Um dos principais responsáveis pela política externa “altiva e ativa” do Brasil durante a Era Lula, o diplomata Celso Amorim participou na última quarta-feira (01.02.2016) de um bate-papo sobre o mal-estar da globalização, organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo, na capital paulista.

Entre os sintomas desse mal-estar, além da saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit, o diplomata analisou a conjuntura internacional após a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, alertando sobre a necessidade de um estudo sobre o “trumpismo”, para além do indivíduo Donald Trump.

“O mau exemplo de Trump é muito ruim não apenas para os Estados Unidos, mas para outros países do mundo. Se alguém como ele “consegue se eleger presidente na (com aspas ou sem aspas) maior democracia do mundo, não é de se estranhar que, com pouco menos de pudor, isso vigore em outros países”, avaliou.

Trump já manifestou hostilidade em relação à China, quando telefonou para a chefe de Estado de Taiwan, algo que não acontecia desde os tempos de Nixon. Sobre o México, propôs a construção de um muro para conter a imigração, “uma ideia duplamente espantosa, enquanto ideia e mais ainda quando Trump diz que os mexicanos vão pagar pelo muro”.

Em relação à Europa, Amorim citou o Brexist: “Ele (Trump) pode estar servindo e vai servir, espero que isso não se reproduza na Europa em maior escala, a uma espécie de aliança não santa com Theresa May (primeira-ministra do Reino Unido)”. Em termos de Nações Unidas, UNESCO e outras entidades, Trump já manifestou a intenção de diminuir os recursos encaminhados a essas organizações.

Ressaltando a existência de forças de contenção no âmbito internacional, Amorim expressou preocupação em relação à política de Trump: “não sei até que ponto, um dia, movido por alguma outra coisa ela pode agir, motivada por um interesse empresarial qualquer. Você fica com temor, com medo que volte aquela história do porrete, do big stick (grande porrete), se você não tem pudor de dizer certas coisas”.

“Utopia liberal democrática nunca existiu”

Amorim também destacou as críticas contra o trumpismo que vêm surgindo. Algumas delas, porém, merecem atenção, por exemplo, a ideia disseminada por alguns críticos norte-americanos de que antes de Trump havia “uma espécie de utopia liberal democrática que nunca existiu”, uma “ordem mundial, democrática e liberal”.

Algo que pode, facilmente, ser desmentido pelos fatos. O diplomata citou dois exemplos: o forte protecionismo em torno dos subsídios agrícolas durante o governo Obama; e o desmonte das estruturas estatais em países como a Líbia e o próprio Iraque (desde Bush).

“Se você quiser isolar uma causa do terrorismo ou do nível que o terrorismo adquiriu recentemente, a destruição do Estado é certamente a mais importante. Essas tendências não teriam prosperado se não encontrassem um vazio institucional”, destacou.

Ele também destacou o discurso empunhado pelos que apontam a OTAN enquanto um organismo multilateral. “A OTAN defende os países capitalistas ocidentais das ameaças que ela considera que existem. Em muitos casos, inclusive, transgredindo a carta da ONU e a dela própria (OTAN) para utilizar a força, sem autorização do Conselho de Segurança”.

Outro exemplo citado foi a Parceria Transpacífico (TTP, Trans-Pacific Partnership), acordo de livre-comércio entre os países banhados pelo Oceano Pacífico, assinado em 2015 durante o governo Obama. Contribuindo com a fragmentação do sistema multilateral do comércio, o TTP tinha como objetivo geopolítico o isolamento da China como objetivo geopolítico.

Em sua avaliação, a saída recente dos Estados Unidos do TTP livrou o Brasil de um “pesadelo”. “A mídia não falava de outra coisa”, lembrou ao salientar que entre várias medidas, o tratado incluía cláusulas na área de patentes. “Seria um desastre para o Brasil ter que abandonar a política de genéricos na área de Saúde”. Várias propostas deste acordo lembravam os motivos pelos quais o Brasil não aceitou a participar da ALCA.

Porém, as elites brasileiras incensaram o TTP como uma forma de alterar os rumos da política externa brasileira vigente. A política adotada “pelos governos ´lulista e dilmista´ que privilegiaram o acordo Sul-Sul e a OMC. Falando da OMC como se ela fosse uma coisa marxista, uma invenção do Lenin para debilitar o capitalismo. Para eles, a opção pela OMC é ideológica”, explicou Amorim.

Soft power

Como bom diplomata, Amorim também abordou a vitória de Trump pela ótica da “oportunidade”, destacando que o crescimento do soft power (poder de convencimento de um Estado ou liderança por meios culturais ou ideológicos) do governo Obama acabou dificultando o poder de ação da coalisão Sul-Sul.

“É um poder enorme, de uma economia fortíssima e também do ponto de vista das ideias. Agora (com Trump) isso decaiu, abrindo uma capacidade na região para se trabalhar a integração sul-americana”. Uma boa oportunidade em termos de condições objetivas, mas que esbarra na ausência das condições subjetivas: a inexistência de lideranças sul-americanas.

Um contexto muito diferente daquele que permitiu a criação da UNASUL, da CELAC e, até mesmo, de um Conselho de Defesa Sul-americano, capaz de reunir todos os ministros de Defesa dos países sul-americanos. Algo “impensável” antes, destacou Amorim, ministro da Defesa durante o governo Dilma.

Ele também ressaltou o papel do Brasil na instrumentalização da Escola de Defesa Sul-americana. Até então, só havia o Colégio Interamericano de Defesa, sediado em Washington. Em sua avaliação, “todas essas coisas podem estar por trás, também, de outros fatos que redundaram em situações dramáticas aqui no Brasil de uma maneira mais disfarçada”.

Negligência benigna

Ao refletir sobre a melhor política que os Estados Unidos podem ter para a América Latina, Amorim foi categórico: a da “negligência benigna”, por exemplo, a situação que vivemos durante os anos Bush, quando os “Estados Unidos estavam tão engolfados no Iraque que não queriam”. Agora, porém, a política tende a ser outra: “a negligência do Trump não está sendo muito benigna. A política norte-americana está agindo e fazendo muros”.

“Eu imagino que se fosse o presidente Lula – não conversei, nem discuti isso com ele – mas penso que ele já teria ido ao México conversar e prestar sua solidariedade. Convidar o México para entrar no Mercosul, mesmo que não acontecesse nada, mas isso mexeria um pouco. Parece que não, mas essas coisas têm um grande valor”, exemplificou.

Prova disso foi a criação do Banco dos BRICS. Desde 2010, os países do BRICS exigiam do G-20 uma mudança no sistema de cotas do FMI e do Banco Mundial. Durante cinco anos, a medida permaneceu engessada no congresso dos Estados Unidos e só foi aprovada após a criação do Banco. “O temor que pudesse ser uma alternativa acelerou a efetivação dessa mudança no congresso norte-americano”.

Teorias conspiratórias?

Questionado sobre a influência internacional no golpe de 31 de Agosto, Amorim adaptou Millor Fernandes: “o fato de eu não crer em teorias conspiratórias não quer dizer que algumas não sejam verdadeiras”. Em sua avaliação, as políticas adotadas pelo Brasil incomodaram e muito.

“Pela primeira vez, em duzentos anos de vida independente, a América do Sul teve uma organização política própria que nunca havia tido. Quando não eram os do Norte confundindo o conceito de América Latina com América do Sul – incluindo o México e tudo – a realidade sul-americana só existia para futebol”, destacou.

Quando foi criada a CELAC, os jornais diziam que o Brasil queria criar a “OEA do B. “Para eles, era impensável a criação de uma organização que excluiria os Estados Unidos”, lembrou o diplomata. “Uma coisa espantosa, você não poder ter uma organização da América Latina e Caribe que é um grupo na ONU, inclusive”.

Destacando a atuação dos governos petistas no contexto internacional, o diplomata ponderou: “talvez, se tivéssemos avançado mais, o que vimos em 2015 teria ocorrido em 2011 ou 2010, seguindo um pouco as teorias conspiratórias, vamos dizer assim”.

Sobre as limitações encontradas, Amorim lembrou que os governos petistas foram governos de grande coalisão. “O presidente do Banco Central em todo o governo Lula é o atual ministro da Fazenda que, talvez não pareça, mas é o homem mais forte do atual governo. O único que tem uma relação orgânica com o capital financeiro internacional. Não se pergunta ‘como vai o Serra’ ou ‘como vai o Temer’, mas ‘como vai o Meirelles’. É um fato real”, complementou.

O futuro?

“Vejo oportunidades, mas imensos riscos. Estamos nesta fase, mas desprovidos de liderança e sem isso a integração sul-americana não vai cair do céu. Se tivéssemos, era este o momento de atuar. Claro que 2018, vai ter eleição e pode ser que mude, mas talvez as condições já não sejam mais as mesmas”.

Texto publicado em Carta Maior.

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