Figuras do Movimento Operário: Jean Jaurés
JAURÉS só morreu em 1914, é preciso que alguns se resignem a reconhecê-lo. Ele não morreu em 1888, quando não era mais que um democrata idealista liberto de sua formação burguesa de universitário. Ele não morreu em 1901, quando era ainda um socialista utópico que via o socialismo como uma exigência moral. Ele morreu em 1914, sem ter visto na verdade, o imperialismo francês passar, como o faria após a 1.ª guerra mundial, à frente dos imperialismos mundiais, mas depois de ter lutado durante 10 anos contra a guerra imperialista; depois de ter assistido ao aguçamento da luta de classes, depois de ter visto no socialismo algo mais do que um apelo da consciência: uma necessidade da evolução do capitalismo, das lutas de classe que são o motor dessa evolução que ele engendra.
A morte interrompeu bruscamente sua trajetória que o levava para Guesde e o Marxismo.
Para nós, comunistas, herdeiros e continuadores das melhores tradições do movimento revolucionário francês, a única maneira de render homenagem a Jaurés consiste em situá-lo na História e prosseguir seu combate, continuando fiéis, menos à sua saudade que a seu exemplo, em conservar dele o que ele conservara das grandezas do passado: não as cinzas, mas a flama.
Idealista
"Jaurés é um professor, um doutrinador. . . Penso que ele tem a intenção de tornar-se um VERDADEIRO socialista" — escrevia Engels em 1890.
O olhar agudo do companheiro de Marx havia percorrido num só lance toda a curva desta vida apaixonada.
É verdade: o Jaurés que, logo depois de sua admissão, escreve suas teses de doutorado, desenvolve num estilo de um lirismo admirável os temas tradicionais, do idealismo burguês, impregnados de religiosidade. Em sua primeira tese: "Da realidade do mundo sensível", Deus está presente por toda parte. "Os esplendores do sol e a doçura das noites são a verdade não em sentido figurado, um reflexo da luz eterna. A luz é o olhar de Deus".
Jaurés, discípulo de Leibnitz, define assim o seu Deus:
"Deus é a unidade ideal que permite a harmonia e a expansão de todas as forças".
O espírito é a essência do mundo. Tal é o sentido da sua primeira tese. Na segunda: "As origens do socialismo alemão", que foi publicado em latim em 1891, o espírito é o motor da História. O socialismo, cujas origens ele procura em Lutero e em Kant, é para Jaurés, em 1891, um puro ideal moral. É a definição mesma do socialismo utópico.
Conquistado Para a Luta de Classes
Para a felicidade nossa, Jaurés não morreu em 1895, Desde 1900, em sua controvérsia com Guesde em Lille, Jaurés estudará o problema religioso sobre o terreno da luta de classes e, ao afirmar que o proletariado deve emancipar-se por si mesmo, ele dirá:
"Os socialistas cristãos reconhecem às vezes a dualidade, o antagonismo dos interesses mas eles dizem ao povo: Não vos rebeleis, não vos organizeis: há uma potência benfeitora e celeste que fará descer entre vós a justiça fraternal, sem que tenhais de rebelar-vos.
Pois bem: se os trabalhadores acreditassem nisso, eles se abandonariam à direção dessa potência do alto e não haveria luta de classes. Enquanto o proletariado esperou assim por seus tutores celestes ou tutores burgueses, enquanto esperou sua libertação de outras forças que não a sua, a luta de classes não existiu".
E depois de ter assim posto em evidência a oposição radical entre as doutrinas em que Deus e a idéia de Justiça trabalham pelo homem, e sem ele, doutrinas religiosas e idealistas, e as doutrinas materialistas de luta de classes, doutrinas revolucionárias que só esperam a libertação dos homens e das nações através de organização de classe e de luta do proletariado, Jaurés prossegue:
"A luta de classes começou no dia em que, com a experiência da jornadas de junho, o proletariado aprendeu que era somente em sua própria força, em sua organização, que ele podia basear a esperança de salvar-se".
É dentro desse espírito que, em 1904, quando da discussão das leis laicas, Jaurés demonstrará brilhantemente o papel social da "velha canção que acalentara a miséria humana" e verá na religião, segundo a expressão que lhe opunha Lafargue em 1911, "o protetor nato dos escravagistas e dos déspotas". Basear-se num Jaurés mutilado, arbitrariamente interrompido sem avanço, em 1895, é falsificar e desonrar sua herança. É cômodo fazê-lo quando há a intenção de traí-lo. Está aí uma operação que recomeça periodicamente. Como escrevia Victor Hugo a respeito dum outro gigante:
"Uma matilha de anões disformes recorta seus gibões em seu manto de rei".
Foi uma experiência decisiva, feita em Carmaux, que deu raízes ao socialismo de Jaurés na realidade social, que fez do democrata de coração generoso, de filosofia utópica e socializante, um militante socialista.
Essa experiência foi a da greve dos vidreiros de Carmaux, em 1895. Jaurés conheceu então o heroísmo do proletariado e a repressão selvagem da burguesia capitalista. Na República em que via antes apenas a expressão histórica da harmonia universal, Jaurés discernia o antagonismo dos interesses de classe. Pela primeira vez, ele foi no Parlamento o advogado da classe operária. Denunciou à Câmara "a derrota dos trabalhadores em greve oprimidos pela República". Jaurés encontrou o socialismo em Carmaux.
Graças aos vidreiros de Carmaux e ao seu combate, o socialismo de Jaurés baixou do céu sobre a terra e criou raízes no terreno da luta de classes.
Não se trata de uma hipótese. No Congresso de Tapy, em 1899, Jaurés lançou a âncora sólida que devia impedir que, em futuro, seu pensamento se desviasse e que lhe permitiu debater todos os problemas em termos de luta de classe.
"A luta de classe, disse ele, é o princípio, a base, a própria lei do nosso Partido. Os que não admitem a luta de classes pode ser republicanos, democratas, radicais, ou melhor, radicais-socialistas — mas não são socialistas".
É essa lei histórica da luta de classes, fundamento do socialismo científico fundado por Marx, no Manifesto Comunista de 1848, reafirmado com tanta força por Jaurés, que continua a ser o ponto de encontro de todos os que querem ficar fiéis ao movimento operário, contra todas as tentativas para ocultar a luta de classes, de Millerand a Leon Blum.
É verdade que uma prática oportunista levou várias vezes o socialismo a desviar-se dessa rota segura.
Quando o socialista Millerand entrou no governo ao lado do sinistro general Gallifet, símbolo de repressão reacionária, Jaurés não viu imediatamente o mal. Millerand se desmascarou e transformou-se num dos estranguladores do movimento operário. Lealmente e publicamente, Jaurés reconheceu seu erro.
Participando na batalha do assunto Dreifus, não escolheu o campo da luta de classe, mas apelou para motivos humanitários.
Enfim, logo depois, a aliança sem princípio com os radicais Cambistas, pôs uma vez mais a classe operária a reboque da burguesia.
De todos esses resvalamentos ideológicos e práticos, Jaurés tirará magnificamente a experiência nos seus últimos meses de vida, quando redigirá com firmeza e do seu próprio punho a moção firme do Congresso d'Amícus:
"É preciso que o Partido Socialista apareça com uma política sua, clara e franca, baseada em sua essência sobre o que foi estabelecido em Amsterdã pela Internacional, como sobre seus estatutos e suas resoluções de Congresso."
"O Partido Socialista continua inquebrantavelmente ligado à política que fez sua força, sua disciplina e seu progresso, à política que o opõe irredutivelmente a todos os partidos da burguesia, à política que o tornou o Partido dos operários e dos camponeses, de sua luta de classes, de suas reivindicações, de sua emancipação".
Ele se pronuncia claramente contra a reconstituição dum bloco cuja única conseqüência seria debilitar seu caráter e sua doutrina, diminuir seu vigor combativo, e que não constitui, de modo algum, a condição para uma ação republicana do Partido.
O oportunismo, que Jaurés condenará tão energicamente em 1914, tinha 15 anos antes, raízes sociais profundas: a concentração rápida do capital, trazendo ao seio do proletariado massas numerosas de camponeses, artesãos, comerciantes arruinados, havia criado um estado de espírito novo. Essa pequena burguesia bruscamente proletarizada havia transferido para a classe operária sua ideologia com seu amargor, seu desespero, a nostalgia de sua antiga situação pequeno-burguesa que constituía o ideal ao qual ela aspirava regressar.
Essa confusão ideológica se traduz pelo fracionamento impotente das seitas socialistas, em geral tímidas, prontas a entender-se com o potente capitalismo, A confusão e a divisão reinaram em toda parte, salvo em torno de Guesde e do Partido Operário Francês, o primeiro partido marxista na França.
Operário de Unidade
Jaurés teve o mérito de pôr fim, senão à confusão doutrinária, pelo menos à divisão.
A confusão continuou, mesmo depois de 1905, quando se desencadearam todas as conseqüências de uma política de classe, cuja necessidade Jaurés afirmara sem cessar e cada vez com mais força.
O próprio problema de unidade obrigara-o a definir as suas bases de classe, e as bases doutrinárias, — e isto o aproximara cada vez mais de Guesde e de Marx.
"Quanto a mim, escrevia ele, de nada valem estudar e analisar as objeções feitas à teoria de Marx; ela resistiu maravilhosamente a tudo".
Contra o revisionismo de direita, como o de Bernstein, que pretendia se enxertar com o idealismo de Kant; contra o revisionismo de esquerda, como o de Sorel e de Lagardelle, o qual se voltara para Proudhon e Bergson antes de tornar-se o mestre do pensamento de Mussolini, Jaurés teve rudes combates.
"Penso e tentarei demonstrar, escrevia, que o Marxismo em si mesmo contém os meios de completar e renovar o marxismo".
Jaurés não caiu nunca no reformismo vazio de Bernstein, que declarava:
"O objetivo não é nada, o movimento é tudo".
Jaurés nunca perdeu de vista, nunca deixou de lembrar o objetivo final: a revolução socialista para a
qual dedicou todos os seus pensamentos e todos os seus combates.
Ele denunciava nos socialistas alemães a "frase revolucionária" que camufla sempre capitulação na prática, e fê-la em termos que recordam os de Lênin na "Doença Infantil". No Congresso de Amsterdã, em 1904, Jaurés dizia aos socialistas alemães:
"Diante do vosso proletariado e do proletariado internacional, camuflastes vossa impotência de ação refugiando-vos na intransigência das fórmulas teóricas que vosso eminente camarada Kautsky vos fornece até o esgotamento vital".
Foi através dessas controvérsias que se realizou a unidade de 1905. Jaurés definiu assim sua base de classe e sua base doutrinária:
"O essencial é que a unidade seja conduzida e praticada… entre homens igualmente devotados ao socialismo e que não querem deixar degenerar-se o vivo pensamento comunista; nem a intransigência simplesmente verbal, doutrinária e estéril, nem uma simples modalidade do radicalismo democrático.
Essa unidade nos desviará das tentações e dos perigos do espírito de camarilha, oportunista ou intransigente. Libertar-nos-á de toda política de seitas, para fundar uma política de classe, de uma classe revolucionária.
Essa unidade colocará a nossa ação de acordo com o pensamento completo do proletariado, que não se desinteressa das lutas imediatas — mas que sabe também que só ficará inteiramente livre em sua consciência como em seu trabalho através de uma revolução profunda de propriedade e pela instituição completa do regime comunista".
Foi nessa atmosfera de combate pela unidade operária, pela unidade francesa, pela unidade humana, que Jaurés fundou o jornal que continuou a ser o órgão central do socialismo na França — "L'Humanité".
Esta unidade, que foi apenas quebrada pela maioria, Jaurés soube colocá-la enquanto viveu, acima de tudo. No Congresso de Amsterdã, em 1904, ele deu um admirável exemplo de disciplina de militante: o socialismo será "democrático"? ou "revolucionário?" Tal era a pergunta que se apresentara ao Congresso. Jaurés defendeu apaixonadamente a tese do socialismo "democrático". Ele foi batido no Congresso de Amsterdã. Inclinou-se sem hesitar, e de volta à França, em sinal de respeito às decisões do Congresso rompeu o pacto parlamentar que o ligara aos radicais e abandonou a Delegação das Esquerdas, da qual era o chefe incontestável. Ele foi homem do Partido, respeitador da Unidade, dobrando-se voluntariamente à firme disciplina da classe operária no combate.
Depois da greve de Carmaux, o Congresso de 1904 é a segunda curva decisiva na carreira de Jean Jaurés