O coronavírus na economia brasileira e o fim do voo de galinha
Na mídia brasileira e mundial, abundam comentários e previsões de economistas sobre o impacto do coronavírus. Posso acrescentar mais alguns? A minha relutância decorre do fato de que nós, economistas, pouco sabemos de questões de saúde, obviamente. E, pior, temos pouco ou nenhum acesso ao futuro. O futuro para nós é um ilustre desconhecido com quem apenas fingimos certa intimidade, por motivos estritamente comerciais, como o leitor bem pode imaginar.
A opacidade do tempo por vir é intrínseca à economia real. Ela decorre de alguma insuficiência científica ou técnica que a nossa disciplina poderia superar um dia. Na minha época de estudante de economia nos anos 1970, por exemplo, o meteorologista era notório por errar repetidamente em suas previsões. Era comum que, em tom de deboche, fôssemos comparados a eles nesse quesito. Desde então, a meteorologia prospectiva progrediu extraordinariamente, e a economia continua na mesma. Mas, enfim, se o economista se limitasse a trata dos temas que realmente domina, ficaria reduzido a um relativo mutismo.
Um recurso de que nos valemos é começar falando do passado, supostamente mais conhecido. Começo então por aí. Cabe ressaltar, primeiramente, que a economia mundial já mostrava sinais claros de fragilidade antes do coronavírus. O crescimento vinha lento em boa parte do planeta, com os Estados Unidos e a China na condição de principais exceções. Uma fonte importante de preocupação era a guerra comercial patrocinada pelo governo Trump contra a China. Outra, as sérias questões geopolíticas e militares decorrentes dos conflitos no Oriente Médio, notadamente na Síria e no Irã.
No início deste ano, veio o novo choque, oriundo da China, que tem a maior economia do mundo (considerando os PIBs medidos por paridade de poder de compra) e se espalhando com rapidez para outros países. A virulência e o alcance da doença são ainda desconhecidos. Prevalece a incerteza.
Os mercados desconfiam, com certa razão, da qualidade das informações oficiais, particularmente as da China – país notoriamente capaz de controlar, administrar e até adulterar informações sensíveis em seu território. Assim, as informações oficiais negativas tendem a ser ampliadas e as positivas, descontadas pelos mercados em razão da suposição de que elas embutem um fator de “administração das expectativas”.
Os mercados financeiros internacionais se encontram, por sua vez, em fase delicada, após um longo período em que prevaleceu tendência de alta dos ativos, alimentada por políticas monetárias ultraexpansivas da parte dos principais bancos centrais. Um “momento Minsky” pode estar se aproximando ou já ter começado, isto é, um momento de súbita e duradoura reversão do mercado desencadeada por um choque capaz de explicitar fragilidades acumuladas durante a fase de bonança.
Os mercados, em especial os financeiros, e muito especialmente os financeiros internacionais, são estruturas que tendem a produzir instabilidade. Transformam boas notícias em otimismo e otimismo em euforia. Inversamente, convertem más notícias em pessimismo e pessimismo em crises e pânicos. Quando uma ou mais notícias negativas levam os agentes a reavaliar riscos e rever as suas posições, inicia-se uma espiral descendente em que vendas provocam quedas de preços e estas, novas vendas, seguindo-se novas reduções de preços e assim por diante.
Em resumo, o que temos neste início de 2020 é a combinação de um choque importante, ainda que de magnitude e duração incertas, com vulnerabilidades pré-existentes, de ordem comercial, geopolítica e financeira. Essa combinação incide sobre mercados financeiros internacionais vulneráveis e sujeitos a movimentos de manada depois de longa fase de “bull market”.
E o Brasil? A economia do país é sensível ao que acontece na China, nosso principal parceiro comercial. E uma desaceleração geral da economia internacional teria efeito considerável sobre as nossas exportações e perspectivas de crescimento – tanto mais que a economia nacional já não vinha muito bem nos meses imediatamente anteriores ao surgimento do vírus na China.
Até novembro ou dezembro do ano passado, predominaram expectativas e esperanças de que a atividade econômica e até o emprego estariam finalmente em trajetória de recuperação um pouco mais firme. Escrevi a esse respeito, em novembro, um artigo talvez ligeiramente otimista aqui nesta CartaCapital.
A esperança começou a se desfazer em dezembro e janeiro quando entraram uma série de dados mensais desapontadores em termos de produção e vendas na economia brasileira. A divulgação do PIB de 2019 confirmou a decepção. Mas, ressalte-se, a revisão para baixo das projeções de crescimento do Brasil já havia começado quando sobrevieram as notícias alarmantes sobre o coronavírus na China e depois em diversos outros países, inclusive os primeiros casos confirmados no Brasil.
A temporada de reajuste das projeções está agora em pleno curso. Há um ditado em Wall Street que diz: “If you have to forecast, do it often.” (Se você tem que fazer projeções, faça com frequência). É o que se vê sempre. A OCDE, por exemplo, reviu para baixo a sua expectativa de crescimento do PIB global para apenas 2,4% neste ano, a menor taxa desde 2009. Isso num cenário relativamente favorável. Se o vírus se espalhar mais, o crescimento poderá cair para 1,5%, na avaliação dos economistas da organização.
Para o PIB do Brasil, a OCDE projeta 1,7% de crescimento em 2020, continuando nesse ritmo pífio em 2021. Lembre-se, leitor, que há não muito tempo, não era absurdo esperar que a economia brasileira pudesse crescer neste ano 2,5%, talvez um pouco mais. Era um voo de galinha, mas voo mesmo assim.
Nem isso, tudo indica. O ano de 2020, a exemplo dos três anteriores, será mais um de crescimento medíocre e desemprego elevado. A galinha não levantará voo.
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países