbia e México. Trata-se de uma onda “mais expansiva territorialmente, mas com outras características, mais superficial em sua densidade”, explica Linera.

Qual a razão para essa segunda onda ser “mais superficial em sua densidade”? De acordo com Linera, o fato dela não ser derivada de grandes mobilizações como a primeira. “Portanto, você tem um progressismo um pouco desbotado e, ao mesmo tempo, lideranças mais moderadas. É um progressismo que vem para administrar e não para transformar”.

“O progressismo da primeira onda era rupturista. Era como se o mundo tivesse começado com eles: um novo sistema político, um novo sistema de ideias, uma nova economia”. Com exceção da Colômbia, observa Linera, “o segundo progressismo é administrativo”.

Se não é possível esperar da segunda onda progressista a construção do socialismo, como fazer para que esse horizonte esteja na terceira onda? “A América Latina precisa entender que a terceira onda não pode ser uma lembrança melancólica da primeira”, responde Linera. Essa terceira onda não pode ser moderada, mas sim ousada.

“A nova geração de líderes deve ter a coragem de assumir seus novos desafios, sem melancolia e sem nostalgia. Com respeito pela história, mas com audácia e criatividade suficientes para empreender a transformação do presente em direção a um futuro imaginado por eles”, defende o intelectual boliviano.

A interpretação de Linera sobre a terceira onda parece sedutora. Mas precisa ser matizada pela conjuntura de cada formação social e histórica. No caso brasileiro, por exemplo, sem a construção de uma coalizão de frente ampla moderada, a esquerda provavelmente teria sido derrotada pela extrema-direita em 2022. Aqui, como já argumentei em outra ocasião, a terceira onda ousada e radical, de que fala Linera, emergirá de forma dialética do interior da própria frente ampla (4).

Superar a hegemonia liberal dos meios de comunicação

O sociólogo argentino Atílio Borón concorda com a avaliação de Linera sobre a moderação da atual segunda onda progressista (5). Para Borón, essa moderação “tem a ver com um contexto internacional diferente, muito alterado, muito mais ameaçador”.

Borón, no entanto, ressalta um elemento que aparece menos no discurso de Linera: a questão da hegemonia dos meios de comunicação.

“Tenho uma tese que defende que, se não há democracia no espaço mediático comunicacional, incorporando nesta categoria não só a imprensa gráfica, mas também a rádio e a televisão, parece-me muito pouco provável que se possa sustentar um genuíno projeto democrático”, argumenta o argentino. Segundo Borón, “com as novas técnicas de comunicação e propaganda, hoje em dia, há uma população muito influenciável pela mensagem proveniente dos meios de comunicação”.

Borón traz dados interessantes para demonstrar como a mídia foi fundamental para a recente eleição da extrema-direita na Argentina.

“Milei era uma outsider no campo político, mas não na mídia. (…) foi o economista mais consultado pelos programas de rádio e TV em 2018. (…) naquele ano fizeram 235 entrevistas com ele e ele teve 193.547 segundos de tempo de antena. Nenhuma figura na vida política chega sequer perto destes números, e o mesmo aconteceu nos anos seguintes. Em outras palavras, foi uma construção midiática cuidadosamente planejada” (6).

Para Borón, não foi nenhuma surpresa a vitória de Milei. Em suas palavras:

“Não [foi surpresa] para aqueles de nós que estudam o papel das redes sociais, algoritmos e novas técnicas de neuromarketing político. Ou para aqueles que, como eu, têm pregado no deserto a necessidade de travar a batalha de ideias para a qual fomos convocados por Fidel desde o final do século passado e para a qual tanto a esquerda em geral como o movimento nacional-popular [tem] irresponsavelmente subestimado. Resultado: triunfo da “antipolítica”; identificação da “casta” e do Estado como agentes predatórios, ocultando o papel da burguesia e das classes dominantes como agentes de exploração coletiva; exaltação do hiperindividualismo e seu correlato, abandono quando não repúdio às estratégias de ação coletiva e às organizações de classe, territoriais ou trabalhistas, confiando na “salvação” individual e condenando aqueles que participaram de protestos coletivos, tudo em benefício da exaltação irracional de um demagogo habilidoso patrocinado pelos capitais mais concentrados”.

No caso brasileiro, fica muito claro que a preocupação levantada por Borón não consta do centro da agenda do governo Lula. A distribuição das verbas oficiais de publicidade do governo permanece reforçando a assimetria da informação no país em favor do establishment liberal.

Transformar as instituições para manter o poder

O filósofo cubano-americano Carlos Garrido, professor da Southern Illinois University, é outro interessante intérprete marxista das ondas progressistas na América Latina. Leitor de Martha Harnecker, Garrido entende que as duas ondas progressistas não foram internamente homogêneas. Na primeira onda, por exemplo, havia um conjunto de governos mais radicais como os de Chavez, Morales e Correa e um outro conjunto mais moderado como o de Lula, Kirchner e Vázquez.

Na visão de Garrido, se os governos de esquerda não alterarem rapidamente as instituições após serem eleitos, fatalmente serão derrotados. O principal exemplo utilizado por Garrido é o da Venezuela, onde Chávez promoveu rapidamente profundas mudanças que garantiram a permanência do projeto socialista no poder por pelo menos 25 anos. Garrido também menciona Cuba e Bolívia entre esses exemplos.

Diz Garrido:

“Os processos eleitorais liberal-democráticos, as instituições legais, os militares, a polícia, em essência, a totalidade da superestrutura político-jurídica-ideológica, são fundamentalmente burgueses. A tomada do poder deve ser seguida pelo processo imediato de destruição destes aparatos e de desenvolvimento em seu lugar de aparatos proletários genuínos, cujo objetivo mais fundamental e crítico é manter o poder nas mãos da classe trabalhadora. As preocupações com limites de mandatos, eleições multipartidárias, meios de comunicação pluralistas, etc. são fundamentais para a problemática burguesa. São preocupações ligadas a uma forma específica de sociedade de classes que desculpa a exploração e a pilhagem através de apelos vagos a liberdades abstratas e a concepções distorcidas de democracia. Este sentimentalismo burguês deve ser progressivamente expulso quando um partido dos trabalhadores toma o poder. Somente através desta abolição progressiva da ideologia burguesa e dos aparelhos de Estado poderá uma vitória política da classe trabalhadora assumir significativamente o seu papel histórico como agente emancipatório. O socialismo, como fase transitória, não deve apenas mudar as relações e os objetivos de produção, mas com ele todas as estruturas institucionais e jurídicas que a sociedade burguesa utiliza para se reproduzir material e ideologicamente” (7).

“Só se estivermos conscientes de tais lições é que esta nova onda de socialismo não será mais uma vez interrompida por uma reação reacionária”, conclui.

A guerra de posições nas redes sociais

Seguidor de Althusser e Gramsci, Garrido concorda com a preocupação de Borón sobre o papel da comunicação na construção do projeto político da classe trabalhadora. Mas Garrido dá maior ênfase para a disputa nas redes sociais. Numa linguagem gramsciana, o cubano ressalta a importância da guerra de posições nas redes sociais.

Para Garrido, a lógica da lacração nas redes sociais deve ser substituída pela do convencimento. Diz ele:

“Qual a melhor forma de travar a guerra de posições online? (…) A batalha de ideias, a guerra de posições, está fundamentalmente enraizada no convencimento. Você não pode envergonhar alguém para que concorde com você. Falar mal dos trabalhadores com atitudes paternalistas da classe média é literalmente o oposto do que parece uma guerra de posições bem-sucedida” (8).

Não há transformação sem consciência social

Quando Linera sugere que os governos oriundos de grandes mobilizações sociais são mais ousados, quando Borón trata da batalha de ideias na mídia e Garrido argumenta em favor da guerra de posições nas redes sociais, o que estão defendendo é o papel transformador e mobilizador da comunicação na disputa de consciências da sociedade.

Num texto publicado na revista Princípios, em 2000, João Amazonas registrou algo semelhante. Para o grande líder histórico dos comunistas brasileiros, “sem a formação de uma consciência social revolucionária, não há revolução que se concretize e se sustente. É uma tarefa na ordem do dia no mundo inteiro a de desenvolver o processo de formação de uma consciência social avançada e levá-la às grandes massas do povo” (9). Uma consciência social que valorize a questão nacional em contraponto ao imperialismo.

Em síntese, o que todos esses intérpretes do socialismo latino-americano contemporâneo estão dizendo é que não haverá perspectivas de longo prazo para governos de esquerda se não implementarem ações concretas que transformem qualitativamente a consciência social.

Notas:

1 – LENIN, Vladimir Ilitch. Kommunismus: Journal of the Communist International. In: __. Collected works. Moscow: Progress Publishers, 1965, p. 165-167. v. 31. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1920/jun/12.htm

2 – https://grabois.org.br/2000/02/01/a-perspectiva-histrica-do-socialismo-2/

3 – https://www.ihu.unisinos.br/categorias/634612-moderacao-esta-fazendo-mal-a-esquerda-entrevista-com-alvaro-garcia-linera

4 – https://grabois.org.br/2024/03/07/quem-quer-o-socialismo-no-brasil/

5 – https://www.abrilabril.pt/internacional/concentracao-dos-media-afecta-democracia-afirma-atilio-boron

6 – https://opoderpopular.com.br/atilio-boron-analisa-triunfo-de-milei-foi-uma-construcao-midiatica-cuidadosamente-planejada/

7 – https://www.internationalmagz.com/articles/post-110_marxist_analysis_latin_america

8 – https://mronline.org/2024/02/22/social-media-and-the-war-of-positions/

9 – https://grabois.org.br/2000/02/01/a-perspectiva-histrica-do-socialismo-2/

Theófilo Rodrigues é cientista político.