O inadequado dos conceitos do tradicional e do popular no folclore leva freqüentemente o pesquisador a situações muito embaraçosas. Como considerar tradicional a diversão coletiva que transmite a opinião popular sobre fatos do dia, numa constante readaptação às novas formas assumidas pela sociedade? Ou, ainda, como considerar tradicional o dado folclórico que, nascido de certas condições sociais, permanece, ao mesmo tempo em que permanecem inalteradas essas condições? A riqueza de imaginação, a força criadora e a sede de justiça do povo não pesam no balanço geral, para os tratadistas. O povo é apenas um depositário de tradições… Mais curiosa, e às vezes mesmo ridícula, é a caracterização do popular no folclore. Figura-se o povo, não numa situação transitória, mas em repouso. Ora, se encararmos o folclore na sua dinâmica, veremos que os fenômenos do populário têm, não apenas a marca do passado, mas o sinal do presente – e do futuro.

Este ponto de vista pode ser provado com exemplos tomados a folguedos populares brasileiros.

O CONCEITO DE TRADICIONAL

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A despeito dos progressos científicos de todo um século, continua a ser muito cara aos exegetas dos fatos folclóricos uma espécie de limitação do folclore ao antigo, ao arcaico, ao tradicional.
Ainda não ultrapassamos, na prática, o traditional learning de William John Thoms. Podemos dizer que, em geral, ainda concebemos o folclore como o estudo das "antigüidades populares", como o fazia a escola francesa, ou das sobrevivências, na sociedade moderna, de "crenças, costumes e tradições arcaicos", como queria Sir Laurence Gomme; que ainda o consideramos a "ciência da tradição", repetindo Hartland, Sébillot e tantos outros; que estamos dispostos a aceitar como "resíduos" de costumes antigos, como dizia Vilfredo Pareto, ou como "testemunhos e exemplos de um antigo estado moral e intelectual", como definiu Tylor as formas de expressão características das camadas populares.

“(…) o folclore para os tratadistas constitui apenas um fenômeno secundário, uma reminiscência destinada a desaparecer (…). No máximo atribuem-lhe a função de revigorante da cultura”.

Contra esta passividade do tradicional tomaram posição, entre outros, Augusto Raul Cortazar, Iuri Sokolov e os folcloristas soviéticos em geral e Ruth Benedict. Saintyves mesmo chegou a aproximar-se de uma concepção dinâmica do folclore, mas não soube tirar de suas observações as lições que podia.

Ainda assim, e apesar dessas vozes discordantes, o folclore, para os tratadistas, constitui apenas um fenômeno secundário, uma reminiscência destinada a desaparecer… No máximo, atribuem-lhe a função de "revigorante da cultura" (Haddon) ou de pista para o estudo de usos e costumes do passado. Parece muito cômoda, muito conveniente, esta concepção parada, estática, imóvel, do folclore.
Resta saber se concorda com a realidade.

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Contentam-se os tratadistas com a verificação de que somente o vulgus ainda tem fé nas tradições e nos costumes antigos, esquecendo, talvez deliberadamente, uma indagação fundamental – a de por que sobrevivem essas formas que consideram arcaicas.

Se esta indagação não lhes ocorre, podemos atribuir este fato a duas causas principais: o desconhecimento da maneira por que funciona a sociedade em que vivemos e, em conseqüência, o desconhecimento da dialética social. São causas conexas, portanto. Os tratadistas, com efeito, argumentam considerando a sociedade moderna tal como está, levando em conta, certamente, seu nascimento e seu desenvolvimento, que já fazem parte da história, mas admitem, por omissão, que esta sociedade permaneça para sempre, sem jamais ceder lugar a outras formas de organização da vida humana. Daí que, por vários motivos, alguns de ordem política, prefiram conceber a sociedade humana, e muito especialmente a sociedade burguesa, em repouso e em equilíbrio. Nesta perspectiva o folclore tem de ser, naturalmente, passivo – uma simples recordação de tempos e costumes já superados.

Se, porém, ao mesmo tempo em que fazemos a pesquisa folclórica, aprofundamos a análise da sociedade, de que o folclore é uma das expressões mais significativas, notaremos a permanência de condições gerais, econômicas, sociais e políticas, que favorecem a sobrevivência das concepções, usos e costumes de que se nutre o folclore. Com efeito, as formas folclóricas correspondem a determinadas formas sociais e se modificam ou desaparecem de acordo com esta correspondência. O folclore faz parte da superestrutura ideológica da sociedade, embora seja a camada mais inferior dessa superestrutura.

Ninguém se animou ainda a negar o valor funcional do folclore. Ora, as funções sociais que preenchem o folclore são a negação mais cabal da passividade com que o caracterizam os tratadistas.

“Ninguém se animou ainda a negar o valor funcional do folclore. Ora, as funções sociais que preenchem o folclore são a negação mais cabal da passividade com que o caracterizam os tratadistas”.

Tomamos como ponto de referência a cultura burguesa quando consideramos antigo, arcaico ou tradicional o dado folclórico.

Embora saibamos que a ciência do folclore, nascida nos anos de esplendor da sociedade burguesa, não tinha outra alternativa, devido – como salientou Artur Ramos – ao acentuado etnocentrismo do europeu, sabemos também que, empenhada na discussão dos aspectos particulares da cultura que caíam sob o seu domínio, esta nova ciência descurou a observação e o estudo da cultura geral. De maneira que a cultura burguesa, como ponto de referência, passou a ser não a cultura burguesa num determinado momento da sua evolução, mas uma cultura burguesa ideal, que historicamente não existe em parte alguma. O dado folclórico se explica em função da cultura burguesa, mas exatamente em que estágio do seu desenvolvimento? Os tratadistas, incapazes de ver a sociedade em movimento, perderam de vista a circunstância de que essa cultura burguesa pode dominar apenas em alguns pontos do território nacional ou ser apenas uma cultura de fachada ou de cúpula, que nem mesmo atinge uma percentagem ponderável da camada social que se encontra no Poder e, portanto, na posse dos meios com que se educar.

Se, por exemplo, as manifestações coletivas do folclore se verificam no litoral paraense, no interior da Paraíba, no Recôncavo baiano, zonas de notório atraso econômico, de pobreza crônica do povo, de condições pré-capitalistas de existência, como considerá-las tradicionais, se correspondem, exatamente, às condições do ambiente? Parece muito significativo que o bumba-meu-boi se registre em localidades não pecuárias, que dependem de outros centros para o seu abastecimento de carne, o que transforma o boi num bem inestimável, ou que as congadas tenham lugar em regiões cobertas por latifúndios, de lavoura e criação rudimentares, em que o trabalhador está à mercê do senhor de terras, como o escravo de outrora. Haverá muito poucos, entre participantes e circunstantes, que se valham ou se beneficiem da cultura burguesa. Este é o caso, por exemplo, do mutirão. Com que direito poderemos considerar tradicionais, em relação à cultura burguesa, fenômeno desconhecido na sua área, estas formas populares de expressão?

Tomemos outros exemplos. Ortodoxamente, as cheganças sobreviveriam às condições gerais que lhes deram causa. Ora, estas diversões são hoje quase exclusivamente diversões de pescadores, em pequenas aldeias do litoral em que os tipos de barco e a segurança contra as incertezas do mar são os mais primitivos, os mais aproximados do século XVI. Teoricamente, também, o bumba-meu-boi e as congadas estariam ultrapassados. Poderemos, em sã consciência, dizer que se tenham alterado substancialmente as condições quase feudais em que sempre se desenvolveram a agricultura e a pecuária brasileiras, fonte do bumba-meu-boi, ou o caráter oligárquico do Estado nacional, responsável, em grande parte, pelas congadas?

“(…) o folclore não deve ser separado do conjunto da cultura de que é um dos elementos – da cultura particular, nacional ou regional, e não da cultura burguesa ideal.”
 
Tylor dizia que a "civilização" – referia-se, evidentemente, à cultura burguesa, já que o conceito de civilização é um conceito burguês – "é uma planta muito mais propagada do que desenvolvida". Com efeito, até que ponto, ou a partir de que ponto, podemos considerar "civilizada" uma determinada sociedade? Até onde a parte da sociedade que dispõe dos meios de se educar conhece e utiliza, habitualmente, os benefícios da cultura burguesa? Até que ponto as formas que consideramos tradicionais fazem parte da bagagem intelectual das camadas dominantes que, do ponto de vista formal, deveriam ser as vanguardeiras da "civilização"? Há alguns anos, Ruth Benedict escreveu que o folclore, mais do que qualquer outro traço cultural, revela o precário e o recente (recency) das atitudes racionalistas dos modernos grupos urbanos – os filhos bem-amados da cultura burguesa.
Temos de concordar com Artur Ramos em que o folclore "não deve ser separado do conjunto da cultura de que é um dos elementos" – da cultura particular, nacional ou regional e não da cultura burguesa ideal. 4

Há, realmente, correspondência entre as formas de expressão populares, não eruditas, e as formas cultas – reflexo das diferenças de nível econômico, social e político entre as classes na sociedade.
Em todos os estados baseados na divisão da sociedade em classes, a educação e a cultura são privilégio, e às vezes monopólio, das classes dominantes. As ciências, as letras e as artes são um luxo que só a riqueza pode dar. Entre nós, por exemplo, o recenseamento de 1940 encontrou 51,64% de analfabetos na população brasileira de mais de cinco anos, inclusive 26,31% entre os adultos. Sem recursos para se instruir, nem lazer para se educar, nada mais natural que o povo se valha de formas rudimentares de expressão que, embora atrasadas em relação à cultura oficialmente dominante, são as formas que presentemente se encontram a seu alcance.

Lembremos Saintyves, segundo o qual, o folclore "não teria mais lugar" num povo se todos os indivíduos dispusessem de uma educação superior, que os libertasse de todos os preconceitos e superstições, acrescentando, porém: "tais povos não existem ainda".

As formas que o folclore reveste são em geral formas já abandonadas pelas classes superiores – a quadra e a sextilha, o auto, a ronda. Este fato, origem de muitas confusões quanto ao caráter tradicional do folclore, decorre de duas causas principais: a lentidão com que se modifica a forma de expressão em relação àquilo que exprime e a circunstância de que os ideais da classe dominante foram, algum dia, os ideais de todo o povo, embora permaneçam apenas no seio dos setores politicamente mais atrasados.

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O objeto do folclore nada tem de morto, parado ou imutável.

Os tratadistas já o haviam reconhecido, mas de maneira formal, admitindo somente como folclore as formas atuais de expressão popular – seja "o fato vivo, direto", de Van Gennep, seja o "bem popular" de Ismael Mova. Quanto ao funcionamento interno do folclore, as teorias dos empréstimos de Benfey e das transferências de Varagnac, processos aquisitivo e desintegrativo, não saíram da mecânica – eram os mesmos movimentos centrípeto e centrífugo da matéria… A teoria mais recente, que concebe o folclore como "um fenômeno social", portanto, sujeito aos processos comuns a esses fenômenos, se deve a Boas e especialmente a Ruth Benedict. De acordo com esta nova concepção, o fato folclórico se individualiza no processo da sua incorporação à cultura local, processo que envolve a aceitação do pormenor cultural próprio à região e, por outro lado, se desintegra e se recompõe ou recombina à medida que passa de uma a outra área, de um a outro povo. Os dois etnólogos, entretanto, não vão mais longe nem saem da mecânica.

Com efeito, uma vez aceito pela cultura local o dado folclórico que, por sua vez, teve de aceitar o pormenor cultural para ser aceito, que acontece? O processo não pára. As relações entre as formas populares, folclóricas, e as formas eruditas variarão de acordo com as flutuações específicas, quantitativas e qualitativas dos grupos na sociedade.

“Os reis do Congo, em moda sob a escravidão, que ainda hoje se pode encontrar em alguns pontos do território nacional (…) indicam a intromissão de elementos não populares, bem distanciada do vulgus para desviar e corromper as diversões coletivas do povo”.

Outros fatores entram no quadro geral, mas sujeitos ao mesmo processo dinâmico. Sabemos que o campo conserva melhor as formas de expressão e as diversões populares, expulsas paulatinamente da cidade pelo progresso econômico, social e político. Sabemos que as mulheres, e mais ainda as crianças, são as grandes disseminadoras do folclore. Sabemos que o ambiente geográfico local influi sobre o dado folclórico, seja limitando-o, seja acrescentando-lhe novos aspectos, seja modificando a sua fisionomia. Sabemos que a interferência do elemento semierudito – semi-alfabetizado ficaria melhor, no caso do Brasil – prejudica a espontaneidade da manifestação folclórica, tal como podemos ver nos bailes pastoris. As influências mais diversas atuam, realmente, sobre o fato folclórico, submetendo-o a uma série de processos em que a cada ação corresponde determinada reação. Estas influências, em sociedades embrionárias como a nossa, em que a estratificação das classes está consideravelmente atrasada, provêm das fontes mais diversas – além das fontes normais, as forças elementares da sociedade. Os reis do Congo, em moda sob a escravidão, que ainda hoje se podem encontrar em alguns pontos do território nacional, e as igrejas do Rosário dos Pretos, muitas delas ainda existentes – e destes pontos de partida vêm as congadas e as taiêras – indicam a intromissão de elementos não populares, bem distanciados do vulgus, para desviar e corromper as diversões coletivas do povo. O caso mais flagrante dessa interferência não popular parece ser o dos quilombos de Alagoas, que constituem uma advertência prévia contra os desejos de fuga dos escravos. Por este caminho se vai até a repressão oficial – seja para suprimir ou enquadrar em certos limites a diversão popular, seja para eliminar os indivíduos empenhados na sua execução, na vã esperança de riscá-la da sociedade. Foi o que se deu, com certo êxito, com a capoeira de Angola.

Saintyves reconheceu a importância destas influências, quando advertiu: "A vida popular (…), embora seja uma vida particular, é difusa em toda a vida civilizada. Não se deve considerá-la como uma atividade em compartimento estanque. Certamente, desenvolve-se no quadro constrigente da vida oficial, mas reage, por sua vez, sobre esta (…) O estudo das sociedades civilizadas requer (…) o estudo aprofundado do folclore, das maneiras por que o povo reage às sugestões que lhe são feitas, dos meios empregados para fazer com que as aceite, para criar nele novas maneiras de agir, de se divertir e de trabalhar, novos modos de crer e de pensar". Falta, aqui, a outra face da medalha – as maneiras por que as camadas populares levam as classes dirigentes a tolerar e mesmo a aceitar e incorporar ao seu cabedal as formas de expressão que lhes são próprias. Temos, assim, que o folclore, como traço cultural, participa de um processo geral que envolve, permanentemente, mecanismos internos, aquisitivos, desintegrativos e de recomposição e recombinação, e movimentos externos, que tomam forma agressiva ou acomodatícia que, por sua vez, ocasionam novos processos internos. Ora, como o da modificação na parte se traduz em modificação no todo, o folclore, modificando-se sob a ação geral das várias forças, espontâneas e dirigidas, da sociedade, por sua vez, provoca modificações no todo, que é a sociedade. Estas modificações, resultantes do primeiro choque, produzem novas modificações no folclore, e assim por diante.

O folclore é, portanto, dinâmico na sua essência – está em constante transformação, dialeticamente é e não é o mesmo fenômeno ao mesmo tempo, como em geral acontece com todos os fenômenos sociais.

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Em constante transformação – eis como devemos encarar o fato folclórico. Evidentemente, esta situação dinâmica supõe ação e reação, tanto no sentido vertical, entre a cúpula e a base, como no sentido horizontal, entre os elementos genuinamente interessados no folclore – um tipo de relação prática fundamental.

Estas ações e reações são recíprocas e simultâneas e sempre dão em resultado um terceiro produto, uma síntese que, dependendo do vigor dos choques contrários, pode ser completamente diferente dos elementos que a formaram. O dado folclórico, pela sua simples existência, pode criar na sociedade oficial a tolerância ou a aversão que, por sua vez, podem criar nas camadas populares a acomodação ao ponto de vista oficial ou a obstinação, o subterfúgio ou a suavização da diversão popular. Este jogo de influências modifica o folclore e a sociedade, num sentido que só a prática dirá se é melhor ou pior, se é superior ou inferior, se é progressista ou retrógrado, mas, num e noutro caso, em consequência de cada ação e de cada reação, o dado folclórico e a sociedade são e não são os mesmos ao mesmo tempo, pois novas ações e reações são provocadas pelas primeiras e, por sua vez, dão nascimento a outras… O processo dialético se desenvolve ao infinito. Através dele estão desaparecendo as congadas e se reafirma a capoeira de Angola ou surgem novos produtos, novas sínteses – os reis do Congo dão os maracatus e os afoxés, a capoeira dá o passo… Este processo explica o sem-número de incidentes que mascaram o argumento fundamental do bumba-meu-boi e a supressão da parte do auto em que se retalha e divide o boi entre várias pessoas numa cidade como o Recife, onde os conflitos sociais têm assumido caráter bem agudo, mas explica também a representação nua e crua da morte e da ressurreição do boi, e a sua repartição, em outros pontos do território nacional.

A vida social cria o folclore, como cria as formas eruditas de expressão, à base da vida material, das relações de produção que se formam entre os homens – no nosso caso, na sociedade burguesa. O folclore e as formas eruditas exprimem, o primeiro empiricamente, as segundas cientificamente, essas relações de produção – e os antagonismos sociais que engendram. E esses antagonismos, seja qual for a forma que revistam, são um fenômeno do presente, como o foram do passado e serão do futuro, mas um fenômeno sempre novo, e não remotamente tradicional.

CONCLUSÕES

Em suma, os argumentos sugeridos pela melhor compreensão dos fenômenos folclóricos e, secundariamente, os exemplos citados nos autorizam a concluir que:
a) O folclore reflete, à sua maneira, as relações de produção criadas entre os homens e, em consequência, se modifica à medida que variam, na forma e na substância, essas relações;
b) esse processo é essencialmente dinâmico, dialético, produto de ações e reações recíprocas e simultâneas, e sobretudo permanentes, de maneira que o qualificativo de tradicional só pode ser aplicado às formas revestidas pelo folclore, já que o seu conteúdo se atualiza constantemente, por efeito dessas mesmas ações e reações; e
c) por ser uma interpretação da sociedade e, por isso mesmo, um modo de influir sobre ela – uma atitude política – o folclore tem implicações no futuro, como instrumento rudimentar de reivindicação social.
Tais são os postulados fundamentais para uma dinâmica do folclore.

EDIÇÃO 4, MAIO, 1982, PÁGINAS 41, 42, 43, 44, 45, 46