A grande virtude de A ecologia de Marx – materialismo e natureza, de John Bellamy Foster, do qual foi extraído o texto aqui publicado, é justamente visitar o assunto enfrentando, de um lado, as visões derivadas do marxismo ossificado, cujo acento produtivista minimiza o problema, e, de outro, o chamado “marxismo ocidental” e sua ênfase apenas nas questões
culturais. Tudo isso num esforço para restaurar a dialética materialista original e, a partir daí, contrapor-se ao idealismo subjacente à maioria do pensamento “verde” contemporâneo.
E, para isso, examina as teses que, enraizadas nos pensadores do Renascimento, fundamentam o debate desde o século XIX.

Editor da Montlhy Review, a revista marxista mais antiga que continua sendo editada, Bellamy Foster contribui assim para restaurar a compreensão materialista dialética neste debate, em um livro que eleva a compreensão mais avançada desta questão. (José Carlos Ruy) Embora haja uma longa história de denúncias contra Marx por falta de preocupação ecológica, hoje, após décadas de debate, está claríssimo que essa visão absolutamente não condiz com as evidências. Pelo contrário, como observou o geógrafo italiano Massimo Quaini, “Marx (…) denunciou a espoliação da natureza antes do nascimento de uma moderna consciência
ecológica burguesa”. Desde o princípio, a noção de Marx da alienação do trabalho humano
esteve conectada a uma compreensão da alienação dos seres humanos em relação à natureza. Era esta alienação bilateral que, acima de tudo, era preciso explicar historicamente.

Em conseqüência, muitos dos mais virulentos críticos de Marx foram forçados, nesses últimos tempos, a admitir que o trabalho dele contém numerosos e notáveis insights ecológicos. Em vez de simplesmente condená-lo no que tange a isto, os críticos agora costumam recorrer a seis argumentos intimamente conectados. Primeiro: as afirmações ecológicas de Marx são descartadas como “apartes iluminadores” sem nenhuma relação sistemática com o corpo principal de sua obra. Segundo: consta que estes insights ecológicos emanam de modo desproporcionado da sua crítica inicial da alienação, e são muito menos evidentes na sua obra mais tardia. Terceiro: Marx, segundo consta, não conseguiu em última instância lidar com a exploração da natureza (deixando de incorporá-la na sua teoria do valor), tendo em vez disso adotado uma visão “prometéica” (pró-tecnológica, antiecológica). Quarto: como corolário ao argumento “prometécio”, afirma-se que, na visão de Marx, a tecnologia capitalista e o desenvolvimento econômico haviam resolvido todos os problemas dos limites ecológicos,
e que a futura sociedade de produtores associados existiria sob condições de abundância. Não seria, pois, necessário, como escreve o economista Alec Nowe, supostamente seguindo a lógica de Marx, “levar a sério o problema da alocação de recursos escassos” ou desenvolver um socialismo “ecologicamente consciente”. Quinto: Marx, alega-se, tinha pouco interesse
pelas questões da ciência ou pelos efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente, faltando-lhe, pois, base científica para a análise de questões ecológicas. Segundo os proeminentes sociólogos britânicos Michael Redclift e Graham Woodgate, Marx teria sugerido que as interações humanas com o meio ambiente natural, embora soviais, eram também “ubíquas e imutáveis”, comuns a cada fase da existência social… Tal prerspectiva não reconhece integralmente o papel
da tecnologia e os seus efeitos no meio ambiente. Sexto: Marx, diz-se, era “especiesista”, dissociando radicalmente os seres humanos dos animais e tomando o partido daqueles em detrimento destes.

Todas essas críticas são sumariamente contraditadas pela análise que se faz neste livro, no qual se tenta uma reconstrução sistemática do pensamento ecxologico de Marx. Muitas dessas críticas confundem Marx com outros teóricos socialistas criticados pelo próprio Marx, segundo uma antiga tradição na crítica marxista em que , citando Jean-Paul Sartre, “um argumento ‘antimarxista’ é apenas o rejuvenescimento aparente de uma idéia pré-marxista”. Daí Marx ser atacado pelo seu suposto “prometeísmo” tecnológico, muito embora o ataque mais forte já escrito contra tais visões “prometéicas” seja o do próprio Marx, na crítica do System of economical contradictions de Proudhon.

Do mesmo modo, Marx é condenado por não ter conseguido reconhecer a contribuição da natureza para a riqueza, apesar da sua aguçada
crítica do socialista alemão Ferdinand Lassalle por ter adotado a visão “sobrenatural” de que o trabalho era a única fonte de riqueza, e assim ignorado a contribuição da natureza.

No fundo, porém, o que está sendo questionado na maioria dessas críticas é o materialismo de Marx.
Diz-se aqui que o materialismo de Marx o levou a enfatizar uma espécie de dominação “baconiana” do desenvolvimento econômico e da natureza, em vez de afirmar valores ecológicos. Marx torna-se assim uma espécie de whig radical que opõe aos tories adoradores
da natureza, um representante do antropocentrismo utilitário em contraposição ao ecocentrismo
romântico. O problema desta crítica, como de tão boa parte do pensamento socioeconômico da época, é que ela não consegue reconhecer a natureza fundamental da interação entre os seres humanos e o seu meio ambiente.

A questão ecológica reduz-se antes e acima de tudo a uma questão de valores, ainda que a questão muito mais difícil da compreensão da evolução das inter-relações materiais (o que Marx chama de “relações metabólicas”) entre os seres humanos e a natureza não seja, pois, minimamente alcançada.

De um ponto de vista materialista consistente, a questão não é antropocentrismo versus ecocentrismo – a rigor, tais dualismos pouco nos ajudam a entender as condições materiais reais, em perene mudança, da existência
humana no interior da biosfera – mas uma questão de co-evolução. Abordagens que focam simplesmente valores ecológicos, como o espiritualismo e o idealismo filosófico de modo mais genérico, são de pouca valia para a compreensão destas complexas relações. Contrastando com todas essas visões, que “baixam do céu para a terra”, é necessário “ascender da terra para o céu”. Isto é, precisamos entender como as concepções espirituais, inclusive as nossas conexões
espirituais com a terra, relacionam-se com as nossas condições terrenas, materiais.

Há aqui mais coisas em jogo do que simplesmente Marx, é óbvio. O que realmente está em jogo é toda a história das abordagens materialistas à natureza e à existência humana. Dentro do pensamento verde da época, desenvolveu-se uma forte tendência para atribuir todo o curso da degradação ecológica à emergência da revolução científica no século XVII, representada
acima de tudo pelas contribuições de Francis Bacon. Bacon é retratado como o principal proponente da “dominação da natureza” – tópico normalmente desenvolvido pela citação de determinados aforismos, sem qualquer consideração sistemática do pensamento dele. Daí a idéia da “dominação da natureza” ser tratada como uma perspectiva simples, diretamente antropocêntrica, característica do mecanicismo, à qual se pode opor uma visão romântica, organicista, vitalista, pós-moderna.

Não obstante, focando no conflito entre o mecanicismo e o vitalismo ou idealismo (e perdendo de vista a questão mais fundamental do materialismo), cai-se numa concepção dualista que não consegue reconhecer que estas categorias são dialeticamente conectadas na sua unilateralidade, e precisam ser transcendidas juntas, pois representam a alienação da sociedade capitalista. Como Christopher Caudwell (1907-1937), inquestionavelmente o maior pensador marxista da sua geração na Grã-Bretanha, observou na década de 1930, o mecanicista é “levado pela reflexão sobre a experiência ao pólo oposto, que não passa de um outro aspecto da mesma ilusão – à teleologia, ao vitalismo, ao idealismo, à evolução criativa ou ao que quer que se queira chamar a isso, mas que é decerto a ideologia da moda no capitalismo em decadência”.

A perpetuação dessa perspectiva dualista é intrínseca a grande parte da Teoria Verde da época, e, por vezes, levou essa tradição a uma crua rejeição de quase toda a ciência moderna, bem como o iluminismo e os movimentos mais revolucionários – uma tendência que alimentou o anti-racionalismo de boa parte do pensamento pós-moderno contemporâneo.

Do século XVII ao século XX, quase todos os pensadores, salvo alguns poetas, artistas e críticos culturais, são condenados nesta visão por aderirem a valores antiecológicos e por endeusarem o progresso.

Neste contexto estranho, idealista, em que só os valores importam, as questões histórico-materiais reais desaparecem e as grandes lutas históricas e intelectuais reduzem-se a meras frases. É óbvio, ou deveria ser, que a noção da “dominação da natureza” pelo homem, embora tendendo para o antropocentrismo, não implica necessariamente uma extrema desconsideração
da natureza ou das suas leis. O próprio Bacon afirmou que a maestria da natureza estava enraizada na compreensão e na obediência às suas leis. Embora isso fosse ser condenado por Marx como sobretudo um “ardil” para obrigar a natureza a conformar- se às necessidades do desenvolvimento burguês, a formulação expressava, porém, uma contradição verdadeira da condição humana.

Assim, partindo do conceito da “maestria da natureza”, Caudwell escreve em Illusion and reality (1937):
“Os homens, na luta com a natureza (isto é, naluta pela liberdade), entram em certas relações uns com os outros para conquistar essa liberdade (…) Mas os homens não podem mudar a natureza sem mudar a si mesmos. A plena compreensão desta mútua interpenetração do movimento reflexivo dos homens e da natureza, tendo como mediador as relações
necessárias e em desenvolvimento conhecido como sociedade, é o reconhecimento da necessidade, não apenas na natureza, mas em nós mesmos e, portanto, na sociedade. Vista objetivamente, esta ativa relação sujeito-objeto é a ciência; vista subjetivamente, é a arte; mas, como consciência emergindo em ativa união com a prática, ela é simplesmente a vida concreta – todo o processo de trabalhar, sentir, pensar e comportar-se como indivíduo humano num mundoúnico de indivíduos e natureza”.

Nessa concepção dialética, que enfatiza a “reflexividade”, a assim chamada “maestria da natureza” torna-se um processo infindável de interação dialética. Daí não ser nenhuma surpresa Caudwell ter empreendido na sua obra Heredity and development, esboçada pouco depois de Illusion and reality, mas só publicada meio século depois, em 1986, uma forte defesa de uma abordagem co-evolucionária às relações entre o homem e a natureza, enraizada tanto em Darwin quanto em Marx.

Uma vez que se reconheça, em conformidade com o argumento acima, que não há contradição
fundamental necessária entre a mera idéia de “maestria da natureza” e o conceito de sustentabilidade, não será nada surpreendente que as noções de “maestria” e “sustentabilidade” tenham surgido juntas, exatamente dentro da própria tradição baconiana. Não por acaso entre os “aperfeiçoadores” baconianos também se incluem os primeiros defensores do desenvolvimento sustentável, como a grande defesa das florestas em Sylvia (1664), de John Evelyn, e o seu ataque à poluição do ar – a maior crítica materialista jamais escrita da poluição atmosférica – em Fumifugium (1661). Não apenas como aperfeiçoador baconiano, mas também como tradutor de parte de De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), de Lucrécio, a obra prima poética
do antigo materialismo epicurista (que seria um ponto de partida para o materialismo do próprio
Marx), Evelyn representa o conjunto extremamente complexo de questões aqui envolvido.

Na verdade, os maiores avanços na evolução do pensamento ecológico até o fim do século XIX resultaram da ascensão à proeminência de concepções materialistas de natureza, interagindo com condições históricas mutantes. Na era medieval, a rigor até o fim do século XIX, a visão de mundo dominante era a visão teleológica da Grande Cadeia do Ser (posteriormente modificada pela teleologia natural), que explicava tudo no universo em termos da divina providência
e secundariamente em termos da criação da terra por Deus para o “homem”. Todas as espécies foram criadas separadamente. A terra era o centro do universo, e o tempo e o espaço eram limitados. O grande inimigo deste ponto de vista, ab initio, foi o antigo materialismo, sobretudo o materialismo epicurista, que seria ressuscitado no interior da ciência renascentista e iluminista.

Questionando o ponto de vista escolástico-aristotélico, o materialismo também questionava o antropocentrismo que era central a esta teleologia: a terra foi desalojada do centro do universo; descobriuse que o tempo e o espaço eram infinitos (e até que a história da terra estava atrelada ao “profundo abismo” do tempo); e, por fim, demonstrou-se que os seres humanos compartilhavam com os macacos de uma ancestralidade comum, originando-se de um
galho da mesma árvore evolucionária.

A cada ponto desse crescimento da ciência, que seria equacionado com o crescimento do materialismo, Deus era desalojado do universo material – do sistema solar, da evolução da terra, da própria evolução da vida, por fim, de tal forma que, na visão da ciência moderna, Deus, como os deuses de Epicuro, com efeito habitava cada vez mais o intermundia, os poros entre os mundos, sem qualquer relação com o universo material. A
mesma importância teve a grande descoberta – essencial para a análise ecológica – da interdependência de compactos sociais inclusive. (Tudo isso consta do Livro V do grande poema de Lucrécio.)

Foi com essa filosofia materialista fundamental que Marx se debateu, pelo menos até certo ponto, desde a juventude. Ainda no ginasial, muito antes de ter qualquer contato com Hegel, Marx se debatia com a crítica epicurista da concepção religiosa do mundo. Mais tarde, o epicurismo se tornou o tópico da sua tese de doutoramento, permitindo que ele focasse,
a um só tempo: as primeiras teorias materialistas, as suas concepções de liberdade humana, as fontes do iluminismo, o problema da filosofia da natureza hegeliana, a crítica da religião, e o desenvolvimento da ciência.

Para Marx, a principal limitação da filosofia de Epicuro estava no fato de que o seu materialismo era meramente “contemplativo”, um problema que reaparecia mais tarde em Feuerbach. Encampando o elemento ativista da dialética e filosofia hegeliana, Marx desenvolveu um materialismo prático enraizado no conceito de práxis. Mas isso jamais, em nenhum ponto da sua obra, dissociou-se de uma concepção de natureza mais profundamente materialista que permaneceu implícita no seu pensamento. Isso deu à obra de Marx grande força teórica, além da que lhe é normalmente atribuída.

Assim se explica o fato de Marx ter avaliado tão rapidamente a importância das obras de Liebig e de Darwin. Além do mais, ajuda-nos a entender como Marx, como veremos, foi capaz de construir um entendimento do desenvolvimento sustentado com base na obra de Liebig e de co-evolução com base em Darwin.

Uma análise ecológica cabal requer uma postura tanto materialista quanto dialética. Ao contrário de uma visão do mundo natural vitalista, espiritualista, que tende a ver o mundo em conformidade com algum propósito teleológico, um materialista vê a evolução
como um processo aberto da história natural, governado pela contingência, mas aberto à explicação racional. Num ponto de vista materialista que também seja de natureza dialética (isto é, um materialismo não-mecanicista), isto é visto como um processo
de transmutação de formas num contexto de inter-relacionamento que exclui toda distinção absoluta. A vida (dos organismos) e o mundo físico, como Rachel Carson costumava enfatizar, não existem em “compartimentos isolados”. Há, em vez disso, uma “extraordinária unidade entre os organismos e o meio ambiente”. Uma abordagem dialética nos força a reconhecer que os organismos em geral não se adaptam simplesmente ao seu meio ambiente, mas também afetam o meio ambiente de várias maneiras e, afetando-o, modifica. A relação é, pois, recíproca.

“O solo”, por exemplo, “sofre mudanças evolucionárias grandes e duradouras em decorrência direta da atividade das plantas que ali crescem, e essas mudanças por sua vez retroagem nas condições de existência do organismo”.

Uma comunidade ecológica e o seu meio ambiente precisam, pois, ser vistos como um todo dialético, em que diferentes níveis de existência são ontologicamente significativos – e em que não há um propósito global guiando essas comunidades. Até propósitos humanos supostamente universais estão abertos a questionamento por seu caráter limitado. Os seres humanos, observou Marx, atribuem características universais, “úteis”, aos bens que produzem, “embora dificilmente o fato de ser comestível para o homem parecesse a uma ovelha uma das suas propriedades
‘úteis’”. Este tipo de complexidade dialética no entendimento das relações ecológicas tinha em vista a transcendência de todos os pontos de vista unilaterais, reducionistas.

Como Richard Levins e Richard Lewontin explicam em The dialectical biologist,
“Tanto as necessidades teóricas internas da ecologia quanto as demandas sociais que informam as nossas interações planejadas com a natureza exigem que se faça da compreensão da complexidade o problema central. A ecologia precisa se haver com a interdependência
e a autonomia relativa, com a semelhança e a diferença, com o geral e o particular, com
o acaso e a necessidade, com o equilíbrio e a mudança, com a continuidade e a descontinuidade, com os processos contraditórios. Precisa se tornar cada vez mais consciente da sua própria filosofia, e essa filosofia será eficaz na medida em que se tornar não apenas materialista, mas dialética”.

John Bellamy Foster é editor de Monthly Review. Texto
transcrito do livro A ecologia de Marx: materialismo e natureza.
(Tradução de Maria Tereza Machado). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.

EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 14, 15, 16, 17, 19