A Luta pela Democracia na França (Joanny Berlioz)
Decorreram apenas três meses desde que o Colégio Eleitoral dos cidadãos franceses conferiu à República leiga, democrática e social uma Constituição que proclama pertencer ao povo a soberania nacional. As instituições previstas por esse novo estatuto ainda não se acham todas instaladas.
O regime aceito pela maioria dos eleitores é, contudo, objeto das mais veementes críticas. Denunciam-se, de vários lados, a impotência do Estado, as mesquinhas preocupações partidárias, o “totalitarismo comunista”, até mesmo uma contradição entre a vontade nacional e os interesses nacionais… O Partido Comunista ganhou longe, à frente da consulta popular de novembro de 1946, mas o último ministério era integrado quase unicamente por elementos do partido socialista, que chegou em terceiro lugar nas eleições, após perdas constantes, de um ano para cá.
Se se quiserem compreender as razões profundas dessa perturbação política, é preciso ir procurar bem mais longe no tempo.
No dia seguinte à libertação da França, parecia que os representantes mais destacados da reação, que se comprometeram com o nazismo, durante a ocupação, tinham perdido toda esperança de voltar à tona. Mas pode-se ver, trinta meses após a libertação da Pátria humilhada pelas hordas nazistas, as forças da traição e da reação levantarem a cabeça e, se erguerem contra as da Democracia e do Progresso.
É necessário examinar de perto as forças que se defrontam — estas que pesam na evolução histórica de nossa terra, analisar suas raízes econômicas e sua influência no conteúdo do Poder público.
Eis o que nos propomos estudar neste artigo ressalvando desde já que tais questões não são em seu fundamento, mas em sua forma, peculiares à França,
Sob a influência de imenso abalo provocado pelos acontecimentos dos anos de 1939-45 e especialmente pela luta em favor da libertação nacional, a democracia deu neste país um grande pulo para frente. Inclina-se em nova direção, a democracia, para um povo que muito aprendeu, impelido no sentido da esquerda.
Esse impulso se choca muito naturalmente contra a resistência reacionária das potências do dinheiro para quem uma forma alterada da democracia tão bem servia aos seus interesses e supremacia econômica. A grande burguesia ergue-se contra o livre funcionamento das instituições nacionais democráticas que estão na iminência de passarem para as mãos do povo e da classe operária ascendente, imprimindo à República, em criação contínua, novo conteúdo social.
O choque das tendências progressistas, representativas dos interesses da nação e das tendências reacionárias, que representam os de uma minoria anti-nacional, torna-se cada vez mais agudo. Em favor ou contra a democracia, eis em resumo o conjunto da situação política francesa no início de 1947.
Será a vontade do povo posta em cheque por seus exploradores? Ou — para considerar mais de perto a questão na atualidade — os mais qualificados delegados dos trabalhadores terão pleno direito de acesso aos postos essenciais do controle do Estado?
Os “Trusts” Contra a Nação
As massas trabalhadoras, já estimuladas na defesa antifascista pela política da Frente Popular, e um instante depois divididas e desorientadas pelo muniquismo, adquiriram, na ação contra o invasor, uma “consciência política cada vez mais elevada. A traição dos “trusts” capitulacionistas e aproveitadores da derrota surgiu-lhes em plena luz. Desde o início de julho de 1940, o Comitê Central do Partido Comunista, com a assinatura de Maurice Thorez e Jacques Duclos, lançava o histórico apelo que indicava toda a evolução ulterior do país nestas frases prenhes de sentido:
“É no povo que residem as grandes esperanças de libertação nacional e social. E é em tomo da classe operária que se pode constituir a frente da liberdade, da independência e do renascimento da França”.
Sozinha, como agrupamento social, a classe operária organizou imediatamente a resistência ao invasor e colocou-se à frente do destino da Nação.
O Partido Comunista, único a permanecer de pé, em meio ao geral desabamento, animou, orientou e ampliou o combate patriótico. Proclamou que a salvação não deveria ser esperada do exterior; acentuou a preparação da insurreição nacional pela ação de massa contínua, indo até a ampla participação da população na luta armada; empenhou-se em selar a união dos franceses, principalmente concretizada pela Constituição do Conselho Nacional de Resistência, em março de 1943, com um programa de renovação da democracia; manifestou por ato solene, a vontade de assumir toda sua grande parcela de responsabilidade na reconstrução da França, participando do Comitê Nacional de Argel, em abril de 1944, após laboriosas negociações com os elementos vindos de Londres.
Depois do desembarque aliado na África do Norte e principalmente após a vitória decisiva do Exército Vermelho em Stalingrado, a causa hitlerista — a mesma dos “trusts” franceses pareceu estar irremediavelmente comprometida. As falsas elites do passado visaram desde então um novo alvo; suas preocupações egoístas se juntaram às crescentes inquietações do “gaullismo” londrino. Os esforços paralelos dessas duas correntes tenderam a aprovar as declarações demagógicas do General De Gaulle: — “Não seria aceitável que a terrível provação deixasse de pé um regime social e moral que atuou contra a Nação…” e a manter o povo em seu lugar, no menor e no pior lugar, aquele onde se fica exposto à morte.
O corpo sagrado da Inspetoria de Finanças, guarda sólida das oligarquias, realizou um segundo desembarque em Argel. Na França, as forças da traição se reagrupam dentro mesmo da Resistência onde tinham penetrado. O B.C.R.A. “cagoulard” organizou a futura ocupação do aparelho estatal. O “attentisme” procurou frear a combatividade por demais resoluta de uma classe operária que se identificava com a Pátria e ao mesmo tempo a reconquistava.
Quando o General chegou à França, foi certamente possível instaurar sob a sua direção um governo provisório francês, que obrigou as pretensões estrangeiras a recuarem, mas tudo foi feito pelo poder público para deslocar o impulso entusiástico do povo, evitar a transformação do antigo Estado comprometido na traição, impedir a classe operária de alcançar as alavancas de comando, diminuir o papel do Partido Comunista na direção dos negócios, pois é este último o congraçador intrépido das forças vivas da nação que aspiram a uma verdadeira libertação — outra que não a simplesmente militar — pela ampliação da democracia.
Duas concepções de restabelecimento da República imediatamente se defrontaram.
Ante o comitê central comunista reunido em Ivry, em janeiro de 1945, declarava Maurice Thorez:
— “O povo quer que alguma coisa mude… É numa democracia mais verdadeira, mais ampla, que o povo quer ver a salvação. Não é a democracia que se deve temer. Bem ao contrário, deve-se confiar no povo.”
De Gaulle e os que o rodeavam, apoiados por todos os adversários de um deslocamento das forças motrizes no seio da Nação, só pensavam em diminuir a soberania popular. Seus “slogans” de autoridade do Executivo, de responsabilidade do Governo, suas advertências contra “a ditadura coletiva” encobriam o desprezo e a desconfiança no povo, pressuroso era si tornar mais livre e que afinal bem o merecera. Conspirava-se para repor no lugar antigo as equipes dos “trusts” dóceis à mensagem do Papa, no Natal de 1944: — “A massa é o inimigo número um da democracia“.
Os antagonismos se expuseram ante os olhos de todos durante a batalha da produção. Consciente de sua missão nacional, a classe operária, com abnegação, se empenhou em mobilizar as energias a serviço da reconstrução econômica da França. Em compensação, as oligarquias financeiras — em relação as quais o governo nada fizera para impedir que erguessem a cabeça — preocupadas em comprimir as iniciativas criadoras do povo, consagraram-se em asfixiar as forças de soerguimento, em sabotar o esforço patriótico, em engendrar o caos industrial e monetário.
A Batalha da Constituição
O regime provisório era favorável aos pescadores de águas turvas; foi portanto prolongado pelo maior tempo possível. Somente em outubro de 1945 o povo foi chamado a eleger uma Assembléia Constituinte, de poderes limitados; o texto que elaborou foi rejeitado no referendum de 5 de maio último, sob a pressão dos altos “protetores” da democracia limitada. Foi só em outubro do mesmo ano que um segundo projeto, resultante de um acordo muito menos avançado do que o primeiro, foi ratificado pela maioria dos sufrágios.
Lutou-se durante um ano nas comissões, nas sessões plenárias, no país inteiro, tanto para oferecer à soberania popular sua expressão livre em Assembléia eleita, única, como para limitá-la e corrigi-la por meio de um segundo Poder que não haurisse sua fonte do sufrágio universal: — câmara alta mais ou menos corporativa, presidente da República onipotente, etc…
Quantos depositassem sua inteira confiança no povo eram combatidos pelos partidários de uma “sabedoria” superior à sua temível maturidade política, buscadores infatigáveis de freios e contrapesos.
Os adversários da Assembléia única, que poderia enfrentar os privilégios das classes possuidoras, denunciavam os pretensos perigos de uma “ditadura majoritária” — como se a lei da maioria não fosse o fundamento da democracia — e chegavam a adiantar o argumento de que preferiam o autoritarismo de estilo bonapartista a um sistema que pudesse “assegurar a tomada do poder pelos comunistas”.
Os chefes do Movimento Republicano Popular distinguiram-se no campo dos anti-progressistas. O MRP é com efeito de composição heterogênea. Embora, conte em suas fileiras com cristãos honestamente democratas, mais ou menos volvidos para a esquerda, também viu chegar a si, ao abrigo de seu equivoco, influentes reacionários. O seu porta-voz mais tonitruante repetia à saciedade que toda a ação do agrupamento visava impedir o Partido Comunista de conquistar legalmente a maioria e o Poder.
Em suma, consente-se em que o povo fale, com a condição de que se exprima em certo sentido. Como se hoje, após a grande guerra em favor da liberdade, fosse ainda possível reduzir o sufrágio universal à tarefa que por tanto tempo lhe foi concedida: — resolver periodicamente qual a fração dá classe dominante que oprimirá e esmagará o povo (Lenin).
Ao longo da batalha da Constituição, o General De Gaulle não deixou de expressar freqüentemente suas idéias de um poder pessoal irresponsável, dobrado de paternalismo filantrópico, destinado a manter uma assembléia desprovida da clarividência e da serenidade necessárias, especialmente a partir do momento em que os comunistas nela ocuparam o primeiro lugar, isto é, em novembro de 1945.
“O princípio que comanda a atitude de De Gaulle, escrevia o “Observer” britânico de 29 de setembro — é claro. Desde a libertação, seu constante objetivo foi manter os comunistas afastados do poder. Foi por temer que se apoderassem do poder pela força que se apressou em chegar a Paris em agosto de 1944. Negou-lhes postos-chaves no Governo Provisório que constituiu no ano passado… Espera constituir um novo bloco de direita bastante forte para derrotar os progressos comunistas”.
Manifestações de Anti-Comunismo
O antigo chefe do Governo não é o único que pretenda falsear, assim, provavelmente por direito divino, o veredictum popular que com constância notável, coloca o partido comunista à frente de todos os outros, inclusive no Conselho da República, a chamada Câmara de reflexão, de quem tanto se esperava que erguesse obstáculo à evolução.
É verdade que logo, à sua chegada a Paris, depois, em novembro de 1945, negou-lhe no Ministério um lugar correspondente ao papel que esse partido desempenhara na insurreição nacional e na reposição da França no trabalho. Pela segunda vez pôs em causa os méritos patrióticos do Partido dos 75.000 mártires, a fim de encontrar um pretexto à sua oposição aos resultados eleitorais de 21 de outubro, que o tinham decepcionado.
Ainda não cria, sem dúvida, possível afastar da máquina estatal os consagrados campeões da verdadeira democracia, aqueles que a massa francesa, ávida “de novo e razoável” julgara os mais aptos a levar ao triunfo. Interpretando o ódio do grande capitalismo sem Pátria, mas não desprovido de sórdidos interesses, sonhava em diminuí-los acolhendo-os no Ministério já com a corda no pescoço, em funções nas quais se gastariam. Teve contudo, de ceder, ante a firmeza comunista e conter sua calúnia.
Nessa época — seguindo-se ao simulacro de demissão de De Gaulle, o Partido Comunista reivindicara a direção de Governo de coalizão. Pretensão legítima, mas que não pôde ser realizada pelo fato do Partido Socialista subordinar seu apoio à concordância do MFP. manifestamente impossível. O partido socialista se manteve numa posição idêntica, quando da formação do ministério que se seguiu à inopinada partida do General, em janeiro de 1946. Apoiou, contudo, em junho, a candidatura de Georges Bidault à presidência, sem a menor objeção ou condição.
Estranha diferença. No espírito de certos dirigentes socialistas, a lei democrática parece não ser a mesma para todo o mundo.
Não é isto certamente a opinião dos trabalhadores da bases do S.F.I.O., que uma corrente cada dia maior impulsiona no sentido da unidade com seus irmãos comunistas. Deveria ser, portanto, o pensamento dos guias superiores do Partido, os quais, sob a capa de humanismo revisionista, negavam que o êxito eleitoral fosse a única lei de escolha das candidaturas e concediam, em bloco, ao MRP todas as cauções desejáveis, ao mesmo tempo que lançavam contra o Partido Comunista, violentos ataques, repetidos com alegria pela pior reação.
Evidentemente, alguns não poderiam permanecer insensíveis, como aconteceu — às invocações à democracia autoritária (?) proferidas pelo “símbolo de unidade da nação”, pois julgavam que “o país não consegue restabelecer-se dessa apatia, levada até a uma espécie de aniquilamento moral, que em 1940, acompanhava a derrota e que somente o interesse pessoal estimula”.
Democracia de Sentido Único
As eleições de 10 de novembro de 1946 tornam novamente o P.C.F. o primeiro partido do país, tanto pelo número de votos como pelo das cadeiras. Desejoso de tirar da Assembléia, uma nítida maioria republicana, reivindicava as responsabilidades da presidência de um governo de união democrática, leiga e social.
O MRP profere imediatamente sua atitude oposta a tal eventualidade. Apesar do apoio quase geral dos deputados socialistas, Maurice Thorez é derrotado. A resolução comunista de cortar o caminho à reação também provocou a derrota da candidatura Bidault, unicamente apoiada pela extrema direita — pela grande burguesia — que tem mais de um recurso para impedir que o povo avance e que manobrou de modo a escamotear as claríssimas indicações do escrutínio.
Encarece a fórmula de um ministério de unanimidade nacional que debilitasse a esquerda, e em primeiro lugar os comunistas, em proveito da extrema direita. Crê, em última análise, que o presidente Leon Blum há de ceder ante suas exigências. O P.C.F. faz largas concessões ao mais amplo acordo, mas a entrega a um dos seus representantes da pasta da Defesa Nacional provoca a tempestade reacionária. Contra ele, lança-se de novo o interdito do M.R.P. o de uma parte do Congraçamento das Esquerdas, sob a influência dos gaullistas infiltrados nessas duas formações: — Blum havia de se contentar com a formação de um governo puramente socialista, de caráter transitório, na opinião geral.
A reação garante ter atingido, assim, pelo menos por algum tempo, um de seus objetivos: — levantar a hipoteca comunista, isto é — demonstrar que é possível governar sem o partido do Renascimento francês. Isto constituiria a abertura de bom precedente.
Exaltaria, ao mesmo tempo, as regras do regime parlamentar, segundo a sua conveniência; colocando-se os ministros acima dos partidos, livres em seus atos em relação a estes. Pois o funcionamento regular dos partidos lhe desagrada, visto que alguns dentre eles permanecem obstinadamente fiéis às aspirações da classe operária e do povo de que emanam.
“L’Époque“, jornal dos “trusts” repele apenas um único partido. Escreve cinicamente: — “A existência de um grupo comunista importante falseia a política francesa” e implora aos socialistas que admitam não ser o partido comunista um partido como os outros…
O anticomunismo furioso faz com que venham à superfície singulares concepções de democracia ainda não confessadas, logo que os “trusts” se assombram ao simples pensamento que uma classe operária unida, confiante em si mesmo, poderia tirar proveito das liberdades republicanas e transformar os princípios formais e sem efeitos práticos em vivas realidades. Descobrem-se então os obstinados pendores da democracia pelos ricos, segundo a expressão de Lenin. Elabora-se cinicamente a lista dos partidos autorizados no quadro de uma hierarquia de valores, mais materiais do que espirituais. Um só agrupamento se acha, aliás, relegado à zona inferior e excluído das honrarias: — o Partido Comunista, na qualidade de representante da fração mais importante e mais combativa, mais necessária ao país, à classe operária. Pretende-se negar a esta última os postos chaves do Estado, sem querer aduzir razões sérias para este ostracismo, pois não há, em verdade, outra senão o ódio de classe e o medo de se modificar o conteúdo social da democracia.
“A Legalidade Nos Mata!”
A grande burguesia bem que admitiu no passado a presença, nos mais altos organismos de direção, dos elementos que tinham estado em ligação com o movimento operário, mas somente na qualidade de trânsfugas, de personalidade arrependidas, traidores na sua origem, na sua classe. Multiplicando suas tentativas no sentido de fazer correr a vida nova nas velhas formas do passado, tolerou, não sem dificuldades, para não chocar brutalmente o povo, militantes comunistas à frente de certos departamentos ministeriais. Na esperança de que o exercício do poder, segundo as normas tradicionais, os usasse e desacreditasse.
No entanto, permaneceram estes imutáveis e provaram suas qualidades mestras de realizadores. Não tropeçaram como esperavam os inimigos do povo. Permaneceram insensíveis às lisonjas ou aos insultos, compenetrados do sentimento de suas responsabilidades e cheios de coragem em face das árduas tarefas da reconstrução, tanto quanto ontem, ao enfrentarem o ocupante nazista. Eram novos homens de um partido de novo tipo. Eis o que não se lhes poderia perdoar.
Não se anulavam no exercício das funções delicadas que se lhes confiara. Para torpedeá-los, quando organizavam a luta libertadora, tinham-nos acusado de ter querido assassinar franceses. Quando convidam ao desenvolvimento do acrescido esforço de produção, são censurados porque proporcionam lucros suplementares ao capital. Prosseguem tranqüilamente em seu caminho. Desde então, apavoram-se as potências do dinheiro. “É capital” — mandam elas escrever antes das eleições de novembro último — “impedir o acesso dos comunistas à frente do governo: — “Eles têm homens!”
Se a experiência ministerial dos comunistas logrou êxito — e sem contestação foi esse seu resultado — é pois preferível eliminar do poder esses democratas por demais conseqüentes, que não consentem em deter a democracia onde corre o risco de se ultrapassar em detrimento das classes privilegiadas, que se propunham a mantê-la nos limites de um engodo bem urdido.
O que se reprova ao partido comunista são as qualidades que se lhe reconhece, em inúmeros artigos recentes, a própria imprensa estrangeira: — seu dinamismo, sua fé no destino político da classe operária, o impulso no rumo da grandeza, da independência nacional de que conseguiu contagiar às amplas massas. Antes pereça a França do que se a veja reerguer pelo trabalho de seu povo, resolvido a não se deixar lograr em sua vitória: — eis o sentimento que dita a preocupação exclusiva de uma defesa de classe!
A reação não se pode acomodar com uma democracia autêntica tal como a definia Condorcet no tempo da Revolução Francesa em que uma minoria do Terceiro Estado arrastava a maioria envolvendo-a, conscientemente ou não — num mundo de ilusões: – “uma democracia em que todas as instituições sociais devam ter por objetivo a melhoria social, moral, intelectual e física da classe mais numerosa e mais pobre”.
Não hesita pois a se opor ao sufrágio universal — que as potências do dinheiro consideravam seu ídolo quando o podiam curvar à sua pressão — desde que se pronuncia num sentido que lhes escapa e põe à frente os comunistas para quem a democracia não tem limites, até que seja a da sociedade sem classes.
Lembra esta fase da “ironia da história mundial” a que aludia Engels em sua introdução às “Lutas de Classe na França”: — “Os partidos da ordem, como se denominam, perecem sob o estado legal que eles próprios criaram. Com Odilon Barrot, exclamam, desesperados: — “A legalidade nos mata”.
A Ordem Republicana
Contínua a batalha pela ordem republicana, a qual requer um governo que goze da confiança total do povo, incorporando por conseguinte, em bom número e no devido lugar, seus mais qualificados mandatários, seus dirigentes ouvidos e amados.
A classe operária percebe que governar sem o partido comunista, qualquer que seja a forma da equipe dirigente, é governar contra ela, contra o povo. A população laboriosa não se deixa mais enganar, nega-se a servir de pedestal a uma aristocracia egoísta, numa falsa democracia à moda espartana.
O problema não é: — marxismo ou anti-marxismo, como o repetem os papagaios dos “trusts”. Isto porque o mundo operário da França tem bastante maturidade e o sufrágio universal bastante bom senso para imprimir sua plena significação a esse princípio fundamental de Karl Marx:
— “É somente em nome dos direitos gerais da sociedade que uma classe particular pode reivindicar a supremacia geral”.
Trata-se simplesmente de proteger a democracia denegrida pela exploração do anticomunismo; as liberdades e as instituições republicanas ameaçadas pelo totalitarismo das oligarquias financeiras.
Os comunistas, contrariamente a outros, não ambicionam apoderar-se de todos os lugares para tudo reger. Sua linha política é bastante antiga e persistente, foi inúmeras vezes definida: — o Renascimento francês não pode ser obra de um único partido, mas da Nação inteira; presentemente, a consolidação da República não pode ser senão o resultado dos esforços comuns de uma maioria republicana congregada em torno de um programa preciso e decidida a aplicá-lo sem tergiversações, com o entusiástico concurso da massa.
É claro que há dificuldades para que seja conseguida essa maioria. Desde a libertação, a reação se esforçou por manter a confusão política, turvar as fronteiras entre republicanos e adversários mais ou menos camuflados da democracia, utilizando para esse fim principalmente a demagogia social que afivelava uma máscara de esquerda no horroroso semblante dos “petainistas”, assim como os restos do radicalismo que as ordenanças do General De Gaulle impelem para a direita. A reclassificação entre esquerda e direita é laboriosa enquanto se polarizam os extremos.
Teria progredido mais rapidamente se o partido socialista melhor tivesse atuado; se não tivesse afastado a realização da unidade operária, ao invés de estender olhos ternos ao MRP clerical, na esperança do mais falso dos trabalhismos, sem trabalhadores; se não tivesse dado provas, também, de desconhecimento do julgamento popular, repudiando, visivelmente, a elevar um comunista à direção do governo; se a política nefasta e errada que seus chefes praticaram não a tivesse levado à derrota na Assembléia em proveito da direita, numa proporção que não chega a compensar as vantagens comunistas; se, afinal, tivesse aceito a ação comum tendo em vista assegurar a formação de um governo de união democrática, que o partido comunista lhe propôs a 16 de novembro; os hesitantes se teriam então melhor definido, o impulso teria sido dado.
Todo o problema é ganhar novas forças para o autêntico congraçamento republicano, do qual o Partido Comunista é a ala reconhecidamente mais ativa. O país não pode permanecer artificialmente cortado em duas partes quase iguais; seria por demais fácil, nessas condições, levá-lo à aventura, na qual se afogaria a República. Aos ensaios de isolamento da classe operária e de seu partido de vanguarda, cumpre replicar pelo isolamento da reação. Esse afastamento dos homens dos “trusts” exige táticas sábias e prudentes, mas sempre inspiradas da mais total lealdade em relação ao povo e realizações no sentido de claras perspectivas.
Confiança no Futuro
A luta pela democracia popular compreende vicissitudes, mas a roda da História Francesa não girará em sentido contrário. Os trabalhadores ganharam bases reforçadas para novos avanços. Não somente a Constituição lhes garante pela primeira vez uma série de direitos econômicos e sociais, entre outros a participação pelos seus delegados na direção das empresas. Mas essas fórmulas se materializaram, em parte, graças à sua tenacidade; nacionalização das indústrias de hulha, gás e eletricidade, bancos de depósitos, grandes companhias de seguros; comitês de empresa com extensas prerrogativas; legislação social aperfeiçoada.
Uma central sindical, forte por seus seis milhões de aderentes, monta guarda vigilante em torno dessas conquistas e mantém sua unidade, a despeito de múltiplas manobras. Não há a desconfiança de outrora entre a classe operária e as classes médias embora estas, tão numerosas na França, oscilem ainda entre a direita e a esquerda.
O problema de sua orientação definitiva está sem dúvida, na base das oscilações políticas presentes. Mas Maurice Thorez, na entrevista concedida ao “Times“, (18 de novembro de 1946) — já podia afirmar com confiança, falando dos novos caminhos no rumo do socialismo, abertos pelo progresso da democracia: — “Sempre pensamos que o povo da França, rico de gloriosa tradição, encontraria, ele próprio, seu caminho no rumo de maior democracia, progresso e justiça social”.
P. S. — A terceira semana de janeiro foi de considerável importância no que se refere à instalação das instituições definitivas da República, tais como estão previstas pela Constituição ratificada a 13 de outubro de 1946. Viu igualmente intensificar-se e complicar-se a luta entre as forças da democracia e a reação, tendo incontestàvelmente as primeiras tomado a dianteira. A 14 de janeiro, efetuou-se o início da legislatura, cujo primeiro ato foi a designação de mesas de ambas as assembléias. Na Assembléia nacional, os aventureiros “gaullistas” que se agitam dentro do MRP e do Congraçamento das Esquerdas, teceram intrigas a fim de levar a candidatura de Herriot à presidência, na esperança de bloquear em torno do seu nome todos os votos da direita. Mas a manobra fracassou ante a firme decisão comunista de votar imediatamente em Vincent Auriol, candidato socialista. Este foi eleito essencialmente pelos votos socialistas e comunistas: — notável diferença com sua primeira eleição, em dezembro, pela reunião dos votos socialistas, MRP e extrema direita.
No entanto, os manejos gaullistas obtiveram êxito relativo no Conselho da República, onde conselheiros do Congraçamento das Esquerdas fizeram eleger um presidente MRP contra o candidato comunista — mas somente por ter sido favorecido pela idade. Esta cumplicidade com um clerical confesso é indicação de mais de uma mudança evidente das bases sociais do antigo partido radical, cujo apoio eleitoral se compunha outrora da classe média e dos leigos.
A 16 de janeiro. Vincent Auriol foi eleito presidente da República no primeiro escrutínio, graças à contribuição determinante dos votos comunistas que quebrou, na casca do ovo, todos os projetos de manobras reacionárias. Os inimigos do esperavam que uma candidatura comunista tornasse o primeiro escrutínio inoperante e que lhe seria fácil fazer surgir uma nova candidatura, de um personagem mais ou menos débil, em torno do qual teriam surgido manobras suspeitas. Um tal Presidente da República teria assegurado um período interino para De Gaulle, esperando dias melhores.
A eleição de Auriol é uma grande vitória republicana. L’Époque, jornal dos “trusts”, escreveu que no Congresso de Versalhes “tinha-se o sentimento definido de uma grande ausência”. É exato, mas tinha-se o sentimento muito forte de uma grande presença: — a das forças operárias e democráticas unidas e vigilantes.
Formou-se o novo governo. A reação se tomou de amores súbitos pelo ministério socialista homogêneo, no qual via todas as virtudes e insistia pela sua pura e simples recondução. Ante seus olhos, seu principal mérito não era o de ter afastado do poder os comunistas, pelo menos provisoriamente?
Bem que se saberia como usar e desacreditar os socialistas, pois um governo de minoria acha-se em presença de extremas dificuldades para que as possa resolver sozinho. Aí então a reação se livraria deles e a inclinação para a direita; estaria realizada!
Uma vez mais, o Partido Comunista surge como defensor dos interesses gerais da nação, pedindo a formação de um ministério de união nacional e republicana, capaz de associar todas as energias francesas às tarefas árduas do soerguimento do país.
Também é certo que sua atuação nos últimos escrutínios melhorou consideravelmente o clima de aproximação entre comunistas e socialistas, ao mesmo tempo que ajudou a maioria democrática de esquerda a melhor entender-se.
A classe operária sentiu afinal firmar-se sua consciência, de ser a força social dirigente de uma democracia viva, cuja consolidação ainda necessitará de grandes lutas.