Existe uma corrente importante no interior do marxismo contemporâneo que rejeita a “centralidade da política”. Alguns intelectuais questionam mesmo a pertinência de uma teoria marxiana da política e do Estado. Este fenômeno não é propriamente novo. Na década de 1970, um grande debate ocorreu no seio da esquerda a partir da provocação (no bom sentido) feita pelo filósofo liberal-socialista Norberto Bobbio que indagou logo no título de um de seus artigos: Existe uma doutrina marxista do Estado?. Em seguida, Umberto Cerroni colocou nova questão: “Existe uma Ciência Política marxista?”. A resposta deles, nos dois casos, foi negativa. 

“Por que então faltou uma ciência política marxista? Considero que as principais causas sejam o achatamento economicista sofrido pelo marxismo em um primeiro momento (…) e a redução político-pragmática que ele registrou num segundo momento”, concluiu Cerroni (1979: 55-56). Por sua vez, Bobbio (1979: 28-29) constatou que esta ausência se explicaria pelo fato de que os marxistas, em geral, teriam se preocupado mais com a questão da conquista do poder político e não com o exercício efetivo deste, pois o próprio Estado socialista seria algo transitório, tendente a desaparecer mais ou menos rapidamente. Afirmou o filósofo italiano: “Tendo uma concepção negativa da política, achavam que todas as formas de governo, enquanto políticas, eram más. (…) Por estas razões, para Marx e Engels, o problema do bom governo não se resolve com a substituição de uma forma ‘má’ por uma forma ‘boa’, mas sim com a eliminação de toda forma de governo político (isto é, com a extinção do Estado e com o fim da política”.

Outra interpretação sobre as dificuldades de se extrair uma teoria da política dos trabalhos de Marx e Engels – e em outros marxistas – nos foi dada por Ralph Miliband (1979: 9). Elas teriam a ver “com o caráter dos escritos sobre política de todos os vultos importantes do marxismo, a começar pelo próprio Marx. Esses escritos são, em sua maioria, produtos de episódios históricos particulares e circunstâncias específicas; e o que há de exploração teórica da política no que se pode chamar de marxismo clássico (…) é quase sempre fragmentário e assistemático”. Contudo, o sociólogo inglês acreditava ser possível extrair do conjunto da obra tanto uma teoria do Estado quanto da política. Poderiam ser construídas a partir “do acervo de material variegado e fragmentário que constituiu o corpo do marxismo”. Seria nas obras históricas – como Lutas de Classes na França, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e Guerra Civil na França – que se encontrariam os principais elementos para a construção de tais teorias. 

Esta também é a opinião do professor Décio Saes (1987: 10) que, ao justificar a existência de uma teoria do Estado em geral, afirmou: “não desconhecemos a existência de imprecisões, deslizes terminológicos e mesmo contradições internas nas formulações de Marx e Engels sobre o Estado (…). Muitos autores usam esses defeitos como argumento central para questionarem a existência de uma única teoria marxiana do Estado”. Mas seria “a articulação orgânica de todas as formulações ajustadas ao conjunto de cada análise sobre o Estado que compõe a teoria marxiana do Estado”. 

A ontonegatividade da política

A subestimação da política é uma das características do chamado marxismo ocidental. Como lembrou Armando Boito Jr. (2011: 3), na monumental obra de George Lukács, Ontologia do Ser Social, não existe nenhum capítulo tratando especificamente da política. Para alguns lukacsianos, a política (em geral) não faria parte da “essência humana” e, por isso, deveria necessariamente ser superada no processo de transição ao comunismo. Advogam que a ausência das questões relativas à teoria política e à do Estado estaria estreitamente vinculada à perspectiva teórica – ou ontológica – assumida por Marx. Esteera fundamentalmente umdefensor do fim do Estado e, consequentemente, da política. Levando ao extremo esta tese, alguns apregoam mesmo existir uma “ontonegatividade da política” naquele autor. O marxismo (de Marx) teria como seu fundamento ontológico somente o trabalho. Aqueles que acreditavam haver, concomitantemente, uma “centralidade da política” estariam incorrendo em graves desvios teóricos e ideológicos. As análises dessa corrente, em geral, se baseiamem algumas obras do período juvenil de Marx, como Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), A Questão Judaica (1843), Glosas críticas marginais ao artigo “Rei da Prússia e a Reforma Social” (1844), Manuscritos econômico-filosóficos (1844).

No Brasil o principal defensor desta polêmica tese foi o professor José Chasin, que a expressou de maneira bastante clara no artigo Marx: a determinação ontonegativadade da politicidade, publicado em 2000. Mais recentemente (2009), a ideia reapareceu no livro Descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho à centralidade da política, dos professores Ivo Tonet e Adriano Nascimento. Texto que se destaca, entre outras coisas, por sua clareza expositiva. Razão pela qual o utilizaremos como referência para a nossa crítica. 

Segundo esses dois autores, Marx defenderia a “emancipação humana” e não a simples “emancipação política”. Quanto a isso não estavam errados. Foi assim que Marx – especialmente o jovem – muitas vezes se expressou. O problema é quando, baseado nessa verdade, passam a negar a importância das lutas e das revoluções políticas. E, indo mais longe, chegam a menosprezar a necessidade da constituição de um Estado nos marcos do socialismo. Nesse sentido escreveram (2009: 25): “diferentemente da maioria dos pensadores, que via nesse poder (político) um elemento positivo, Marx sempre o considerou como uma expressão da alienação, um instrumento de manutenção e reprodução da exploração do homem pelo homem”. Em outra parte, afirmariam (p. 32): “para Marx, a política realiza as tarefas negativas, o trabalho as tarefas positivas”.

Contrariando a tradição socialista (e marxista), escreveram (p. 34): “o Estado não é algo que possa ser apropriado por qualquer classe e colocado ao seu serviço. O Estado é a condição fundamental na reprodução da ordem burguesa. Não faz, pois, sentido, no interior do pensamento de Marx, a ideia de um ‘Estado proletário’, de um ‘Estado socialista’, a não ser naquele sentido afirmado por Engels e enfatizado por Lênin, de ‘classe trabalhadora organizada’, de ‘Estado em extinção’, de ‘comuna’”.

Por não terem entendido isso, “os partidos de esquerda (…) foram se tornando, cada vez mais, partidos tipicamente burgueses, cujo objetivo não era mais a emancipação humana, mas a tomada do poder, na suposição de que, por intermédio dele, poderiam realizar as transformações sociais (…). Parece-nos que existe, neste processo, um fio (…) que podemos denominar: o deslocamento da Centralidade do Trabalho para a Centralidade da Política. Um processo complexo (…) que acabou por colocar a classe trabalhadora de joelhos face ao capital.” (IDEM. IBIDEM: XIV). Desse desvio “politicista” teriam sido vítimas Lênin, Trotsky, Gramsci, Mao e Fidel. Contudo, se colocarmos uma lupa – e nos mantivermos dentro dos rígidos parâmetros colocados por esses dois autores –, deveríamos incluir entre os “politicistas” o nome de Engels e do próprio Marx. 

Existem graves imprecisões nesta abordagem sobre o Estado feita pelos defensores da ontonegatividade da política. De fato, o Estado (burguês) não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores. Ele precisa ser “quebrado” e no seu lugar construído outro Estado: socialista e proletário. A esta conclusão chegou Marx depois das revoluções de 1848 e a expressou claramente em suas obras, especialmente em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e Guerra Civil na França. 

O Estado em geral não é, per si, a condição da reprodução da ordem burguesa. Cumpre essa função apenas o Estado capitalista. O Estado feudal, por exemplo, foi um obstáculo à reprodução ampliada dessa ordem e precisou ser parcialmente quebrado pelas revoluções políticas burguesas. O Estado Operário também deverá impor limites a essa reprodução até que ela seja definitivamente eliminada numa fase superior do socialismo: o comunismo. Nos dois casos,o Estado é disfuncional ao capitalismo (ou à ordem burguesa). A fórmula, Estado (em geral) = reprodução capitalista, parece imprecisa e pode induzir a erros políticos. 

Mesmo nas obras juvenis de Marx, a “revolução meramente política” – parcial – que deixaria de pé “os pilares do edifício” seria ainda algo necessário para que se abrisse o caminho à “emancipação humana”. Mas, em todo caso, a revolução comunista não seria exclusivamente uma revolução política (visando a conquistar o poder e a construir um Estado proletário) e sim uma revolução social, objetivando a emancipação humana. O resultado dela seria uma sociedade na qual o Estado e a política simplesmente deixariam de existir. Dentro dessa lógica – presente, de fato, em alguns textos de Marx –, política e Estado fariam parte de uma única e mesma realidade a ser superada. 

Em Glosas marginais, o jovem Marx (2010:78) afirmou: “o socialismo não pode se efetivar sem revolução. Ele tem necessidade de um ato político na medida em que tem necessidade de destruição e dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu objetivo, a sua alma, então o socialismo desembaraça do seu revestimento político”. Aqui não há a negação da necessidade de um Estado socialista, mas este aparentemente seria algo passageiro e não tomaria todo um período histórico de transição ao comunismo. Outra perspectiva, mais realista, poderia ser extraída do texto Crítica ao Programa de Gotha, escrito em 1875.  

Nos textos da maturidade, especialmente pós-1848, embora sem abandonar completamente a noção de “emancipação humana”, Marx e Engels passaram a concentrar-se na problemática da Revolução (política) socialista e da Ditadura do Proletariado, como uma forma estatal particular que permitiria realizar a transição ao comunismo.

No Manifesto do Partido Comunista, por exemplo, já é possível constatar as brechas existentes nas teses antipoliticistas. Naquele documento os fundadores (1988: 95) do materialismo-histórico afirmaram: “O proletariado usará a sua dominação política para arrancar pouco a pouco (o grifo é nosso) todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, nas mãos do proletariado organizado como classe dominante e para multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção”. Ou seja, o Estado proletário cumpriria funções necessárias e positivas no caminho da emancipação do trabalho, como a “centralização dos instrumentos de produção” e a “expansão das forças produtivas”. Também nesse trecho, fica claro que a transição socialista é um processo mais complexo e longo do que pensavam os autores anteriormente. 

O texto de 1848 mostra o salto de qualidade dado em relação às concepções de Estado e de Revolução presentes nas obras juvenis. O discurso, caracterizadamente filosófico e com viés humanista (genérico), é ultrapassado. Mudanças que já podiam ser observadas na obra A ideologia alemã (1846). Agora o que moveria a história seriam a contradição existente entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção. O agravamento dessa contradição redundaria numa crise estrutural do sistema e no acirramento das lutas de classes, que passariama ser consideradascomo o verdadeiro “motor da história”. A consequência disso, nos marcos do capitalismo, seria uma revolução político-social e a instauração da Ditadura do Proletariado, que realizará tarefas ao mesmo tempo destrutivas e construtivas, negativas e positivas. 

Marx iria ainda mais longe quanto à valorização da prática política. O próprio proletariado só poderia se constituir plenamente enquanto classe através dela. Na obra Miséria da Filosofia (1847), afirmaria (1985: 159): “O domínio do capital criou para essa massa (de trabalhadores) uma situação comum, interesses comuns. Assim, pois, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas ainda não é uma classe para si. Na luta (…) essa massa se une, constituindo numa classe em si. Os interesses que defende convertem-se em interesses de classe. Mas a luta de classe contra classe é uma luta política”.

Numa carta escrita a Bolte em 1871 (s/d: 266), Marx assim se expressou: “A tentativa de obrigar, por meio das greves, os capitalistas isolados à redução da jornada de trabalho, em determinada fábrica ou ramo da indústria, é um movimento puramente econômico; ao contrário, o movimento visando a obrigar que se decrete a lei da jornada de oito horas etc. é um movimento político. Assim, pois, dos movimentos por motivos econômicos dos operários separados nasce, em todas as partes, um movimento político, ou seja, um movimento de classe.” Ou seja, a luta política é fundamental no processo de constituição do proletariado em classe social no sentido forte do termo (classe para si). Novamente aqui a política não parece ter nenhuma conotação negativa. Poderíamos mesmo dizer, provocativamente, que existiria nessas passagens uma “ontopositividade” da política, pois sem ela não haveria o proletariado revolucionário. 

Em minha opinião, esta tese antipoliticista expressa uma confusão entre poder político – sempre vinculado ao Estado – e a política em geral. O professor Armando Boito Jr. (2011: 3), utilizando ironicamente a própria linguagem lukacsiana, afirmou que a política também é “atributo ontológico do ser social.”. A política, em geral, seria supra-histórica, como o trabalho, pois “estaria necessariamente presente em todas as sociedades historicamente existentes”. Ele entende a “política em geral” como “atividade de direção da vida social necessária a qualquer tipo de sociedade”. Por isso, seria ela uma “característica essencial e incontornável da espécie humana como espécie social”.

Louis Althusser no seu artigo Marxismo como teoria finita (1978: 71) também criticou a tese do fim da política na futura sociedade comunista. Não se deveria confundir o Estado, estrito senso, com a prática política em geral. Esta teria uma vigência para além do Estado classista. A revolução socialista e o processo de transição ao comunismo colocarão fim a uma determinada política (estatal classista) e instaurarão outra qualitativamente diferente, que é difícil prever: “Se uma sociedade comunista chegar a existir, ela terá as suas relações de produção – única denominação possível para esta ‘livre associação dos homens’ – e, portanto, as suas relações sociais e as suas relações ideológicas. E se esta sociedade estará finalmente livre do Estado, isso não significa que a política também será extinta: ela conhecerá certamente o fim das últimas formas burguesas da política, mas esta política (…) será substituída por uma política diferente, uma política sem Estado”.

Essa ideia-chave da universalidade (ou supra-historicidade) da política está presente em autores muito diferentes entre si. Losurdo (2004: 76), no seu livro Fuga da História?, vai mais longe ao aventar não apenas a permanência da política, num sentido geral, mas do próprio Estado no comunismo. “A tese da extinção do Estado”, escreveu ele, “parece desembocar na visão escatológica de uma sociedade destituída de conflitos (…). Marx e Engels parecem, em determinados momentos, dar-se conta do caráter abstratamente utópico de sua palavra de ordem. Com significativa oscilação, ora falam de abolição e extinção do Estado enquanto tal, ora do ‘Estado no atual sentido político’ ou do ‘poder político propriamente dito’ (…). Não se entende então por que, depois do desaparecimento das classes e da luta de classe, se tornaria supérflua a ‘garantia’ ou a ‘segurança’ a ser proporcionada aos membros de uma comunidade unificada (…). De modo geral, podemos dizer que, em Marx e Engels, depois de desempenhar um papel fundamental na conquista do poder, a política parece dissolver-se junto com o Estado e o poder político”. Esta seria uma “visão messiânica” que remeteria “em última análise ao anarquismo”.

Neste ponto entramos num terreno pantanoso, pois Marx e Engels em diversas passagens de sua obra expressamente advogaram que o comunismo representaria o fim do Estado e suas formas políticas, incluindo a democracia. Se podemos achar brechas na formulação marxiana sobre a necessidade do fim da política em geral, o mesmo não podemos dizer sobre o fim do Estado. Eles são bastante claros sobre isso.  

Joga a favor dos que defendem a existência de uma contaminação utópica no constructo teórico do socialismo científico o fato de que a principal formulação de Marx sobre o comunismo tenha origem numa formulação de Saint-Simon: o comunismo substituiria “o governo dos homens pela administração das coisas”. Ficaria a pergunta: Alguma forma de relação humana – mesmo para além da sociedade de classes – poderia ser reduzida a simples “administração das coisas”?

Marxismo e o desvelamento da cena política

Engels (1982: 18), num dos prefácios a O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escrito em 1885, afirmou: “Marx foi precisamente o primeiro que descobriu a grande lei que rege a marcha da História, lei segundo a qual todas as lutas históricas, quer se desenvolvam no terreno político, no religioso, no filosófico, quer em outro terreno ideológico qualquer, não são, em realidade mais que a expressão, mais ou menos clara, de lutas entre as classes sociaise que a existência destas classes, e portanto também as colisões entre elas, são condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua situação econômica, pelo caráter e pelo modo da sua produção e da sua troca, condicionada por estes. Essa lei tem para a história a mesma importância que a lei da transformação da energia para as ciências naturais”.

Em A Ideologia Alemã (1846), Marx e Engels (1984: 48) já diziam: “todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc. não são mais do que as formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si”. Os autores apresentaram neste texto os pressupostos teórico-metodológicos que permitiriam desvendar os fenômenos ocorridos na esfera política e ideológica. Para eles a cena política tem por trás de si as lutas de classes, e estas, por sua vez, têm por base as contradições que nascem das relações de produção materiais.  

Logo aplicariam o seu novo método à análise das lutaspolíticas na Alemanha e na França entre as décadas de 1840 e 1870. Artigos esses que foram organizados e publicados em livros como Burguesia e a contrarrevolução na Alemanha, Luta de classes na França, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte e Guerra Civil na França. 

Nas análises da conjuntura francesa entre 1848 e 1850, Marx concluiu que mesmo as disputas dinásticas entre os adeptos das duas casas reais (Orléans e Bourbons) eram, na verdade, a forma pela qual se desenvolvia a luta entre as diversas frações da burguesia e da aristocracia agrária visando à manutenção ou à conquista da hegemonia política dentro do bloco no poder.  Escreveu (1982: 51-52): “quando se examina a situação mais de perto, esta aparência superficial (a luta entre casas dinástica), que dissimula a luta de classes (…), desaparece. Os legitimistas e os orleanistas (…) formavam as duas grandes facções do partido da ordem. O que ligava estas facções aos seus pretendentes e as opunha uma a outra seriam apenas as flores delis e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa de Orléans, diferentes matizes do monarquismo?”. A resposta de Marx (IBIDEM) seria negativa. “Sob os Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de advogados, professores e oradores melífluos. A monarquia legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário dos senhores de terra, como a monarquia de julho fora apenas a expressão política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípios, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio”.

Marx, contudo, não nega que entre os membros dessas duas facções políticas realistas mediassem “velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de princípio”. E isso jogaria um papel nas suas ligações subjetivas com uma ou a outra casa real, mas não era esse o fator decisivo. O verdadeiro móvel da história não era o que os atores pensavam sobre si mesmos, e sim os interesses mais profundos que muitas vezes lhes escapavam – que não afloravam ao nível da sua consciência imediata –, mas nos conduzem. Aqui se expressa claramente o caráter ilusório e mistificador da ideologia, inclusive sobre as classes dominantes.

Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx (1982: 52) afirma: “Sobre as diversas formas de propriedade e sobre as condições sociais de existência ergue-se toda uma superestrutura de sensações, ilusões, modos de pensar e visões de vida diversos e formados de um modo particular. A classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta. Embora cada facção (orleanista e legitimista) se esforçasse por convencer-se e convencer os outros de que o que as separava era sua lealdade às duas casa reais, os atos provaram mais tarde que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses. E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade (…). E, assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma pessoa pensa e diz de si mesma e o que ela realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses, deve-se diferenciar as suas concepções da sua realidade”.

Como diz Armando Boito (2007: 139), “os personagens acreditam em sua própria fantasia. A relação entre aparência e essência não é pensada como uma relação simples entre a mentira e a verdade. A aparência faz parte da realidade, tem sua ‘espessura’ própria”. A cena política (burguesa) “é uma realidade superficial, enganosa, que deve ser desmistificada, despida de seus próprios termos, para que se tenha acesso à realidade profunda dos interesses e conflitos de classes”. Continua: “A ação política é ação de classe, mas não aparece como tal – daí, a importância da análise científica da política. A cena política burguesa oculta o caráter de classe da ação política (…). Isso não foi sempre assim. Os Estados de tipo pré-capitalistas traziam inscritos nas suas próprias instituições o seu caráter de classe. Foi o Estado capitalista, com as suas instituições aparentemente universalistas, que possibilitou a formação da cena política burguesa onde tudo se parece com uma sociedade de cidadãos inominados agrupados segundo grandes princípios e valores comuns. Essa é a visão superficial e liberal da cena política burguesa”.

Para Marx a cena política burguesa não é transparente e sim opaca. Contudo, essa opacidade não é algo intransponível ao conhecimento. Ela pode e deve ser ultrapassada pela prática teórica. Marx sempre teve em conta a distinção materialista-dialética entre essência e aparência dos fenômenos. “Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”, afirmaria ele em O Capital.

Dialeticamente, a aparência não é algo falso, mas superficial. Ela é determinada pela essência, mas traz elementos de verdade. Forma e conteúdo, aparência e essência são pares dialéticos e não podem ser entendidos separados uns dos outros. Ou seja, a aparência (cena política) não é neutra e produz os seus efeitos, que refletem sobre a essência (luta de classes). Mas, como materialistas, precisamos ter bastante claro quais são os fatores determinantes – ainda que em última instância. 

Concluindo, podemos dizer que o método de Marx para a análise das sociedades humanas, nascido na segunda metade do século XIX, tem validade histórico-universal. Somente ele permite jogar luzes nos verdadeiros móveis da ação política e social que, em geral, aparece como resultado da vontade dos grandes personagens e dos partidos políticos, despregados dos interesses materiais e de classes. 

* Artigo publicado originalmente no livro Karl Marx: desbravar um mundo novo no século XXI, organizado por Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore, publicado pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi em 2018.  

**Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

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