A filosofia burguesa atual está cheia de pequenas correntes, de todos os matizes, cada uma se apropriando de um novo “ismo” qualquer para se diferenciar das outras. Tal fato não passa, porém, de um jogo escolástico. Esses novos “ismos” filosóficos aparentam apenas divergências superficiais, no fundo realmente insignificantes.

O que Lenin dizia das pequenas correntes da filosofia burguesa, existentes em seu tempo, se aplica inteiramente aos “ismos” filosóficos atuais. Quando estava em moda o pragmatismo (também denominado filosofia da ação), constituindo a última palavra da filosofia americana, embora ainda hoje não esteja de todo posto de lado, Lenin mostrou que, apesar do pragmatismo se considerar como uma nova linha em filosofia, não apresentava, no fundo, nada de novo em relação ao machismo que anteriormente fizera razoável barulho.

“Do ponto de vista do materialismo, escrevia Lenin, a diferença entre o machismo e o pragmatismo é tão ínfima e milesimal como a que separa o empirio-criticismo do empírio-monismo”.(1)
Quaisquer que sejam as diferenças verbais, é característico que as mil e uma correntes atuais da filosofia burguesa se tornem cada vez mais agressivas contra o materialismo e que o idealismo que professam seja cada vez mais reacionário e decadente, assemelhando-se, muitas vezes abertamente, com o clericalismo. As correntes atuais da filosofia burguesa são o reflexo ideológico, do capitalismo que apodrece e mostram a que grau se elevaram seus traços reacionários.

Esses traços já foram definidos há muito tempo e é o misticismo cobrindo a realidade com o véu do mistério, deformando-a através do prisma das invenções idealistas; é o agnosticismo propagando a impossibilidade do conhecimento do mundo; é o furor cada vez maior da filosofia burguesa contra a ciência e, em particular, contra a ciência do desenvolvimento da sociedade, que prediz o fim inelutável do regime burguês.

A filosofia idealista alemã do século 18 e princípios do século 19, que foi uma reação aristocrática contra o materialismo francês e a revolução francesa, fornece um terreno particularmente propício aos ideólogos filosofantes da burguesia. O misticismo e o agnosticismo de Kant; o idealismo subjetivista de Fichte, declarando que a consciência individual é a criadora do universo; a vontade obscura e inconsciente que Shelling considerava como primeiro fundamento do “absoluto”; a mistificação de toda a realidade — natureza e vida social — por Hegel; tudo isso foi aproveitado no arsenal da filosofia burguesa, modificado, reparado, tomando aspectos cada vez mais reacionários.

A filosofia burguesa gerou um mundo de correntes que, sob o pretexto de defesa de um pretenso “conhecimento positivo”, de uma “maneira positiva de pensar”, cavaram um abismo para a ciência e abriram as portas para o fideísmo. Tais foram o machismo e o empirio-criticismo, denunciados por Lenin. Realmente, Lenin mostrou que o empirio-criticismo não é

“senão uma forma refinada do “fideísmo” que permanece em armas, dispõe de imensas organizações e continua a agir sobre as massas, utilizando-se das menores hesitações do pensamento filosófico”‘; que “a função objetiva de classe do empirio-criticismo é servir a fundo aos “fideistas” na luta contra o materialismo em geral e contra o materialismo histórico em particular”.(2)
A filosofia burguesa engendrou também correntes que se caracterizam por um misticismo desenfreado, não dissimulado. Tal é o irracionalismo ligado aos nomes de Schopenhauer e de Hartmann, cuja denominação basta para evidenciar a hostilidade à razão e cuja essência consiste em fazer assentar o mundo sobre uma base espiritual irracional, que se apresenta sob a forma de uma “vontade cega” do “inconsciente”. Tal é a fenomenologia de Husserl que santificava a escolástica medieval dos pretensos realistas, que considerava o comum como um gênero ideal particular do ser e que, após ter declarado que esse comum se concebe diretamente pela chamada intuição intelectual, levantou a bandeira da luta contra a ciência e a pesquisa científica. Tal é o intuicionismo ligado ao nome de Bergson, que repelia o conhecimento intelectual, substituindo-o pelo chamado conhecimento intuitivo, que concebe o objeto sem nenhum raciocínio, mas com a ajuda de uma certa faculdade misteriosa, propriedade exclusiva de alguns eleitos, especialmente dotados.

O fato dessas tendências filosóficas terem assumido um lugar de destaque na ideologia do fascismo alemão, como arma capaz de castrar espiritualmente os alemães e de cegá-los, levando-os a crer na intuição de Hitler, mostra seu caráter profundamente reacionário.

As atuais correntes filosóficas burguesas tomam seu conteúdo de todos esses sistema reacionários e de outros que lhes são similares; além disso, às vezes procuram também outras fontes ainda mais distantes da mística medieval, fontes essas que já têm sido utilizadas por numerosos filósofos burgueses mais antigos.

O que ficou dito sobre os principais traços característicos da filosofia burguesa contemporânea e das fontes onde ela se inspirou, se aplica igualmente à corrente atualmente em moda, da filosofia burguesa, que iremos estudar em seguida e que tem o nome de existencialismo.

Os vínculos bastante estreitos que ligam o existencialismo ao irracionalismo, à fenomenologia de Husserl e ao intuicionismo, são particularmente característicos .

Os existencialistas são também parentes próximos da mística medieval de Santo Agostinho. Em sua árvore genealógica figura igualmente Bernard Klervoski, religioso exaltado do século 12, de um misticismo delirante. Encontramos, em seguida, Maine de Biran, psicólogo e filósofo francês dos séculos 18 e 19, que pregava o voluntarismo e o misticismo. Os existencialistas respeitam particularmente Kierkegaard, escritor dinamarquês do século 19, que afirmava que “a subjetividade é a verdade” e hesitando entre a aceitação da vida e sua negação, pregava o medo à vida. Uma de suas obras tem o título de “Concepção do Medo — Pesquisa Psicológica do Problema Dogmático do Pecado Original”. Em seguida, escreveu “Uma Doença Mortal”‘, no qual descreve os diferentes aspectos do desespero. Os motivos eróticos têm papel destacado nas obras de Kierkegaard. Sobre esse ramo da árvore do existencialismo, ramo coroado por Sartre, seu representante mais destacado, encontra-se também a filosofia de Nietzsche, que foi a bandeira da burguesia imperialista e precursora da ideologia fascista do ódio entre os homens. O mais próximo pai espiritual de Sartre foi o professor alemão Heidegger, discípulo de Husserl, que ocupava o cargo de reitor de universidade na Alemanha de Hitler. Tais são as origens da última moda da mais recente filosofia burguesa o existencialismo, que apareceu tão ruidosamente.

* * *

O existencialismo é ao mesmo tempo uma corrente filosófica e uma corrente da estética burguesa moderna; sua peculiaridade consiste justamente no fato de encarnar as idéias filosóficas sob uma forma artística.

Jean Paul Sartre, autor de uma série de obras filosóficas sobre o existencialismo (L’Etre et le Néant”, “L’Existentialisme est un humanism”, etc), e de romance e peças de teatro, acentua o fato de que o existencialismo é, antes de tudo, uma filosofia. “Para saber o que é o existencialismo, escreve ele, é necessário considerá-lo no plano estritamente filosófico”.

Qual é então o conteúdo dessa filosofia?

O conteúdo dessa filosofia consiste em transformar a realidade numa subjetividade banal; em negar as leis objetivas que dirigem a atividade dos homens; em negar toda a moral comum; em negar o papel da consciência e dos sentimentos como motivos que incitam os homens a adotar determinada linha de conduta.

Segundo o existencialismo, a atividade humana se desenvolve como se nada motivasse, como se estivesse isolada da realidade dos outros homens, como se não pudesse contar com o seu apoio, como se estivesse sem esperanças nem perspectivas.

A filosofia do existencialismo propaga a falta de fé no sucesso da luta das forças do progresso contra as forças da reação; procura minar a coragem e a confiança dos combatentes da liberdade no triunfo de sua causa.

Pelo conteúdo ideológico, o existencialismo é o fruto do mundo capitalista em decadência; em sua essência reflete o sentimento que a burguesia decadente e degenerada tem do mundo. O existencialismo destina-se a desarmar espiritualmente as forças da democracia e o progresso na luta pela instauração de regimes sociais de vanguarda, dignos da existência humana.

A principal divisa filosófica do existencialismo é: “a existência precede a essência”. Daí sua denominação — “existencialismo” .

Nessa afirmação o existencialismo declara que a existência é privada de essência. Mas, que é essência? A essência é, em relação aos fenômenos, o mesmo que o conteúdo em relação à forma. A essência das coisas é o que se manifesta nelas sob deferentes formas, como seu conteúdo indispensável. A essência exprime a ligação orgânica interna entre os fenômenos; a relação de causa e efeito; a relação de necessidade comum e que não é regida por leis com as quais deve estar em conformidade.

O existencialista Sartre declara taxativamente que não há qualquer unidade no mundo, que “a dialética cujo ponto de partida é a idéia de um todo, de uma unidade, é inconcebível em relação ao mundo objetivo, e foi por isso que Marx, tendo decidido colocar em pé a dialética de Hegel, acabou por matá-la definitivamente”.

E uma vez que Sartre começou a entoar essa canção idealista, teve que leva-la até o fim, afirmando que não há história da natureza, que “a história natural é absurdo” E conforme observou espirituosamente um dos adversários do existencialismo, segundo Sartre, o estreito de Magalhães apareceu quando Magalhães o descobriu e lhe deu um nome. Negando enfaticamente a causalidade dos fenômenos, a ligação necessária entre eles, Sartre lança um desafio ao marxismo. Escreve ele, cheio de presunção:

“Conseguireis definir com precisão e clareza o que entendeis por causalidade? No dia em que o fizerdes, acreditarei na causalidade marxista”.
Não é difícil explicar esses ataques violentos e ignaros de Sartre ao marxismo, se considerarmos que o existencialismo foi atirado aos pés da juventude, pela burguesia, para impedi-la de se dirigir para o comunismo, e que, segundo as expressões da revista francesa “La Pensée”:

“o existencialismo está impregnado da preocupação de criar rapidamente um anti-comunismo comercialmente rendoso”.
Os ataques contra o marxismo, contra a concepção marxista da causalidade, nos leva diretamente à essência da filosofia existencialista, porque conforme a indicação de Lenin “a questão da causalidade tem uma particular importância na determinação da linha filosófica de cada novo “ismo”(3)

Qualquer um pode ver claramente que se negamos a causalidade objetiva e a ligação necessária entre os fenômenos — então pode-se esperar, conforme observava Feuerbach, que o verão sucede ao outono; que o inverno venha após a primavera ou o outono depois do inverno; que a terra gire numa órbita eclíptica ou circular, e que a circunvolução em torno do sol se realize em um ano ou em um quarto de hora, por exemplo.

A negação da causalidade conduz ao absurdo.

Não há nada mais claro do que o ponto de vista marxista dialético sobra o mundo, de acordo com o qual a natureza é um todo único e coerente, onde as coisas, os fenômenos são organicamente ligados uns aos outros, dependendo uns dos outros, uns condicionando os outros. E, ao contrário, se negamos a causalidade, se negamos a ligação orgânica interna entre os fenômenos, abre-se, então, o caminho ao incompreensível, ao misterioso, à mística, ao “fideísmo”, Lenin observava também que

“o idealismo filosófico (a cujos diferentes aspectos se reportam as teorias da causalidade, e de Hume e de Kant), isto é, o “fideísmo” mais ou menos enfraquecido, amolecido é a linha subjetiva na questão da causalidade”.(4)
Sartre chama seu existencialismo de ateísta.

“Há, diz ele, duas espécies de existencialismo: o católico-cristão, ao qual pertencem Jaspers e Gabriel Mareei, e o ateísta, de Heidegger, os existencialistas franceses e eu”.
Na realidade, o existencialismo apenas se cobre com o estandarte do ateísmo. E se às vezes parece que, em seu revestimento “ateísta”, ataca o outro aspecto, o católico, só o faz com estrema circunspeção, a fim de não lhe causar o mais leve arranhão. Porque, conforme observava com justeza a revista francesa “La Pensée”:

“o existencialismo foi criado para afirmar a mesma coisa que o idealismo, reconduzido ao fideísmo, se bem que se recuse ainda a declará-lo abertamente”‘.
E se se aplica a categoria da causalidade ao próprio existencialismo, evidencia-se que se ele nega esta categoria, não é absolutamente porque tenha dificuldade de compreender o que ela seja. O existencialismo repele a causalidade porque se a admitisse, ruiria todo o seu castelo, baseado na maneira de considerar a existência como sendo destituída de qualquer ligação, de qualquer lógica, de qualquer sentido.

A aplicação do existencialismo ao homem, à sua existência e à sua atividade, torna particularmente evidentes não só o caráter reacionário dessa filosofia, mas também seu sentido e finalidade de classe.

Segundo a máxima filosófica que é a base do existencialismo — “a existência precede a essência” — o ser humano é considerado como existindo independente de qualquer ligação necessária com os outros homens. O ser humano é “abandonado”, isolado, nada tendo de comum com os outros homens, o que permite considera-lo como parte de um todo e ver nessa parte uma manifestação do todo. Esse individuo “abandonado” se considera, com toda a sua atividade isolada, uma realidade única e é considerado como um criador do seu “eu”, completamente independente e absolutamente livre. Afirma o existencialismo que o indivíduo não pode ser considerado como portador de traços comuns de uma coletividade humana qualquer, sendo ele quem determina sua essência por seus atos isolados, na escolha dos quais é livre, dependendo unicamente de sua própria decisão.

“O homem”, escreve Sartre, “é apenas o que ele faz de si mesmo.
Tal é o princípio básico do existencialismo’*.

Quando o existencialismo afirma que o indivíduo é “abandonado” “solitário”, isso não constitui uma novidade na filosofia burguesa. O marxismo denunciou essa filosofia e essa psicologia do “abandono”, da “solidão”, que, a começar por Max Stirner, com “L’Unique et son existence”, os intelectuais burgueses repetem em todos os tons.

Na época em que a burguesia ascendia ao poder, seus representantes mais avançados na pessoa dos materialistas franceses, lançavam a tese de que, na vida, é o interesse pessoal que guia o homem; afirmavam ao mesmo tempo que os interesses pessoais podem tornar-se interesses sociais, se a sociedade está organizada de maneira a que os interesses pessoais coincidam com os sociais e que os objetivos do homem sirvam ao bem comum.

E quando o existencialista Sartre se lança agora contra os materialistas franceses do século XVIII, procurando defender sua pequena idéia do indivíduo “isolado”, separando o homem de toda comunidade humana, mostra apenas a que nível caíram os intelectuais burgueses.

Naturalmente, os materialistas franceses se equivocaram profundamente quando se lançaram à procura de uma “natureza humana” misteriosa ou da essência abstrata do homem, porque nada disso existe na realidade. Mas, do fato de que não existe natureza humana imutável, nem essência natural do homem determinada por seu mundo moral, não decorre, em absoluto, que a conduta do indivíduo não seja determinada por alguma coisa, não seja condicionada por alguma essência, que sua existência seja uma existência sem essência.

O marxismo demonstrou que o homem não é um ser abstrato, e sim um produto de relações sociais de determinada época histórica, o produto, em última análise, das relações de produção. Na sociedade dividida em classes antagônicas, o indivíduo é membro de uma dada classe, sendo portador de qualidades e de características dessa classe: de sua psicologia, de suas opiniões, de suas aspirações. Eis por que Marx e Engels afirmam que, na sociedade dividida em classes, não há indivíduo pessoal, porém um indivíduo de classe que, como exemplar único de uma classe, é a manifestação da essência de uma determinada classe.

Tomemos, por exemplo, as relações em face da propriedade privada ou as relações de homem a homem.

Os materialistas franceses procuravam a reposta desta questão: o homem é, por sua natureza, por sua essência, proprietário ou coletivista, egoísta ou altruísta, etc. Mas o homem, por sua “natureza”, não é nem uma nem outra coisa. Por sua natureza social, pelo fato de pertencer a uma classe, é evidentemente uma ou outra coisa. Assim, o proletariado, que não possui os meios de produção, não está preso pela psicologia da propriedade privada a age como lutador conseqüente pela revolução socialista. O operário é atraído por instinto para o socialismo e é nessa atração que se manifesta sua natureza social, sua essência de classe. Quanto à burguesia, suas opiniões, simpatias, sua “essência”, são plenamente determinadas pelo fato de que ela possui o meio de produção com os quais explora os trabalhadores; eis por que ela proclamou que a propriedade privada dos meios de produção é inviolável, inextinguível, e também porque ela está pronta para justificar qualquer crime em nome desse caráter sagrado da propriedade privada. Assim, a existência do burguês não é, em absoluto, uma “existência sem essência”. E uma das manifestações dessa essência reside justamente no egoísmo, na filosofia do “isolamento” do indivíduo.

Temos assim, diante de nós, um indivíduo cuja existência, privada de conteúdo como um recipiente vazio, somente mais tarde se encherá de alguma coisa e adquirirá sua essência. Mas de que maneira? Pela realidade, pelo espírito de empreendimento, compreende-se desde logo. Ao que parece,
esse indivíduo vazio não fica sem fazer nada; ele empreende algum negócio, esse se “engaja”, como diz Sartre. Essa pequena palavra “engajar-se” é, depois da outra — “isolamento” — a segunda “graça”, como se poderia dizer, na galeria filosófica do existencialismo.

Mas há diversas espécies de negócios e trata-se de escolher entre diferentes atividades ou crimes possíveis. Daí Sartre fazer entrar em cena uma nova “graça” — “a escolha”.

Como se faz então essa escolha da ação a ser praticada ou a norma de conduta a ser adotada? Para nos iniciar no mistério desse ato, Sartre inventa uma contradição entre a atitude do filho perante a mãe e perante a pátria, dando para isso o seguinte exemplo: um jovem francês durante a guerra, encontrou-se diante do dilema: entrar para as forças da França Livre, isto é, partir para a Inglaterra e deixar sua mãe, ou permanecer junto a ela para ajudá-la. Nesse exemplo, Sartre considera uma série de condições que não são, em absoluto, indispensáveis e que tornam problemática para o jovem a resolução de partir para a linha de frente.

Esse jovem hipotético, escreve Sartre, verificou que sua mãe vivia para ele e que a separação a lançaria no desespero. Verificou também que, ficando com sua mãe, poderia auxiliá-la em cada passo de sua existência, enquanto que cada tentativa feita para partir e lutar seria cheia de incertezas e poderia resultar infrutífera. Partindo para a Inglaterra poderia, por exemplo, em dado momento, cair em algum campo espanhol ao atravessar a Espanha; poderia chegar à Inglaterra ou a Algéria e ir dar em alguma chancelaria.

“Ele se achava diante de dois tipos completamente diferentes de ação: de um lado uma ação concreta e imediata, mas voltada para o indivíduo; de outro, uma ação dirigida para a comunidade, para a coletividade nacional, mas completamente indefinida e que poderia ser interrompida em qualquer ponto. De um lado a moral do, devotamento individual; de outro, a moral mais ampla, ligada, porém, a uma ação muito menos determinada. E era preciso escolher”.
Depois de inventar as várias circunstâncias que deveriam tornar mais difícil para o jovem a decisão de partir para a guerra, Sartre declara que nenhuma moral, nenhuma consciência poderia ajudá-lo a encontrar a solução do dilema. Porque, afirma Sartre, não existe qualquer moral.

“O existencialismo”, escreve ele, “considera muito cômoda a ausência de Deus, porque na ausência de Deus não existe qualquer possibilidade de encontrar quaisquer valores no outro mundo… Dostoievski escreveu: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. É o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe e se o homem é isolado . . . Se a existência precede a essência, não há lugar para uma natureza humana imutável, anteriormente admitida; ou por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é a liberdade. E se não há Deus, não encontraremos nem valores, nem normas que regulem nossa conduta”.

O existencialismo remói aqui os dogmas decrépitos, segundo os quais a fonte da moral significa ou os deveres para com Deus ou os deveres de uma “natureza moral” secreta.

Pela própria natureza de sua filosofia que declara que o indivíduo é o único criador de sua essência, o existencialismo não pode ater-se ao terreno das relações sociais, sem o que é impossível encontrar as questões de moral. Afirmando que nenhuma consciência moral guia a conduta humana, o existencialismo nega mesmo a presença no homem de quaisquer sentimentos que o impulsionem para tal ou qual ação.

Admitamos, raciocina Sartre, que o jovem a que nos referimos antes, ouça a voz do sentimento: então ele resolveria o dilema do seguinte modo: “Se eu sinto que amo tanto minha mãe ao ponto de sacrificar tudo mais, ficarei com ela. Se, ao contrário, sinto que meu amor por minha mãe não é bastante forte, partirei”.

Tal oposição é, porém, apenas uma invenção existencialista.

Em fevereiro de 1944, o jovem guerrilheiro Jean H. . . ., preso pelos alemães depois de três dias de luta heróica num combate de sessenta guerrilheiros com quinhentos hitleristas e condenado à morte, escrevia na sua última carta aos país:

“Queridos país. São 14 horas. Soube com meus camaradas que seremos fuzilados dentro de duas ou três horas. . . Agradeço-lhes tudo que fizeram por mim. . . Amo-os muitíssimo. Adeus papai, minha querida mamãe e vovó; não se aflijam; fiquem felizes, porque morro pela França. Viva a França! Seu Jean”.
Não é um insulto à memória desse guerrilheiro, tombado heroicamente com todos os companheiros que, como ele, morreram tendo nos lábios as palavras “querida França!” e “querida mãe”, quando Sartre afirma que a decisão do jovem de partir para a luta contra os inimigos da pátria significaria que não amava bastante sua mãe?

Mas não é somente isso. O que Sartre quer dizer é que o jovem, para tomar uma decisão, não podia guiar-se por um sentimento, por uma consciência qualquer. Para Sartre, não temos o direito de dizer, observando a ação de um indivíduo, que na base dessa ação repousa um sentimento qualquer, de dizer que o sentimento nasce da própria ação e vice-versa.

Sartre exclama:

“Como julgar a força do sentimento? Posso dizer: amo tanto minha mãe que fico com ela, se realmente agir assim. . . Mas isso quer dizer que o sentimento se constata na ação, se bem que eu não possa consultar o sentimento para, de acordo com ele, determinar minha conduta. Isso quer dizer que não posso procurar em mim um estado autêntico que me impulsione à ação, e ainda mais, que não posso encontrar apoio, para ação, na moral”.
Assim raciocina Sartre, concluindo: “O isolamento caminha de par com a angústia”, com o tormento em face da obscuridade. Se, como afirma Sartre, não podemos nos apoiar em nada para a escolha da decisão, então a escolha se transforma num estado de angústia e de tormento da alma. Já observava Gorki que o principal estado d’alma do individualista contemporâneo é uma tristeza ansiosa; ele perde a cabeça, tenta reunir todas as forças para se ligar de qualquer maneira à vida; mas não tem força, restando somente a astúcia que alguém chamou de inteligência dos tolos” (“A destruição do indivíduo”) .

Efetivamente, todo o raciocínio dos existencialistas é urdido de sofismas. É um sofisma a afirmação de que os homens não podem se guiar em suas ações, nem pela consciência, nem pelos sentimentos.

Foi justamente o patriotismo, a idéia de defesa da pátria, que guiou os homens na prática de ações heróicas contra os fascistas.

Se bem que Sartre tivesse participado do movimento da França Livre, graças a que obteve um pequeno crédito político, ele calunia, sem dúvida, a juventude francesa, e em primeiro lugar a juventude comunista da França, que não “se engajou” simplesmente, que não participou na luta apenas, mas que estava guiada por uma consciência moral bem determinada — a consciência do dever para com o povo e o sentimento de amor à pátria.

Note-se que Sartre utiliza justamente com frequência o movimento de resistência como um fundo sobre o qual borda arabescos da filosofia existencialista. O movimento de resistência aparece então completamente deformado como num espelho curvo. Assim, ele apresenta os heróis que participaram desse movimento como se não estivessem guiados por idéias de patriotismo, de defesa da pátria. Para ele, o movimento de resistência é apenas um campo de “engajamento”, de experiência, de auto-observação, de formação de sua “essência”.

Isso ressalta nitidamente, por exemplo, da peça de Sartre — “Mortos sem Sepultura”. O tema dessa peça é o seguinte: um grupo de guerrilheiros franceses, presos e submetidos a torturas: o inimigo exige que eles indiquem o lugar em que se esconde Jean, o dirigente. Os prisioneiros nada revelam. Mas, na peça, acentua-se intencionalmente que se assim procedem não é porque tenham, moralmente, a consciência de que não devem entregar os companheiros de luta, porque isso pode prejudicar o movimento.

Em breve Jean também aparece; é preso com documentos falsos e por isso é posto em liberdade. Para salvar os camaradas, Jean lhes propõe indicar ao inimigo o esconderijo do estado maior, onde encontrarão um guerrilheiro morto com os papéis que pertencem a ele, Jean. Mas os guerrilheiros não aceitam a proposta porque isso representaria um recuo perante o inimigo. Jean acaba por convencer seus camaradas e os guerrilheiros revelam onde se encontra o estado maior. O assunto termina, entretanto, com a execução dos guerrilheiros.

Qual é então o sentido dessa filosofia?

Do ponto de vista dos interesses da resistência, os guerrilheiros não poderiam nem deveriam tomar outra decisão senão a que permitisse enganar o inimigo, para salvar-se e continuar a luta. Mas, para o existencialismo, o ponto de vista da coletividade e de seus interesses não existe.

O existencialista não se submete a qualquer moral comum e a liberdade para ele não é a liberdade de servir a uma causa comum, mas a de fazer o que acha necessário para ficar satisfeito consigo .próprio, Para Sartre, os guerrilheiros, seguindo o conselho de Jean, sacrificaram a liberdade que teria consistido em não atender às solicitações do inimigo, se bem que recorrendo a uma artimanha de guerra e enganando o inimigo eles poderiam se salvar no interesse do movimento de resistência. O final da peça (a execução dos guerrilheiros) exprime também que o autor condena os guerrilheiros per terem aceito o conselho de Jean.

Seguindo esse conselho, os guerrilheiros renunciaram à luta pela liberdade? Será que sua verdadeira luta não consistia em conseguir a liberdade para prosseguir na luta contra os fascistas? A peça de Sartre desnatura e torna banal a concepção de liberdade, de heroísmo e não faz senão entravar a educação dos trabalhadores no espírito de solidariedade, do verdadeiro heroísmo das tradições dos combatentes verdadeiramente revolucionários da liberdade.

Mas devemos ainda tomar conhecimento de outra categoria que figura no dicionário filosófico do existencialismo. Denomina-se “o desespero”. “Agir sem nada esperar”, eis a divisa do existencialismo. “Primeiro devo me engajar, em seguida agir” (segundo a velha forma: “não é preciso ter esperança para empreender”) . Essa afirmação aparece como conclusão da tese sobre o indivíduo “isolado”, que não está ligado aos outros homens por uma comunidade de interesses e de fins.

“Devo me limitar ao que vejo”, declara Sartre. “Não posso ter certeza de que meus camaradas de luta continuarão meu trabalho depois de minha morte, para levá-lo ao máximo de perfeição; isso porque os homens são livres e decidirão livremente amanhã o que serão; amanhã, depois de minha morte, uns poderão decidir instaurar o fascismo e os outros poderão ser bastante fracos para o permitir: nesse momento, o fascismo será a verdade humana. . . “.

O que Sartre prega não é uma atitude de guarda contra a fé cega na necessidade fatal. É a destruição da fé baseada no conhecimento. É a recusa de reconhecer as causas objetivas que constituíram a base da união de todos os povos amantes da liberdade na guerra contra o fascismo execrado e que torna possível e indispensável a sua união ainda agora para extirpá-lo completamente. Sartre, o cético, é a calúnia cínica contra os camaradas de luta; é a falta de confiança refletindo a conduta do mercantilista que não dá crédito sem contrato prévio assinado pelos devedores.

Que decorre do caráter duvidoso de uma luta vitoriosa contra o fascismo, afirmada pelo existencialismo? Decorre, de um lado, o encorajamento direto dos partidários do fascismo, e de outro, uma tentativa de propagar entre os que combatem o fascismo o espírito de dúvida, de hesitação, de falta de fé na vitória definitiva sobre ele. Será possível uma luta conseqüente contra o fascismo se os que o combatem não estão certos da vitória?

Torna-se evidente que o existencialismo é uma filosofia que desarma os que combatem o fascismo.

A filosofia existencialista é o reflexo da “essência” do burguês e a consagração da dominação burguesa. Todas essas pequenas palavras com que operam os existencialistas: “o isolamento”, “o engajamento”, “a angústia”, “o desespero”, etc. são no fundo as expressões que convém às diferentes manifestações da “essência” do burguês. A moral burguesa é toda penetrada de normas de um egoísmo estreito; o. burguês é empreendedor e homem de negócios — ele “se engaja”; empreendendo, ele se acha completamente ao sabor das forças cegas do mercado e está cheio de “angústia”, etc.

O espírito do existencialismo que se caracteriza por acentuar o que há de depravado no homem, fazendo ressaltar tudo o que é perturbador, repugnante, sujo, é bem o fruto da burguesia atual que vive sua degradação, sua degenerescência,

Mas o modo de pensar do existencialismo não é apenas o reflexo do modo de vida da burguesia; no fundo, constitui a defesa, a justificação do regime capitalista. Como todas as outras filosofias e sociologias burguesas modernas,, o existencialismo desvia a atenção das origens reais das misérias das sociedades burguesas atuais, desvia a atenção dessas sociedades, Essa defesa do regime capitalista encontra sua expressão nos raciocínios dos existencialistas sobre a “responsabilidade do homem” em seu destino.

“O homem é o que ele faz de si próprio”, afirma o existencialismo, exprimindo de maneira diferente apenas essa mentira burguesa de que “o homem é o artífice de sua felicidade. Na sociedade burguesa o homem está longe de ser o artífice de sua felicidade. Se na família de um capitalista vem ao mundo um degenerado físico e moral, essas qualidades, que são pessoais, não mudarão seu destino, traçado pelo nascimento.

O existencialista Sartre mascara seu servilismo aos regimes burgueses com intenções que poderiam ser boas. “Se, escreve ele, como Zola, explicamos o homem partindo da hereditariedade, das condições do meio, das condições sociais, do determinismo orgânico ou psicológico, os homens se tranqüilizarão dizendo: somos assim e ninguém tem poder sobre nada; mas quando o existencialismo fala da fraqueza, diz que o fraco é o responsável por ela”.

Evidentemente, “hereditariedade”, “determinismo orgânico e psicológico” nada têm a ver com esta questão. Sartre, discutindo com os marxistas, sabe perfeitamente que, no marxismo, não se trata desses fatores. E a tese do existencialismo proclamando que “o homem é seu próprio artífice” visa desviar a responsabilidade que têm as classes exploradoras nos males e na miséria das massas, no seu embrutecimento, no seu aviltamento. Essa tese visa desviar os trabalhadores da luta contra os regimes sociais capitalistas, contra os pilares econômico e políticos do capitalismo, substituindo essa luta pelo “engajamento” do indivíduo isolado, “engajamento” esse, aliás, sem esperança e sem. perspectivas, sem confiança na ajuda dos companheiros, sem apoio no auxílio da coletividade. O existencialismo é um veneno espiritual, uma arma envenenada, destinada a matar, nos trabalhadores, a consciência coletiva de sua classe, chamada a sufocar a fé dos trabalhadores na sua luta e na vitória futura.

Sartre escreveu um pequeno livro: “O Existencialismo é um Humanismo”. Esse título não corresponde, em absoluto, ao conteúdo, porque o “existencialismo” e o humanismo não são, de forma alguma, conciliáveis. Sartre não se contenta em ver sua mercadoria filosófica comprada voluntariamente na bolsa dos valores espirituais da burguesia. Ele quer igualmente fazer uma clientela entre os trabalhadores. De outra forma, o burguês cessaria de adquirir a mercadoria que é, antes de tudo, necessária aos exploradores, para corromper a consciência das massas trabalhadoras. Eis porque Sartre cobre sua filosofia com o véu do humanismo.

Tentando desviar a justa condenação do existencialismo pelos marxistas, Sartre não desdenha nenhum sofisma, nenhum arranjo, ensaiando fazer passar por branco o que é preto, recorrendo a floreios e piruetas de lógica, o que torna seu pensamento confuso e sem nexo. E sendo contra o que é comum e o que é patrimônio coletivo e a favor do individual que se basta a si mesmo, reflete no ilogismo e na ausência de ligação dos raciocínios e o caráter comum de todo o individualismo, conforme Gorki já havia assinalado:

“o individualista é um ser privado de sentimentos sociais, não sente qualquer ligação com o mundo, não reconhece a presença de quaisquer valores em torno de si. . . Sua impressionabilidade é levada a excessos doentios, mas seu campo visual é estreito e a faculdade de síntese insignificante; eis o que explica, verdadeiramente, o caráter paradoxal de seu pensamento, seu pendor para os sofismas” .
Essas palavras de Gorki se aplicam inteiramente ao existencialismo, que consiste todo ele em paradoxos e sofismas. Mas, por ser o existencialismo paradoxal e urdido de sofismas não se torna menos perigoso, porque, na sociedade burguesa, todo paradoxo e todo sofisma ganha força quando a opinião pública das classes dominantes se coloca em seu apoio. Eis por que é preciso lutar contra o existencialismo, como se luta contra um espião perigoso da burguesia, destinado por ela a desagregar e enfraquecer as forças do progresso e da democracia, e a sufocar a coragem, a corromper a consciência pelo veneno do pessimismo, da falta de animo e de perspectiva.

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Notas:
(1) Lenin: OBRAS, tomo XIII, pág. 279 da edição russa. 
(2) Lenin: OBRAS, tomo III, pág. 292, edição russa. 
(3) Lenin: OBRAS, tomo XIII,.pág. 126, edição russa. 
(4) Lenin: OBRAS, tomo XIII, pág. 127, edição russa.