No início de julho, o ministro Delfim Neto chamou a atenção de toda a opinião pública ao visitar uma grande capital estrangeira, acompanhado de 150 dos maiores empresários nacionais. Entre caviar e goles de champanhe, foi negociada a participação dos hospedeiros na região de Carajás, na exploração da nossa riqueza petrolífera e até na montagem de empresas mistas multinacionais para operar em outros países.

Até aqui, nada de novo. Há anos que Delfim vem fazendo esse mesmo tipo de negociata em Nova Iorque, Londres, Paris, Bonn etc. Mas o que deu maior repercussão a esta última viagem é que nosso ministro do Planejamento se desviou da sua já tradicional rota de mendicância junto aos grandes centros financeiros do mundo ocidental, a fim de contrair novas dívidas e acordos em Moscou, junto aos dirigentes soviéticos!

Surpreendente, ou mesmo incompreensível, a quem sempre pensou que o famoso ouro de Moscou só enchia os bolsos de perigosos subversivos, este fato traz à tona uma discussão da máxima importância para todos os interessados em fazer do Brasil um país livre e independente: que União Soviética é essa que entra agora nos planos entreguistas do governo brasileiro?

A questão levantada induz a uma discussão aprofundada sobre a própria natureza do
sistema sócio-econômico vigente na União Soviética dos nossos dias. Esta avaliação tem de se pautar em dados concretos, pondo de lado qualquer apreciação simplista, superficial ou dogmática. Só encarando de frente a experiência soviética poderemos colher ensinamentos que orientem a luta pelo socialismo agora e no futuro. A polêmica, pois, deve ser travada à luz dos princípios e das concepções fundamentais do socialismo científico.

EXISTEM POSSIBILIDADES REAIS DE RETROCESSO DO SOCIALISMO

Logo de cara é preciso descartar como absurda e antidialética a posição dos que negam a possibilidade de um retrocesso em sociedades socialistas com afirmações do tipo "a roda da História só anda para frente, não anda para trás". Mesmo os historiadores idealistas burgueses reconhecem que a História não marcha de maneira linear, mas sim em constantes ziguezagues. O seu percurso é necessariamente complexo e acidentado, com avanços e recuos, vitórias e derrotas, ascensos e descensos, momentos de acúmulo e de dispersão de forças. Na História da humanidade, todas as grandes revoluções sofreram reveses. Nunca um novo modo de produção se afirmou de um só golpe, sem sofrer uma longa sucessão de derrotas, tropeços e retrocessos temporários. É verdade que, do ponto de vista marxista, "a roda da História só anda para frente". Mas isto pode ser entendido unicamente como o movimento geral de toda a humanidade. Dentro deste, um grupo ou um sistema em particular tem possibilidade de aparecer com força inicialmente e depois ser desarticulado para somente aparecer com força redobrada mais adiante. A própria revolução burguesa de 1789 na França não sofreu um retrocesso? E a História está repleta de exemplos de Estados operários que foram suprimidos pela violência armada da burguesia, como a Comuna de Paris em 1871 e a República Soviética Húngara em 1919.

Essa tese da "roda", vulgarização dogmática do marxismo, é ainda mais ridícula se analisarmos as particularidades da revolução socialista em relação à revolução burguesa. No caso desta, as bases econômicas do capitalismo já estão sedimentadas e desenvolvidas no interior da sociedade feudal. A tarefa da revolução é apenas a de romper com as amarras dos restos feudais na superestrutura, que impedem o pleno desenvolvimento da economia capitalista. Na revolução socialista, porém, é bastante diferente. A classe operária, ao tomar o poder político, tem de reordenar toda a sociedade em moldes inteiramente novos, inclusive a economia! Uma tarefa muitas vezes mais complicada do que a enfrentada pela burguesia revolucionária.

E, se examinarmos o caso concreto da revolução na URSS, a tese da "roda" vai de vez para o lugar que merece – a lata de lixo da História! Por ser a primeira revolução proletária vitoriosa no mundo, a classe operária soviética não se pôde pautar em nenhum exemplo histórico de construção socialista anterior, a não ser no da efêmera e malograda experiência da Comuna de Paris. Tateando um terreno inteiramente desconhecido, a possibilidade de pisar em falso e cometer erros graves sempre foi muito grande.

Além disso, a URSS herdou do passado acentuado atraso econômico, social e cultural. A Rússia pré-revolucionária era um país capitalista atrasado, arruinado pela guerra e com uma população predominantemente camponesa e analfabeta. A derrota da vaga revolucionária nos demais países da Europa durante a Primeira Guerra Mundial deixou as jovens repúblicas soviéticas sob hostil cerco capitalista sem o auxílio direto de outros Estados operários. E, para agravar tudo, o poder dos sovietes teve de enfrentar guerras civis e duas invasões imperialistas além da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial. Todas essas dificuldades objetivas tornaram ainda mais acentuado o perigo concreto da degeneração e do retrocesso na primeira pátria do socialismo.

"Se a sociedade não avança na ininterrupta revolucionarização da sua vida política, econômica, ideológica e cultural as forças do conservadorismo a arrastarão de volta à lógica do passado”

No fundo, esta desgastada teoria da "roda" volta-se contra a própria essência da sociedade socialista. Ela parte do pressuposto de que a luta de classes termina, uma vez construída a base econômica do socialismo. Daí para frente, as bases político-ideológicas ou sócio-econômicas para a degeneração do socialismo e a restauração do capitalismo não poderiam ser criadas. A questão central passaria a ser a de garantir o "pleno desenvolvimento das forças produtivas".

Esta nova reedição das teses economicistas combatidas por Lênin se contrapõe em gênero, número e grau à compreensão marxista do problema. A compreensão do socialismo enquanto etapa de transição é um dos pontos fundamentais do socialismo científico. Como Lênin ressaltava, é um período de luta aguda entre as forças da velha sociedade capitalista que agoniza e a nova sociedade comunista que nasce. Até o pleno triunfo desta, a questão de "Quem vencerá?" não estará resolvida.
Embora as classes exploradoras possam ser expropriadas rapidamente, suas idéias, valores e preconceitos, que dominaram a sociedade durante séculos, continuam presentes na cabeça dos homens. E a nova sociedade ainda herda do velho sistema de classes uma série de diferenças, como as distinções entre campo e cidade, entre trabalho manual e trabalho intelectual etc. Eliminar essas diferenças elevando constantemente o nível de vida material e cultural do povo é exatamente a tarefa histórica colocada para o socialismo. Mas, influenciados pelo pensamento do passado, alguns setores favorecidos lutam de todas as maneiras no sentido de barrar esta transição e restaurar o sistema de desigualdade e injustiça.

A luta de classes, portanto, não só continua durante todo o período do socialismo como é a principal força-motriz da transição ao comunismo! E aqui não há meio termo. Se a sociedade não avança na ininterrupta revolucionarização de sua vida política, econômica, ideológica e cultural, as forças do conservadorismo a arrastarão de volta à lógica do passado. É como no jogo do "cabo-de-guerra". Se um grupo relaxa por pouco que seja o esforço de puxar a corda em sua direção, acaba sendo arrastado inexoravelmente para o campo do adversário.

Por tudo isso, perder a perspectiva do conjunto das tarefas necessárias para levar até o fim a revolução socialista significa condená-la ao retrocesso. Teorias como a da "roda", das "forças produtivas" e outras semelhantes, não passam de plataforma ideológica das forças interessadas no retorno ao sistema de exploração e miséria, ainda que com uma forma nova e diferente.

REFORMULAÇÃO CAPITALISTA NA ECONOMIA DA URSS

A ascensão do grupo de Kruschev, na década de 1950, cristalizou na direção do PCUS exatamente esse abandono da perspectiva revolucionária na transição do socialismo para o comunismo. Ela representou uma vitória da parcela de altos funcionários do Estado e do Partido, administradores e diretores de empresa etc, inconformados com o caminho que a sociedade soviética vinha trilhando até então. Em nível econômico, isto se traduzia numa política pragmática e imediatista que buscava expandir a economia ampliando as diferenças e os privilégios herdados do capitalismo.

As primeiras medidas tomadas em 1957 voltaram-se diretamente contra o caráter centralizado da economia socialista. Aboliram os ministérios de planejamento central e em seu lugar criaram 105 conselhos econômicos regionais descentralizados. Em seguida, as Estações de Máquinas e Tratores foram vendidas às fazendas coletivas, transformando máquinas pertencentes a todo o povo em propriedade de trabalhadores de uma única unidade de produção. Alargaram os poderes e direitos dos diretores e a responsabilidade dos órgãos locais e das empresas. Assim, foram sendo liberadas na agricultura e na economia como um todo forças centrífugas que abriam caminho à reincorporação de métodos capitalistas e ao fortalecimento de relações mercantis.

Estas reformulações, no entanto, tiveram efeitos catastróficos para a economia soviética. Como resultado da reorganização da agricultura, os preços da carne e dos laticínios aumentaram 30 e 20%, respectivamente, em 1962. A eliminação dos ministérios centrais deu asas a um regionalismo estreito que rompia com qualquer tentativa de planejamento racional. Em 1959, por exemplo, houve um excedente na produção de roupas no valor de 1,485 milhão de rublos. Em 1964 esse excedente foi de 4,133 milhões! O caos no abastecimento levou à proliferação do mercado negro, onde diretores de empresa compravam ilícita e diretamente de outros diretores os bens necessários para a produção. A classe operária, ressentindo-se de uma desigualdade crescente, não mais encontrava estímulo para o trabalho. De 1959 a 1965 houve uma desaceleração acentuada na economia com níveis de produtividade extremamente baixos. Assim, se em 1959 se produziam 62,6  copeques de renda para cada rublo investido, em 1965 essa produção era de apenas 53 copeques.

Todo esse quadro caótico foi resultado do choque entre os novos métodos capitalistas reintroduzidos na economia e os elementos socialistas ainda presentes. Para a nova camada dirigente soviética era agora necessário promover uma conversão global e integral de toda a economia.

INTEGRAÇÃO GLOBAL DA UNIÃO SOVIÉTICA NO SISTEMA DO CAPITALISMO

Com esta plataforma Brejnev ascendeu ao poder afastando Kruschev em 1964. As diretrizes para tal reestruturação foram lançadas nas decisões do CC do PCUS de março e setembro de 1965 e no 23º Congresso desse partido em 1966. Mundialmente conhecidas como as "Reformas de Kossiguin", deram o tiro de misericórdia no que restava de socialismo na economia soviética.
Logo de saída foram restabelecidos os ministérios centrais abolidos por Kruschev. Isto levou os observadores mais superficiais e afoitos a apontarem um "retorno ao socialismo". Mas não era nada disso. O restabelecimento dos ministérios não foi qualquer retorno ao sistema antigo. Eles voltaram a operar em bases inteiramente diferentes, nada tinham de socialistas, toda a economia passou a funcionar segundo as condições impostas pela "Reforma Econômica".

Os aspectos centrais dessa reforma foram:
1. A meta central da produção de cada empresa passa a ser o lucro.
2. As empresas passam a funcionar segundo o sistema de autogestão financeira, gerindo e gerando seus próprios recursos.
3. Os administradores e diretores passam a gozar de poder quase ilimitado dentro de suas empresas a ponto de poderem até mesmo despedir operários.
4. O sistema de preços passa a gozar de maior "flexibilidade" para acompanhar as oscilações das forças de mercado.

Qual o significado e o alcance desse conjunto de medidas? Nota-se, de imediato, que elas apontam num sentido diametralmente oposto ao exigido pelas tarefas da transição ao comunismo. A teoria marxista indica que um dos grandes desafios do socialismo é exatamente restringir de maneira sistemática a operação das relações mercantis e da lei do valor. O Estado socialista tem de gerir a economia nacional como se se tratasse de uma única e imensa fábrica. Não é esse o sentido das medidas adotadas.

Apoiar cada empresa na lógica voraz do lucro significa romper com qualquer possibilidade de crescimento estável, acelerado e proporcional da economia. Os critérios do lucro e da rentabilidade no socialismo só podem ser encarados do ponto de vista de toda a economia nacional durante um longo período de tempo. Apesar de alguns ramos serem menos lucrativos em termos imediatos, o Estado tem de investir prioritariamente na indústria pesada de bens de produção, pois ela garante o desenvolvimento contínuo da economia e do bem-estar do povo em médio e longo prazos. Com o sistema de autogestão financeira, os próprios meios de produção da sociedade soviética voltam a ser mercadorias. As empresas passam a pagar ao Estado pela sua utilização! Já em 1970, este mercado de meios de produção era responsável por 2/3 das vendas na economia soviética. A "Reforma" também estabeleceu a montagem de lojas de vendas de meios de produção onde diretores de empresa compram diretamente de outros os bens de capital necessários à produção sem sequer passar pelo plano estatal! Na prática, foi a oficialização do mercado negro que floresceu com as medidas iniciais de Kruschev.

“ A classe operária soviética é novamente submetida a uma disciplina burguesa repressiva de trabalho que se baseia na ameaça de ser o trabalhador colocado no olho da rua se não andar na linha”.

Mas o item que talvez revele de modo mais completo até que ponto se abandonara a política comunista é o poder de demitir trabalhadores conquistado pelos diretores das empresas. No socialismo, toda a força viva da nação é aproveitada até o último homem e distribuída da maneira que melhor sirva ao conjunto da população. O homem é encarado como o capital mais precioso da economia e da Revolução. O direito inalienável do homem ao trabalho é uma conquista consagrada na Constituição soviética de 1936, que só um regime socialista pode implementar. Assim, a disciplina do trabalho é livre e consciente, baseando-se não na ameaça do desemprego, mas na certeza de que os frutos do trabalho não alimentam qualquer minoria exploradora.

Com as "Reformas de Kossiguin" este direito é negado. A classe operária soviética é novamente submetida a uma disciplina burguesa repressiva de trabalho que se baseia na ameaça de ser o trabalhador colocado no olho da rua se não andar na linha. A própria imprensa do país reconhece que freqüentemente são despedidos operários só por responderem mal ou se oporem a um diretor da empresa. Formalmente não pode haver demissões sem a aprovação do sindicato, mas na prática os sindicatos são instrumentos dóceis dos dirigentes. O jornal soviético Trud, relatou um caso na Geórgia onde, de 569 dispensas ilegais, 2/3 haviam sido aprovados pelo sindicato!

Os dirigentes soviéticos chegaram mesmo ao requinte de inventar um esquema chamado "Shchekimo", no qual, para facilitar as demissões, parte dos salários dos operários demitidos é repassada para os que ficam! Assim, em vez de cultivar os laços de união e camaradagem entre os trabalhadores, semeia-se a divisão e a competição mais doentia. A força de trabalho volta novamente à triste condição de mercadoria na economia soviética!

E aqui chegamos ao "X" da polêmica. O alcance da "Reforma Econômica" não foi simplesmente o reforço das relações mercantis, nem a descentralização. Estas medidas não passavam de conseqüência de um problema mais profundo – a economia soviética voltara a operar em bases essencialmente capitalistas!

Levantam-se novamente as vozes dos arautos do dogmatismo revisionista – "mas como, se não existe propriedade privada e a economia é planificada?".

O método de análise marxista ensina ir além da simples aparência dos fenômenos para apreender a sua essência. Não podemos julgar uma sociedade pelo que ela afirma ou pensa de si mesma. Temos de investigar bem mais fundo, ver as relações reais de produção e a realidade objetiva dessa sociedade. No caso soviético temos de enxergar além da inexistência formal e jurídica da propriedade privada para ver se ela existe de fato.

A essência do conceito de "propriedade" diz respeito à liberdade de dispor e de se beneficiar de algo. No caso da propriedade privada, ela se refere à existência de uma classe detentora dos meios de produção (a burguesia) que acumula riqueza explorando a mão-de-obra assalariada que a cria. Já vimos acima quem controla as decisões econômicas (dispõe) das empresas soviéticas, mas quem se beneficia da riqueza produzida pelos trabalhadores da URSS?

MEIOS DE ENRIQUECIMENTO DA NOVA BURGUESIA

Na verdade, os grandes beneficiados são os altos funcionários do Estado, da Economia e do Partido. Parte da riqueza é reinvestida na economia e acaba tragada no redemoinho da caça aos lucros. O resto vai encher os bolsos dessa nova burguesia do seguinte modo:

1. Através da ampliação do leque salarial

Os salários soviéticos são cada vez mais desiguais. Enquanto um operário da indústria tem um salário mínimo de 70 rublos por mês e na agricultura de 52 rublos, um membro da burocracia do Estado, do Partido, das Forças Armadas, um cientista etc pode ganhar 3, 4, 5 mil rublos mensais ou mais. Em 1966, por exemplo, o diretor da fábrica de lâmpadas de Moscou recebia mil rublos por mês, ao passo que o salário médio dos operários era de 60 a 70 rublos. Já no Azerbaidjão, o secretário da Fazenda Coletiva de Baku percebia um salário médio mensal de 1.075 rublos e os camponeses recebiam em média apenas 38 rublos.

"Uma lista incompleta dos carros de Brejnev, em 1975, incluía um Mercedes 900, um Mercedes 280, três Rolls Royces, um Citroitn SM e um Maserati”.

2. Através do complicado sistema de prêmios e bonificações

O grosso dos Fundos de Estímulo Material existentes nas empresas reverte para os próprios administradores e diretores. Segundo investigações e pesquisas realizadas no primeiro grupo de empresas que passou ao novo sistema da "Reforma Econômica", 46,6% dos fundos dessas unidades iam para os prêmios mensais dos administradores, 15,5% para os trabalhadores e o resto ficava para bônus anuais. Na firma de Engenharia Industrial de Zipetsk, o administrador, num mês, recebeu prêmios no valor de 1.300 rublos, igual ao salário regular de dois anos de um trabalhador! E a porcentagem dos lucros retidos nos Fundos de Estímulo aumenta em proporção direta à lucratividade da empresa. Assim, o diretor tem interesse pessoal direto em aumentar a todo custo os lucros da sua unidade.

3. Através das regalias sociais e mordomias

Os altos funcionários têm automóveis por conta do Estado, direito a mais de uma casa, possibilidade de adquirir em lojas especiais artigos de consumo não encontrados nos estabelecimentos destinados ao grande público etc. Os membros superiores do governo possuem "conta ilimitada" no Banco do Estado e quando querem comprar alguma coisa é só retirar os rublos que desejam. Uma lista incompleta dos carros de Brejnev, em 1975, incluía um Mercedes 900, um Mercedes 280, três RolIs Royces, um Citroen SM e um Maserati.

Por tudo que foi dito, não resta dúvida de que a propriedade estatal soviética se transformou numa forma de propriedade privada capitalista com alto grau de concentração. É claro que por ser um capitalismo oriundo da degeneração do socialismo, o novo sistema tem algumas características diferentes do de países de capitalismo clássico. Na União Soviética, a mais-valia não é apropriada de acordo com o capital de cada capitalista, mas distribuída conforme o posto ocupado pelo funcionário na hierarquia estatal, econômica etc. Apesar de todas as medidas descentralizadoras, a economia preserva um grau de centralização e planificação estatal maior do que nos países do Ocidente. Só mesmo na mais vulgar das definições de dicionário se pode identificar tal planificação com o socialismo. É esta definição que permite ao ministro Delfim Neto se caracterizar como um "socialista fabiano" e ao Brasil como um país "meio capitalista, meio socialista…”.

REINCORPORAÇÃO NA ECONOMIA CAPITALISTA MUNDIAL

A passagem do conjunto das empresas industriais às condições das Reformas de Kossiguin foi concluída em 1970. Em 1968 já havia sido efetuada a transferência do grosso das empresas, representando 81% dos lucros e 71% da produção. No campo, foi um pouco mais demorada e só ao final do nono quinquênio, em 1975, se concluiu a mudança de todas as fazendas estatais para o novo sistema.

Entrementes, a economia soviética sofreu um processo extremamente rápido de concentração capitalista da produção. Em 1960 existiam 200 mil empresas industriais. Em 1970 já eram apenas 50 mil! Em 1973, o governo aprovou um decreto obrigando as empresas a se unificarem em gigantescos aglomerados, autênticos trustes capitalistas operando segundo o sistema de autogestão financeira. Em princípios de 1976, eles já eram responsáveis por 24% da produção industrial. A conclusão da formação desses conglomerados estava prevista para o final do décimo quinquênio, em 1980.
A restauração capitalista na economia da URSS acarretou também sua inevitável reintegração na economia capitalista mundial. Um dos aspectos centrais dessa reintegração foi justamente a reabertura da economia soviética aos investimentos imperialistas. Em 1976, 17 multinacionais norte-americanas, 18 japonesas, 13 alemãs ocidentais, 20 francesas, 7 italianas etc tinham se instalado na União Soviética ou ali possuíam escritórios.

"Só de 1970 a 1975, a URSS importou instalações completas para quase duas mil unidades industriais”.

Essa penetração de capitais externos se dá de diversas formas. Uma, a co-produção, baseia-se no fornecimento de técnicas de gestão, licenças, máquinas etc, pelas firmas ocidentais, e no fornecimento de trabalhadores e instalações por parte dos monopólios estatais soviéticos. Outra, a aquisição de patentes e licenças de produção, leva à instalação de fábricas idênticas às do Ocidente, como no caso da FIAT. Só de 1970 a 1975, a URSS importou instalações completas para quase duas mil unidades industriais! E já cogita, a exemplo dos demais países do Leste europeu, de permitir a instalação de joint-ventures, empresas mistas de capital ocidental e soviético.

Além dos evidentes laços de dependência tecnológica e da participação das multinacionais na partilha da mais-valia extraída da classe operária soviética, este caminho leva ao crescente endividamento do país junto aos grandes centros financeiros do mundo capitalista. A dívida externa da URSS já se aproxima de 20 bilhões de dólares. Só em janeiro deste ano, 20 bancos da Alemanha Federal emprestaram-lhe 5,3 bilhões de dólares para a construção de um gasoduto.

Este é um lado da moeda. O outro, é a crescente exportação de capital excedente soviético que busca aplicação mais lucrativa no
exterior. No início da Reforma, algumas empresas, e às vezes alguns ministérios, declaravam que seus fundos de investimentos não podiam ser integralmente utilizados em nível interno nessas unidades, pois a lucratividade das inversões sofreria uma queda. Isto nada mais é do que a formação de um capital excedente que, por força da lógica voraz do lucro, acaba pressionando no sentido da expansão externa, buscando assegurar altos lucros em outros países à custa da espoliação de seus povos.

Esta política expansionista manifesta-se de diversas formas:

1. Através da concessão de créditos e "ajudas"
Os créditos soviéticos têm juros e termos de pagamento em longo prazo, aparentemente baixos (cerca de 2,5% ao ano, em 12 anos). Na verdade, porém, é muito mais do que isso. A URSS usa de artifício muito semelhante ao que fazem as multinacionais para burlar a lei de remessas de lucros aqui no Brasil. Assim, exige que os recursos sejam utilizados na compra de materiais soviéticos, os quais são vendidos aos países credores a preços bem superiores aos do mercado!
Em 65 mercadorias exportadas para o chamado mundo subdesenvolvido, 53 eram vendidas a preços mais altos para os países que recebiam créditos ou "ajuda". Na década de 1960, a União Soviética emprestou à Índia um bilhão e 200 milhões de dólares, 70% dos produtos vendidos àquele país, nesse período, foram de 20 a 30% mais caros que no mercado mundial! Por outro lado, os soviéticos também vinculam o pagamento dos créditos à compra de determinados produtos a preços bem abaixo dos do
mercado mundial. Assim, os preços fixados para os produtos indianos nos acordos Índia-URSS eram, na maior parte dos casos, 20-30% inferiores aos do mercado internacional. Desse modo a União Soviética acaba levando vantagem tanto na entrada como na saída!

2. Através do investimento de capital financeiro
Grande parte dos lucros conseguidos nas transações mencionadas nem sequer volta para a URSS. É aplicada em bancos soviéticos que atuam como quaisquer outros nos mercados financeiros do Ocidente. O Banco Narodny, de Moscou, possui em Londres um patrimônio de bens imóveis e móveis maior que o Banco da Irlanda. Em Paris, funciona o Banco Comercial para a Europa do Norte; em Zurique, o banco Vokohod e em Frankfurt, o Banco Leste/Oeste. Estes bancos emprestam agora a juros bastante mais elevados que os créditos iniciais. Agências soviéticas como a "Black Sea and Baltic Insmance Co.", em Londres, subsidiária da agência estatal de seguros da URSS GOSSTRAKH, ajudam até mesmo a segurar empresas americanas contra o perigo de expropriação em mais de 70 países dependentes! Ou seja, os social-imperialistas soviéticos acabam irmanados com o imperialismo norte-americano no mesmo objetivo de conter qualquer onda revolucionária!

"Em algumas dessas transações, a União Soviética jogou um papel de autêntico mercador intermediário".

3. Através da montagem de empresas mistas no exterior
Os soviéticos estão-se voltando para esse tipo de empreendimento com entusiasmo cada vez maior. Já montaram uma série de empreendimentos junto com outros governos capitalistas. Na viagem de Delfim Neto foram propostas várias iniciativas mistas com grandes empresários brasileiros. Hoje, calcula-se que existam 84 empresas multinacionais soviéticas, chamadas sociedades mistas, que atuam em 26 países.

4. Através das relações de troca desigual na economia mundial
A União Soviética reproduz em seu benefício a divisão internacional do trabalho imposta aos países dependentes tanto pelo imperialismo como por seu próprio desenvolvimento histórico. Um instrumento central nessa estratégia é tentar reorientar os padrões de comércio dos países do chamado Terceiro Mundo. E aqui muitas vezes os soviéticos pagam mais alto por alguns bens, inicialmente, para depois pagarem abaixo dos preços mundiais quando a dependência nas compras já estiver assegurada.
Assim, dos produtos exportados pela URSS, 63 vão tanto para países mais avançados, como para nações do chamado Terceiro Mundo. Destes artigos, 43 eram vendidos mais caro aos países menos desenvolvidos! Em 1965, estes pagaram de 15 a 25% mais por suas importações da URSS do que os mais adiantados pelos mesmos produtos. No que diz respeito a máquinas e ferramentas, a diferença era ainda maior – 34,7%. Desta maneira, o COMECON pulou de um déficit de 145 milhões de dólares em sua balança comercial com o chamado Terceiro Mundo, em 1960, para um superávit de 8,346 bilhões de dólares em 1977!

Em algumas dessas transações, a União Soviética jogou um papel de autêntico mercador intermediário! Em plena Guerra de Outubro contra Israel, em 1973, exigiu dos países árabes o pagamento imediato das armas que lhes tinha vendido. Os iraquianos aceitaram pagar exportando petróleo a preços bem reduzidos, no valor de 6 milhões de libras. Depois se descobriu que, mesmo antes do fornecimento, os soviéticos já tinham vendido esse petróleo à Alemanha Federal por 18 milhões de libras!

Os quatro itens citados, aliados à criação de fortes laços de dependência tecnológica, à co-participação soviética na hedionda corrida armamentista em nível mundial, bem como às relações de autêntica vassalagem existentes no interior do COMECON, dão a medida exata da política externa da URSS. É uma política socialista em palavras, mas expansionista, imperialista na sua essência. Uma política social-imperialista e agressiva. Os exemplos da Tchecoslováquia, Eritréia e Afeganistão estão aí para quem quiser ver até onde a União Soviética pode ir na sua disputa mundial com o imperialismo norte-americano. Por isso, não é de estranhar que ela entre agora nos planos entreguistas do governo brasileiro. E por "coincidência" o projeto de abertura e o general Figueiredo só têm recebido menções honrosas ultimamente nas transmissões da Rádio Moscou…

A conclusão de toda esta análise é clara. A primeira pátria do socialismo decididamente não é mais socialista. Tanto não é, que está sendo atingida em cheio pela crise que assola o sistema capitalista mundial. E, como em qualquer país capitalista que se preze, o peso da crise é descarregado sobre os ombros da população.

A SOCIEDADE SOVIÉTICA DEFRONTA-SE COM AS CHAGAS TÍPICAS
DO CAPITALISMO

Tem havido uma quebra acentuada no crescimento industrial da URSS. De uma média de 13% – a maior do mundo – de 1928 a 1955, ela desceu para 7,4%, de 1971 a 1975, e acabou ficando em 3,6% em 1980! Oficialmente não existe desemprego. Mas, conforme revela a revista soviética Smena, nos primeiros anos de 1970, só na indústria de construção, os trabalhadores ficavam em média 23 dias entre um emprego e outro, podendo estender-se em alguns casos, a seis meses e até um ano! O que é isto senão desemprego?! Embora não reconheçam formalmente o problema, os dirigentes soviéticos são obrigados a encará-lo na prática. Assim, no final dos anos 1960, foram abertos cerca de 80 "Birôs para a Utilização de Recursos Humanos”, que não passam de Agências de Desemprego com outro nome e buscam alocar mais rapidamente a mão-de-obra ociosa.

A agricultura também é sacudida por violenta crise. Já é conhecida a dependência soviética em relação à importação de cereais do Ocidente. No ano passado a produção agrícola global caiu 3%, a de grãos ficou 30 milhões de toneladas abaixo das metas pré-fixadas e diminuiu mesmo 15 milhões de toneladas em relação a 1979. Este quadro tem provocado um autêntico êxodo de camponeses em direção às cidades, de certo modo semelhante ao que vivemos no Brasil. Entre 1959 e 1970 mais de 16 mi1hões de pessoas emigraram das zonas rurais para os centros urbanos à medida que se agravavam as condições de vida no campo. Isto levou a uma autêntica explosão populacional em cidades como Moscou, que tem hoje 8 milhões de habitantes, e Leningrado, com 5 milhões. Fica evidente que a contradição entre o campo e a cidade se aguça cada vez mais na sociedade soviética!
Oficialmente também não existe inflação, mas na prática já foram feitas várias revisões do sistema de preços cedendo à pressão inflacionária. Além disso, o tabelamento dos preços nessa economia dominada pelo lucro leva ao fenômeno da "inflação fantasma”, caracterizada pela crescente escassez de produtos, pelo aumento vertiginoso nos depósitos de poupança e pelo florescimento de um vigoroso mercado negro. Assim, em 1972 e 1973, por exemplo, 1/3 das empresas no Cazaquistão ultrapassou os preços tabelados. Ao fixar os preços, os diretores aumentavam os custos de produção artificialmente a fim de obter maiores lucros!

Já não restam dúvidas. A sociedade soviética de hoje é afligida por todas as chagas típicas do capitalismo. E isto é motivo de grande consternação para as forças interessadas em conquistar a liberdade. Não é com ânimo leve que se constata a degeneração de uma revolução. Ainda mais quando se trata da União Soviética, precursora do socialismo no mundo e baluarte heróico da derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial!

As forças alinhadas com o imperialismo aproveitam-se disso para tentar desacreditar a teoria e os ideais comunistas perante os olhos das massas trabalhadoras do mundo. Afirmam que a experiência soviética, a chinesa, a iugoslava etc. descomprovam a validade dos enunciados básicos dos teóricos do socialismo científico. Não é verdade. A teoria marxista não está em crise. A raiz da degeneração da Revolução em todos esses países encontra-se exatamente na revisão dos princípios dessa teoria. O caso soviético comprova que os conceitos fundamentais do marxismo mantêm toda a sua atualidade. Isto deve servir de alento para todos os que sustentam ideais, anseios e aspirações transformadoras!

* Luís Fernandes é estudante de História na PUC do Rio de Janeiro e membro da atual diretoria da União Nacional dos Estudantes.

BIBLIOGRAFIA
Principais fontes utilizadas para este artigo:
FONTES SOVIÉTICAS:
1. VÁRIOS AUTORES, Manual de Economia Política. Socialismo, Progresso, Moscou, 1977.
2. VÁRIOS AUTORES, A Reforma Econômica Soviética: Progressos e Problemas, Progresso, Moscou 1972.
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4. LUKYANOV, Konstantin & TSVETKOV, Doris. Como a URSS Planifica sua Economia Nacional, Agência Novosti, Moscou 1973.
5. OMAROV, A. Organização da Indústria e Construção na URSS, Estampa, Lisboa 1976.
6. GVICHIANI, Germain. O Sistema de Organização e Gestão Socialista,
Vol. I, Moraes Editores, Lisboa 1977.
Foram usados também vários artigos de jornais e revistas soviéticas como Pravda, Trud, Izvestia, Economitschekaia Gazeta, Planovoie Khoziastvo, Voprosy Ekonomiki, Ekonomicheskie Nauki e Novy Mir.

FONTES ESTRANGEIRAS:
1. LEVINSON, Charles. Vodka-Cola, Editions Stok, Paris 1977.
2. "Social And Economic Inequality In The Soviet Union", M. E. Sharpe Inc. White Plains 1977.
3. "Conference on the Nature of the Soviet Union and its Tolein the World Today", vários trabalhos – New School Economics Society, Nova Iorque 1979.
Além destes foram utilizados vários artigos e publicações de menor importância.

EDIÇÃO 3, NOVEMBRO, 1981, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12