Figuras do Movimento Operário: Willian Dias Gomes
COMO RESPOSTA ao terror desencadeado em Nova Lima, duas mil pessoas, homens e mulheres, gente de toda idade, principalmente mineiros do Morro Velho, acompanharam os funerais de William Dias Gomes, cuja vida fora cortada na véspera — aos 33 anos — pelo tiro de um capanga da companhia britânica.
Inúmeros operários vieram de Raposos, localidade vizinha, onde se abre a boca de outra mina da empresa. Vieram, apesar dos tiras, que ameaçaram e espancaram muitos do que se dirigiam a pegar o bondinho.
No pensar dos mais idosos habitantes, foi o maior cortejo fúnebre que Nova Lima já viu. Ao lado do caixão de William, o líder dos mineiros, ia o de Ornélio, trabalhador novo na luta, assassinado a pau e a pedra.
Os investigadores, enviados aos bandos, de Belo Horizonte, não ousaram chegar perto; ficaram de longe, espiando a massa. Caminhões, sobrecarregados de policiais militares, cruzaram rápidos com o desfile. Ninguém se atemorizou. Muitos operários, alquebrados no serviço das galerias e das máquinas, derramavam sim lágrimas de cólera e pesar. Amargas lágrimas, viris, pela morte do seu camarada, amigo e chefe.
William Dias Gomes nasceu em Mariana, a vila colonial conhecida pelo grande número de igrejas velhas. Como a família, dias depois, se mudava para Nova Lima, foi nesta cidade registrado, e todos têm orgulho de considerá-lo filho do lugar. Nunca se afastou dali, onde moram aqueles que trabalham na mais profunda mina de ouro do mundo. Suas grandes qualidades, ele as forjou na luta junto com esse pessoal, à testa desses mineiros explorados, dos quais se tornou a mais alta expressão.
Fez-se homem temido pela «St. John Del Rey Mining Co.», uma das mais antigas empresas imperialistas estabelecidas no Brasil. Os felizes ingleses que em Nova Lima administram, ano após ano, o roubo de toneladas do nosso ouro, pressentiam que naquele brasileiro simples jovial, de risadas francas, estava um dos que sabem dirigir a luta dos trabalhadores, o movimento popular que há de sacudir o jugo do grande capital estrangeiro.
O pai de William morreu quando ele tinha seis anos. Dona Liberalina, a mãe, gosta de relembrar esse tempo. «Nunca mais — conta ela — quis me casar depois disso. Trabalhei de lavadeira, ganhando 500 reis por dia, mas consegui criar meu filho como pessoa de bem».
Aos 22 anos William se empregou na mina de Morro Velho. Era «gaioleiro». A dois mil e quinhentos metros abaixo da superfície, sob temperaturas às vezes superiores a 40 graus, respirando uma atmosfera de poeira finíssima, que provocava nos pulmões a terrível silicose, o serviço de William consistia em empurrar com o ombro o carrinho, carregado de minério, para dentro do elevador, e dar o sinal de partida.
Trabalhando extraordinário, raro um gaioleiro tira mil cruzeiros mensais e é muito alto o custo de vida em Nova Lima. Com o seu miserável salário, William sustentava a mãe, a mulher e três filhos. O mais velho, no dia do assassínio, tinha apenas cinco anos, e o menor, uma garotinha, mal aprendia a andar.
Apesar das dificuldades que sempre encontrou na vida, William era fisicamente muito forte. Quando adolescente, distinguiu-se como o melhor jogador do Vilanova Futebol Clube, o «Leão de Nova Lima». Os seus «dribles» arrancavam gritos de entusiasmo à torcida.
Era bom, amigo, conselheiro. Desde cedo, foi estimado entre os companheiros de trabalho. «Arrancava até o coração para dar aos outros», é a voz corrente no lugar. Calmo, ponderado, gostando de conversar longas horas com todo mundo, sabia — quando necessário — ser violento e enérgico. Em fins de 1944, os operários de Morro Velho declararam-se em greve por aumento de salários. O DIP controlava a imprensa, nenhuma notícia foi publicada. Mas hoje se sabe que o movimento teve caráter heróico, e se notabilizou pela eficiência da organização dos trabalhadores. Estes, em uma semana, levaram de vencida a intransigência dos ingleses, a polícia do Estado Novo, as manobras dos pelegos. William distinguiu-se como um dos dirigentes da greve.
Desde então, seu prestígio só fez crescer entre a massa. Logo depois do assassínio, um dos bandidos gritava pela praça, a quem o quisesse ouvir: Esse William precisava ser morto! Sempre foi um traidor da Companhia!». Queria dizer que William sempre havia defendido os operários, e tinha nisto razão.
Em 1945, ingressou no Partido Comunista. Procurava sempre estudar, não apenas literatura marxista, mas tudo quanto pudesse contribuir para desenvolver-lhe o espírito. Conta-se que, certa vez, um bacharel amigo se escandalizou porque William trazia debaixo do braço uns manuais de geografia e português:
«Ora — respondeu-lhe o mineiro —, vocês puderam freqüentar escolas. Eu tenho de aprender por mim mesmo. Não posso é ficar sem saber das coisas».
Dedicou o ano seguinte a orientar a longa campanha dos mineiros de Morro Velho, novamente empenhados no aumento de salários. O dissídio coletivo se arrastou tanto tempo que, quando a Companhia apelou para o Tribunal Superior do Trabalho, os trabalhadores se declararam em «greve branca». Em dois dias, os ingleses tiveram de entrar em acordo.
Nas eleições municipais, William foi o vereador mais votado de Nova Lima. Os mineiros de Morro Velho enviaram para a Câmara local uma voz que jamais os trairia. Secretário do legislativo, sempre levantou com firmeza, diante dos representantes encobertos da Companhia, as reivindicações dos trabalhadores.
William não se descuidava dos problemas da cidade e do município. Propunha fossem distribuídas as terras dos grandes latifúndios das proximidades — o maior deles pertence à própria Companhia — a todos aqueles que estivessem dispostos a lavrar o solo. Não descansava nas lutas em que se empenha o povo brasileiro; era membro do Centro Municipal de Defesa do Petróleo, e considerado em Nova Lima, o homem que mais entendia do assunto. Apesar de sua febril atividade política, nunca deixou de trabalhar, ele mesmo como «gaioleiro», no fundo da mina.
Em junho de 1948 — cinco meses antes do assassínio — Mr. Wigle, o novo administrador da empresa, recém-chegado de Toronto, pôs em prática um novo sistema para acelerar o ritmo do serviço, aumentar as horas no interior das galerias e espoliar ainda mais os trabalhadores. Era o chamado «plano canadense». Enquanto alguns operários, menos experientes, deixavam-se engabelar com a demagogia de Mr. Wigle, William denunciava a tramóia em uma entrevista no «Jornal do Povo», de Belo Horizonte.
«Concito a todos os trabalhadores — afirmava aí — a abrirem os olhos, porque esse plano canadense pode ser muito bom para inglês ver, mas não o será para os operários. Não acredito que esses ingleses venham lá das bandas da Inglaterra e de suas colônias para bancarem os bonzinhos para com os brasileiros, cuja raça eles nem mesmo crêem que seja de gente. Daí a necessidade de lutarmos organizadamente na defesa de nossos interesses, porque a Companhia está sabendo lutar pelos seus, em prejuízo dos trabalhadores».
Em setembro — dois meses antes do assassínio — os mineiros, contra a resistência dos pelegos encastelados em seu Sindicato e a má vontade do Delegado Regional do Trabalho, um reles agente da Companhia —, conseguiram uma assembléia geral. Compareceram mil e seiscentos operários. Para evitar que estes discutissem entre si os seus problemas, o presidente da junta deu um golpe logo no início dos trabalhos. Declarou que pedira demissão havia dias e só uma nova junta, nomeada pelo Ministério, poderia dirigir a Assembléia. Por conseguinte, encerrava a sessão.
Houve grande tumulto. Levantando-se no meio da massa indignada, fez-se ouvir poderosa a voz de William:
«Isto é um golpe baixíssimo!»
E, encarando bem o pelego nos olhos, disse que só lhe restavam dois caminhos: ou presidir os trabalhos até ao fim, ou se retirar da sala como um traidor, que era, da classe operária. Os trabalhos prosseguiriam de qualquer maneira.
O presidente da Junta reconheceu a sua «precipitação». Voltou atrás. Neste dia, ali, foi eleita a Comissão de Salários, com William à frente, que desempenharia ainda importante papel. Os mineiros exigiam mais sete cruzeiros diários e o repouso semanal remunerado.
Dias mais tarde, aconteceu um imprevisto. A Companhia ameaçava despejar, das casas que lhes alugava, aposentados precoces, tuberculosos, silicóticos e aleijados no serviço da mina. Era uma inaudita barbaridade. Imediatamente, organizou-se uma grande passeata de estropiados e doentes, viúvas e órfãos, pelas ruas de Nova Lima. Das escadarias da Prefeitura, William discursou à massa:
«No Brasil — disse — há uma minoria, dona de tudo, e uma maioria, representada por vocês que estão aqui, e que nada possui. O povo, os operários, só devem confiar na sua própria força, na força de sua unidade e de sua organização. Nada se pode esperar do governo, pois o atual governo tanto de Minas Gerais como do Brasil é composto de traidores da Pátria. Se a Companhia quiser cumprir a ameaça do despejo, os aposentados todos devem ocupar a casa do companheiro mais ameaçado, e não permitir que ele seja despejado. A Companhia é inglesa — concluiu — e a casa fica no Brasil».
Assim falava o líder William. E o despejo, pelo menos naqueles dias, não foi concretizado.
Na mesma semana, uma notícia correu célere através dos elevadores e galerias, das oficinas de redução e de energia. É que seis feitores, por exceção amigos dos trabalhadores tinham sido por este «crime» postos na rua pelos ingleses.
A notícia precipitou a greve. Começou diminuindo a produção de Raposos. No dia seguinte, em todas as minas, baixava a 50%. A 18 de outubro, a greve se tornou total. Tudo parou. Sete mil operários cruzavam os braços.
Foi uma luta de heroísmo e persistência, contra o delegado e o prefeito, a demagogia de certos políticos e as ameaças terroristas do bando de capangas já organizado e armado por Mr. Wiglei que queria obrigar alguns mineiros a trair os companheiros e furar o movimento.
Em dois dias a greve tornou-se parcialmente vitoriosa. A Companhia aceitava a readmissão dos seis feitores; o pagamento aos operários dos dias de paralisação e o compromisso de dar uma resposta, no prazo de 30 dias, às reivindicações de salários.
«Saímos de cabeça erguida — acentuou William em um comício de regozijo. De cabeça erguida, porque vencemos. Aguardemos agora o prazo para que a Companhia responda sobre os salários. Concedemos 30 dias, mas seremos intransigentes caso não forem aceitas até as nossas reivindicações».
Faltava apenas uma semana para esgotar-se o prazo, quando William foi assassinado. A bala dos capangas derrubou a William seis dias antes, precisamente, da data em que esse prazo terminava. Ao matá-lo, os ingleses tinham a intenção de destruir todo o espírito de luta dos mineiros, pois haviam se acostumado a ver essa flama encarnada naquele homem grande, belo e simples.
Até a hora da morte, William demonstrou sua fibra. Quando os sicários já invadiam o escritório dos vereadores, ele se postou no topo da escada, e aguardou que o primeiro chegasse bem próximo. Neste reconheceu Belarmino Barbosa, homem com muitos crimes nas costas, bem pago pela «Mining Company».
— «Que é que vocês querem aqui, Belarmino?» perguntou William com firmeza.
O bandido estacou:
— «Nós queremos entrar». . .
— «Para entrar é preciso pedir licença!», retrucou o líder operário.
Sob aquele olhar de fogo, o bandido não teve coragem de deflagrar o revolver que já trazia empunhado. Foi um outro, um tal de Sebastião de Paula que, escondido às costas do primeiro, deu o tiro que penetrou direto no coração do herói. Só quando William tombava é que Belarmino se animou a dar-lhe por sua vez um balaço na cabeça, à queima-roupa.
Contou-me a esposa de William que ele morreu sorrindo. Sabia que outros viriam substituí-lo, e para isso voltava o pensamento no instante final. Outros viriam, inspirados pelo seu exemplo, para a mesma luta que terminará vitoriosa.
«O drama dos trabalhadores de Morro Velho — disse ele uma vez — é igual ao drama dos operários de todas as empresas imperialistas no Brasil».
Sorria a vitória dos trabalhadores, a libertação dos povos. William morreu a 7 de novembro, dia da Revolução em que ele jamais deixou de crer, vento de esperança que roça as faces de todos os oprimidos da terra.
Dias antes de morrer, segundo ainda o depoimento da sua esposa, William dissera a ela, em resposta a um mau pressentimento:
«Se for preciso, eu darei meu sangue pelo meu povo, pela minha classe. Eu tenho de lutar até minhas últimas forças».
E acrescentou:
«Eu não recuo, porque, se recuasse, estaria traindo o meu povo. Confio na minha classe. Ela breve vai ser vitoriosa».
Esta, a herança de William Dias Gomes. Sejamos dignos dela.
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«Mas, no caminho das suas aspirações ao domínio mundial, os Estados Unidos chocam-se contra a URSS e sua crescente influência internacional como bastião da política anti-imperialista e anti-fascista, chocam-se contra os países da nova democracia, já libertos do controle do imperialismo anglo-americano, chocam-se contra os operários de todos os países, inclusive os da própria América, que não querem novas guerras para o reforçamento dos seus próprios opressores».
Zhdanov