Risco de desintegração social com Temer preocupa intelectuais

Para o professor Paulo Arantes, país está diante de um linchamento. André Singer e Marilena Chaui defendem união dos progressistas, sem deixar de lado as diferenças que marcam cada tendência
por Helder Lima, da RBA 

O risco de desintegração social, com o ataque a direitos orquestrado pelo governo interino de Michel Temer, foi analisado ontem (30) à noite no debate que encerrou o seminário “Caminhos da Esquerda Diante do Golpe”, organizado por estudantes e professores de ciências humanas da Universidade de São Paulo (USP). O professor de Filosofia Paulo Arantes comparou o que chamou de golpe institucional em curso no país a um filme distópico – em que os sonhos e utopias se desfazem.

“Para efeito de raciocínio, vamos dizer que é um golpe, mas para mim é coisa pior, que nós não sabemos, é apenas o sintoma de uma grande aceleração rumo à desintegração social”, afirmou Arantes. “Se você tem uma quadrilha reunida em um Congresso, com adjacências na Suprema Corte, você vai pensar o quê? Golpe é uma palavra otimista e progressista. Porque no golpe você supõe que vem um passo adiante depois, pelo menos na nossa tradição brasileira. Mas qual é o passo adiante que vem agora?”, indagou o professor, comparando o momento da crise brasileira ao filme Dogville (2003), do diretor dinamarquês Lars von Trier, no qual há uma desmobilização dos valores e símbolos que organizam a vida social. “O que vem aí, é linchamento, é estupro mesmo. É isso. Em 1964 não foi um bando de homofóbicos e estupradores que entrou aí, foi uma outra coisa”, defendeu Arantes.

O cientista político André Singer afirmou que há um imenso retrocesso em jogo. “Nós precisamos juntar todas as forças possíveis para obter uma maioria social que tem de enfrentar a maioria conservadora do Congresso”, afirmou. Ele também disse que o lulismo acertou ao avançar no emprego, renda e em um patamar mínimo de seguridade social. “Mas um erro muito importante foi não ter apresentado uma consolidação das leis sociais.”

Divisão
Segundo Singer, um dos problemas da luta em defesa da democracia é que a classe trabalhadora entra nessa ofensiva dividida. “Tem um importante setor entre os trabalhadores que apoia esse governo”, afirmou, em referência à Força Sindical, que apoia Temer e trabalhou a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Ao fazer uma crítica aos governos do PT desde 2003, Singer disse que o subproletariado e a classe trabalhadora não foram politizados. “O lulismo não foi politizador, e isso é um problema. E, comparativamente, a burguesia se unificou”. Ele considerou que em um projeto de transformação de longo prazo será necessário às forças populares só contar com elas próprias, já que a crise é alimentada por uma ruptura que coloca o país sob o risco da desintegração social.

“Frente Brasil Popular e Frente Povo Sem Medo têm conversado, mas temos de construir frentes que possam representar votos”, disse Singer, defendendo que o caminho da luta pela democracia passa pela necessidade de os partidos formarem essa grande frente. “A unificação tem de ser em torno da democracia; a bandeira da legalidade ficou com a esquerda e para formar maioria precisamos da adesão do centro”, avaliou.

O professor de Filosofia Vladimir Safatle disse que é preciso fazer uma “autocrítica” para que a esquerda possa se restabelecer na luta em defesa da democracia. “Toda vitória resulta da meditação profunda sobre as nossas derrotas. E ela reverbera o desejo animal de nunca mais ser derrotado. Por isso, só vence quem caiu e quem clama com paciência e desespero por uma segunda chance. Ela vai vir, com certeza, mais cedo do que a gente espera. Ela vai vir se a derrota alimentar a clareza do nosso julgamento, a consciência implacável dos desejos, dos desvios porque há os que choram e os que sabem que a derrota é o fogo alto que forja o aço da nossa vitória. Mas para vencer é necessário ser o seu mais cruel juiz, e acho que é importante fazer isso agora, fazer essa autocrítica agora, para não perpetuar todos os erros que foram cometidos, e não foram poucos.”

Apesar de discordar de Safatle quanto ao uso da palavra “autocrítica”, por sua origem estar ligada ao stalinismo, a professora Marilena Chaui também mostrou-se preocupada com os riscos do governo Temer, que está “promovendo um grau de desinstitucionalização da política no país”. “O que garantiu o golpe é também o que o fragiliza”, disse a filósofa, depois de comentar a questão da união do campo progressista para resgatar a democracia.

“A ideia de uma união que recrie uma política democrática de esquerda no Brasil não significa uma unificação identitária, a perda das diferenças, a perda das elaborações teóricas e práticas que cada caminhante de esquerda faz. Isso é precioso. Isso não pode ser posto em risco. É com essas diferenças, é com essa multiplicidade complicadíssima, com os antagonismos que ela produz, mas com as uniões que ela permite, que nós temos de trabalhar”, afirmou Marilena. “A proposta de uma criação de uma união das esquerdas precisa ter como pressuposto a afirmação categórica insofismável de que não se trata de apagar as diferenças.”