No ano de 1945 o povo estava nas ruas exigindo a redemocratização do Brasil. O nazi-fascismo fora derrotado na Segunda Guerra Mundial e abriam-se perspectivas em escala planetária para o avanço da democracia. O Estado Novo de Getúlio vivia os seus últimos dias. A Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937 deveria ser substituída por outra que correspondesse aos anseios democráticos dos brasileiros. A palavra-de-ordem de uma nova Constituição tomava conta de todos os setores democráticos organizados. E a exigência da elaboração de uma nova constituinte que elaborasse uma nova Carta capaz de ordenar juridicamente a sociedade civil que saía da ditadura militar sensibilizou as camadas mais representativas da consciência política nacional.

A intelectualidade democrática neste contexto tomou posição aberta a favor da convocação de uma constituinte livre e soberana através da qual aquelas garantias que a Carta outorgada em 1937 tirara ao povo brasileiro fossem a ele restituídas. Escritores, cientistas, artistas, representantes de todos os setores da intelectualidade uniram-se às demais classes e camadas que clamavam e exigiam uma nova Constituição. À frente deles estava a intelectualidade comunista que, juntamente com membros das demais tendências políticas, liderava a luta pela convocação de uma constituinte livre e soberana.
Não ficou indiferente a esse movimento o grande romancista e escritor Graciliano Ramos. Como militante e democrata participou ativamente da campanha de convocação de uma constituinte que desse ao povo uma nova Constituição. Em várias ocasiões e oportunidades manifestou-se publicamente sobre o assunto. O texto que transcrevemos abaixo foi lido por ele em uma destas manifestações. Pela sua coerência política e oportunidade, resolvemos transcrevê-lo para conhecimento dos leitores. O texto que tem atualidade absoluta em face da nossa atual situação política e da necessidade de reencontrarmos a legalidade democrática que nos foi tirada pela ditadura militar.

* Clóvis Moura: Presidente do IBEA. Autor de diversos livros sobre História. “Senhoras

Senhores
Camaradas,

Exigimos uma Assembléia Constituinte livremente eleita – é preciso dizer isto, repetir isto sempre, em todos os recantos do País. Esta reclamação impõe-se, entra nas consciências, e os políticos que em princípio desejavam a Constituinte, e depois não a desejavam, começam a desejá-la de novo, mas de maneira singular: como dádiva de um presidente escolhido na vigência de leis que se fazem, desfazem, refazem, voltam a desfazer-se. Louvam um presente, coisa outorgada, ouço mais ou menos a reprodução do que sucedeu em 1937, com mais aparato, máscara de legitimidade.

É contra isso que protestamos. Descontenta-nos a idéia de, encobertos nos remendos da Carta mais fascista ainda existente, remendos cada vez mais encolhidos e esgarçados, eleger um ditador, confiantes nesta promessa generosa: receberemos aquilo que de fato nos pertence. Realmente, se nos falta uma Constituição, se a que nos rege é apenas um simulacro de Constituição, só poderemos eleger um tirano, e nenhuma vantagem haverá nisso, embora ele seja a melhor das pessoas, absolutamente digna. Se aceitássemos tal arranjo, ficaríamos a depender dessa estranha magnanimidade, a depender de um indivíduo, situação que a experiência nos diz ser por todas as razões inconveniente. Que nos alvitra um dos candidatos?

– Escolham-me, e eu permitirei que a Câmara edifique uma espécie de lei básica.
Mas donde vem essa linguagem? Estamos cansados de ouvir salvadores vaidosos que nos trituram a paciência, nos amolam com o pronomezinho irritante: eu, eu, eu, eu. Não temos a ingenuidade necessária para confiar nos messias que se arrogam o direito de conduzir as massas arbitrariamente e nos concedem liberalidades no papel e em discursos, arengam com outros messias, uma lavagem pública de roupa suja, como se tivéssemos interesse em remexer mazelas pessoais, e não nos entendem, não nos conhecem, nunca nos entenderão e nunca nos conhecerão. Afastaram-se em demasia de nos, nem percebem que acumulamos decepções sobre decepções, anos, século de decepções, e vêm repisar-nos cantigas velhas, caducas, sugeridas por um individualismo estreito e mesquinho.

Por que haveríamos de aceitar a concessão que nos propõem? Ela não se basearia naquele velho privilégio real, já ninguém possui a faculdade que as religiões criaram de conceder ao povo isto ou aquilo: seria uma consequência da nossa vontade expressa pelo voto. Esta vontade é a nossa arma, e não nos resolvemos a aliená-la, numa credulidade talvez fatal.

– Eu farei, asseveram estadistas capengas, fechando os olhos a algumas revoluções, que apesar de tudo se realizaram neste pobre mundo.

A nossa linguagem é outra. Nada pedimos, pois a criatura mais honesta se achará em dificuldades se no momento de saldar as suas contas estiver de mãos vazias. O cumprimento de certas obrigações não depende dos bons propósitos do devedor. E aí não há exatamente dívida: há uma oferta, de execução duvidosa.

É natural que a recusemos, digamos claramente o nosso intuito. Empregaremos todos os esforços por uma Assembléia Constituinte livremente eleita. Só ela nos dará tranquilidade, a paz que a reação procura estorvar por vários meios, forjando intrigas, semeando mentiras, estabelecendo a desordem, fingindo corrigi-la e atirando nos espíritos o gérmen de novas desordens, porque é dessas desarmonias que vive a reação. Desejamos trabalhar em sossego, livres das ameaças estúpidas que há dez anos tornaram isto uma senzala. O nosso pequenino fascismo tupinambá encheu os cárceres e o campo de concentração da Ilha Grande, meteu neles sujeitos inofensivos, até devotos do padre Cícero, gente de penitência e rosários, pobres, seres tímidos, que nos perguntavam com surpresa verdadeira:

– Por que é que estamos presos?

Usaremos todas as nossas forças para que essas infâmias não se repitam. E para que elas não se repitam, exigimos uma Assembléia Constituinte livremente eleita.
Fascistas confessos, de cruz gamada e mãos torpes, são agora uns inocentinhos bem comportados, zumbem com sorriso de sujos:

– Não temos nada com isso.
Profissionais da política malandra, que recebiam instruções da embaixada alemã, da embaixada italiana, possibilitaram o golpe de novembro e se beneficiaram com ele, purificaram-se, estão alheios a indecências e apontam um culpado.
– Foi ele.

E jornalistas que aplaudiram as injustiças mais terríveis, as violências mais ferozes, também se distanciaram do amo, cospem no prato, arranjam um bode expiatório.
Desses grupos, mais ou menos avariados, surgem cavaleiros andantes, Quixotes resolvidos a pôr as coisas nos eixos e desfazer agravos. É intuitivo que não acreditamos neles. Impossível responsabilizarmos um homem só pelas misérias que choveram sobre nós. Há muitos autores delas – e os piores são os que hoje simulam essa pureza tardia e querem democratizar o País de cima para baixo. É o que sempre fizeram. Na democracia deles o povo não entra. Fugimos dessa mistificação. E reclamamos com insistência, gritamos cem vezes, mil vezes, exibindo esta necessidade: uma Assembléia Constituinte livremente eleita”.

EDIÇÃO 5, MARÇO, 1983, PÁGINAS 44, 45, 46