Desnutrição: problema mundial de Saúde Pública

A desnutrição, expressão biológica do fenômeno social da fome, é considerada indiscutivelmente como um dos maiores, senão o maior, problema mundial de Saúde Pública. Em 1960, por ocasião do lançamento da campanha mundial contra a fome pela OMS (Organização Mundial de Saúde), o problema afetava mais de 50% da população do planeta.

Recentemente, o total de indivíduos que apresentam deficiência calórica no mundo varia entre 360 e 500 milhões, segundo dados do Banco Mundial para 1976 e outros apresentados na Conferência Mundial de Alimentação em 1974 (1). Particularmente são atingidos os países "subdesenvolvidos" onde a prevalência da desnutrição infantil chega a 70%, segundo estimativa de Berg (2).

A desnutrição atinge a saúde dos indivíduos, por um lado produzindo as chamadas "doenças carenciais" propriamente ditas e, por outro, contribuindo para a elevação da prevalência das doenças infecciosas e parasitárias. O indivíduo desnutrido tem sua resistência reduzida devido, entre outros fatores, à redução na capacidade do organismo na formação de anticorpos específicos. Como exemplo da maior susceptibilidade à infecção por parte dos pacientes com déficit nutricional tem-se a alta frequência das diarréias agudas e doenças agudas das vias respiratórias superiores entre crianças desnutridas.

A repercussão deste fenômeno sobre a mortalidade infantil ficou bem evidenciada no estudo de Puffer e Serrano (3), onde a desnutrição aparece como causa isolada ou associada de óbito em menores de um ano em cerca de 60% dos casos.

Ao lado da constatação da extensão e gravidade do problema, observa-se uma nítida tendência ao agravamento da situação nutricional tanto no Brasil como em escala mundial nas últimas décadas.
A situação entre nós: evolução do problema no Brasil e em Salvador

O diagnóstico da situação nutricional em nosso meio e sua evolução histórica nas últimas décadas defrontam-se com uma ausência de dados comparáveis neste período. No entanto, aqueles disponíveis permitem uma aproximação razoável com o quadro real.

Os indicadores do estado nutricional mais utilizados nesses estudos são os referentes à quantidade de calorias ingeridas (ingesta calórica). As principais fontes de energia são os hidratos de carbono (açúcar), as gorduras e em menor grau as proteínas, sendo que as necessidades diárias de energias variam com a idade, sexo e atividade. Por exemplo, urna criança entre 7 e 9 anos necessita de 2.190 cal/dia que podem ser obtidas através de ingestão de cereais, leguminosas e/ou variedades de açúcar (mel, melaço etc). Estes são, no entanto, indicadores indiretos do estado nutricional que, embora se correlacionem bem com a antropometria (avaliação das relações entre peso e idade e peso e altura), apresentam problemas devido à tendenciosidade do observador, memória pobre e amostragem errada da dieta.

Existem dois estudos importantes em nível nacional que serão tomados como referência. O primeiro é a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 1962, que investigou o consumo alimentar aferindo o estado nutricional da população a partir da ingesta calórica. Foram entrevistadas 7.309 famílias da área urbana e 1.816 da área rural, sendo retiradas amostras de 8 capitais (4). O segundo é o ENDEF (Estudo Nacional da Despesa Familiar) de 1975, realizado pelo IBGE, mais completo que o primeiro, pois além de averiguar a ingesta calórica traz dados antropométricos para a avaliação nutricional da população brasileira. Infelizmente, apesar de já decorrerem quase 8 anos da realização deste estudo, a totalidade dos dados ainda não foi publicada, limitando assim algumas avaliações.

A análise dos dados revela um quadro estarrecedor: segundo o estudo da Fundação Getúlio Vargas para 1962, 27 milhões de brasileiros, ou seja, 38,5% da população, exibiam ingesta calórica insuficiente, sendo que o problema afetava 53,7% da população urbana e 31,1% da população rural (TABELA I). Já em 1975, segundo resultados do ENDEF, cerca de 67,2% da população urbana e 63,4% da população rural eram atingidos, o que constitui uma clara indicação do agravamento do problema, a despeito das diferenças metodológicas entre os dois estudos (TABELA II). Tabelas I (p. 32)
Consumidores com ingesta calórica diária “per capita” abaixo do padrão de 2.450 calorias no Brasil e nas grandes regiões, 1960

Fonte: Fundação Getúlio Vargas

Tabela II (p. 32)
Estimativa de população, com dieta adequada em 1975
Fonte: Ministério da Saúde, Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inam), Situação Alimentar e Nutricional do Brasil, Brasília, 1981.

Verifica-se, através dos dados disponíveis, tanto para o estado da Bahia como para a cidade de Salvador, um comportamento semelhante. A média diária per capita de ingesta calórica para o estado, em 1962, era de 2.020 calorias, bastante abaixo do mínimo requerido conforme padrão utilizado no próprio inquérito da FGV, ou seja, 2.450 cal/pessoal/dia.

A distribuição da desnutrição não é casual, atingindo preferencialmente as camadas que recebem menos de dois salários-mínimos. Das famílias de área urbana do nordeste 75,77% situam-se nesta faixa de renda, estando, portanto, sujeitas à fome. Em 1962, Singer (5) constatou que 70% da população da área metropolitana de Salvador sofriam de déficit calórico e 16,5% de déficit protéico, a partir dos mesmos dados da FGV.

Em 1975, o consumo calórico médio per capita em Salvador era de 1.755 cal/pessoa/dia, de acordo com o ENDEF. Persiste a nítida relação entre ingesta calórica e classe de renda, sendo que a quantidade de calorias por comensal/dia para as famílias, cujo rendimento é inferior a um salário-mínimo, é apenas a necessária para manter o metabolismo basal de um homem adulto entre 30 e 32 anos ou de uma mulher entre 34 e 46 anos, de acordo com padrões da FAO.

A análise de outros indicadores indiretos também reforça a tendência apontada. Os efeitos da concentração de rendas e da desvalorização do salário real sobre o estado nutricional são evidenciados pelo aumento das taxas de mortalidade infantil.

“Desse modo, 84% da população economicamente ativa da Bahia em 1980 estariam sujeitos às formas graves e moderadas da desnutrição”.

A desnutrição em suas formas grave e moderada só desaparece nas faixas de renda superiores a 1,5 salários-mínimos per capita, o que corresponde a uma renda familiar de 7,5 salários-mínimos mensais. Desse modo, 84% da população economicamente ativa da Bahia, em 1980, estariam sujeitos às formas grave e moderada da desnutrição.

Estes dados correlacionam-se com os resultados do ENDEF, segundo os quais as famílias com renda inferior a 8 salários-mínimos apresentaram ingesta calórica média de 1.813 calorias para o Nordeste, sendo na cidade de Salvador a situação mais grave, considerando que a ingesta calórica média para as famílias com renda inferior a 7 salários é de 1.969 calorias.

O conjunto de dados disponíveis, da década de 1960 até o presente momento para a população brasileira e particularmente para a de Salvador, revela a existência de grave problema nutricional. Contingentes populacionais consideráveis apresentam a problemática da fome, inclusive formas graves e moderadas de desnutrição.

Histórico e conceituação

As deficiências nutricionais parecem ter inexistido nos primórdios da civilização. As comunidades primitivas viviam de caça, pesca e coleta de frutos silvestres, sendo que episódios de fome só ocorriam por ocasião de flagelos naturais como as secas. Os primeiros relatos das deficiências nutricionais clássicas (pelagra, escorbuto, raquitismo) referem-se a situações excepcionais como guerras, isolamento e prisão.

No que diz respeito à desnutrição protéico-calórica, as primeiras descrições de marasmo (forma clínica da desnutrição grave), datam do século XVI e coincidem com o período mercantilista e o início do processo de urbanização acelerada. O produtor isolado (artesão) começa a ser separado de seus meios de produção com o advento da manufatura e a obtenção de alimentos passa a se dar, então, através do salário e via mercado. Já o quadro conhecido como Kwashiokor (outra forma clínica da desnutrição grave), embora existam referências na literatura desde 1848, é apenas descrito em 1931 pela doutora Cicely WilIiams, que estabelece a suposta relação causal entre este e a deficiência protéica na alimentação.

Desde então a desnutrição aparece na literatura médica especializada como doença carencial, estudada nas suas formas clínicas graves, moderadas e leves, estas últimas a partir da introdução do método antropométrico de Gomez na década de 1940.

Estas definições restringem-se ao âmbito do biológico, referindo-se a aspectos da patogênese de uma pequena parcela do espectro das deficiências nutricionais, ou seja, aos estágios mais avançados quando alterações clínicas, bioquímicas e/ou anatômicas são identificáveis.

Outras abordagens têm indicado que o fenômeno em questão extrapola os limites estritamente biológicos, devendo ser investigado nas suas relações com a estrutura social. Por este motivo, o termo fome vem sendo empregado por alguns autores e pela própria Organização Mundial de Saúde. Na verdade, a abordagem biológica do fenômeno e a própria utilização preferencial do termo desnutrição revelam uma tentativa de dissimulação da sua natureza social, bem caracterizada pela expressão fome, que traduz as desigualdades sociais existentes na raiz do problema. Josué de Castro, em 1946, já considerava que a escassez de estudos sobre o assunto na literatura mundial na década de 1940 refletia o fato de ser a fome um dos tabus da civilização ocidental. Os interesses econômicos das minorias dominantes, os preconceitos morais e as implicações explosivas econômicas e sociais eram os fatores apontados pelo autor como responsáveis pelo escamoteamento do fenômeno da fome (6).

No entanto, fome e desnutrição não são termos superponíveis. A fome pode ser compreendida como qualquer situação onde haja ingesta insuficiente de alimentos, aguda ou crônica, referindo-se desta forma a todo o espectro das deficiências nutricionais. Já a desnutrição é um conceito adequado para descrever as manifestações clínicas e patológicas que o organismo pode apresentar quando submetido à ausência crônica de alimentos.

A concepção multicausal da fome

A existência de diversos fatores envolvidos na produção da fome é constatada na maioria dos trabalhos existentes sobre o tema. Estes estudos adotam a concepção multicausal epidemiológica, onde combinações dos seguintes fatores se relacionam com a ocorrência da desnutrição: dieta, infecção, fatores psicológicos, situação sócio-econômica (educação, renda, habitação insalubre, tabus alimentares), produção insuficiente de alimentos, padrões culturais, nutrição materna e desmame precoce.

Neste tipo de abordagem, freqüentemente as múltiplas causas da desnutrição aparecem como responsabilidade dos indivíduos atingidos, como atributos individuais, como é o caso, entre outros, de variáveis como educação materna, capacidade de seleção dos alimentos e tabus alimentares. Contrariando esta concepção, existem dados que mostram ser o déficit nutricional da população brasileira basicamente calórico e não protéico, sendo que as fontes de caloria não variam significativamente entre as diversas regiões do país (7). Conforme constatou Alves, comparando a cesta de alimentos de famílias adequadas nutricionalmente com famílias não adequadas, a composição da cesta era a mesma, concluindo que a inadequação nutricional relacionava-se com a quantidade e não com a qualidade dos alimentos.

A principal crítica ao modelo multicausal consiste na identificação de que nesta concepção, o social é reduzido a um atributo dos indivíduos e à homogeneização das diversas variáveis relacionadas como determinantes da desnutrição (8). As associações estabelecidas entre a desnutrição e as diversas variáveis acima relacionadas, embora até certo ponto possam ser reais, não explicam o processo de produção da desnutrição: de que forma todos esses fatores interagem para produzir o fenômeno da fome. Representam partes de uma totalidade, aspectos de um fenômeno cuja compreensão global parece estar na dependência de uma análise que leve em conta a estrutura social.

Desnutrição e estrutura social: a produção social da fome

A ausência de discussão dos fatores históricos e sociais envolvidos na gênese da desnutrição é até certo ponto deliberada, refletindo interesses de preservação da ordem social vigente. A busca da causa da fome nos indivíduos, e não na sociedade, implica em mudanças nos atingidos pelo problema e não na ordem social a que estes pertencem.

Existem diversas orientações metodológicas na investigação da produção das doenças que levam em conta, de uma forma ou de outra, o "social", sendo que o significado deste termo varia de acordo com as referidas orientações.

Dentre estas destaca-se a abordagem marxista que surge da necessidade de uma melhor compreensão dos determinantes das doenças, ao lado da constatação da sua historicidade e das relações com a estrutura social.

O conceito de "causalidade social das doenças", utilizado por Laurell em 1976 num estudo pioneiro, situa-se dentro desta perspectiva. Investigando as relações entre o risco de adoecer e as modificações nas relações de produção, em duas comunidades rurais do México, a autora procura ilustrar a idéia de que as doenças são produzidas no contato dos homens com a natureza, contato este que em sociedades concretas é dado pelas relações de produção dominantes, ou seja, pela estrutura social (9).

Existem hoje evidências de que, na natureza, os eventos relacionados com a gênese da desnutrição não ocorrem ao acaso, sendo desigualmente distribuídos, com probabilidade de ocorrências diferenciadas, historicamente determinados e dependentes da inserção dos indivíduos no processo produtivo. Em outras palavras, a forma pela qual a sociedade organiza sua produção de bens materiais e as decorrentes relações de produção estabelecidas entre os homens, é que explicam a distribuição dos fatores, agentes e/ou variáveis envolvidos com a produção da fome.

Fome e classe social

Tomando como ponto de partida o indivíduo, a nutrição pode ser vista como um componente da reprodução do corpo biológico. Os indivíduos nas sociedades concretas agrupam-se em determinadas classes sociais, a depender da posição que ocupam no processo produtivo e das relações que mantêm com os meios de produção. A classe social à qual o indivíduo pertence é que vai determinar, em última instância, o conjunto de fatores que interferem na sua reprodução.

No modo de produção capitalista, as relações de produção preponderantes são as relações capitalistas que dividem a sociedade em duas classes principais: a dos donos dos meios de produção, e a daqueles que vendem sua força de trabalho. Neste modo de produção, a reprodução do corpo do trabalhador faz parte do consumo individual realizado por ele na produção. O consumo individual refere-se aos meios necessários à subsistência do trabalhador, que envolvem, além da nutrição, também a habitação, o vestuário e o transporte.

Em outras palavras, fatores envolvidos com o processo da nutrição (sejam aqueles relativos à ingesta, como renda, quantidade e qualidade dos alimentos, sejam aqueles relativos ao dispêndio da energia, como tipo de trabalho, extensão da jornada, intensidade do trabalho, stress e outros) apresentam variações que dependem da inserção do indivíduo no processo produtivo. Ou seja, o fato de o indivíduo ser proprietário dos meios de produção ou de sua força de trabalho é que define o tipo de habitação, o acesso ao saneamento, o tipo de trabalho e a consequente remuneração, o desgaste físico etc. Desta forma, as inúmeras variáveis que aparecem associadas com a desnutrição, sendo conseqüentemente arroladas como fatores causais da mesma, representam na realidade aspectos relativos às condições de vida de determinadas classes sociais.

Existem indicações diversas, tanto empíricas quanto teóricas, de que a prevalência da desnutrição é maior entras as massas trabalhadoras, onde os salários são baixos, e nos segmentos em que o desemprego e o subemprego são características constantes. Conforme revelou um estudo acerca do estado nutricional de crianças em núcleos rurais do Vale do Ribeira, 49,9% dos filhos de trabalhadores assalariados 45,8% dos filhos de arrendatários/meeiros e 35,6% dos filhos de pequenos proprietários apresentavam desnutrição protéico-calórica (10). A prevalência da desnutrição urbana foi maior nos filhos de trabalhadores não especializados (carvoarias, serrarias e construção civil) com 75,8%, 61% e 50% respectivamente, do que naqueles especializados, como indústria (43%), transporte (40%) e restaurante (36%).

A associação entre baixa renda e fome, já bem estabelecida na literatura através de inúmeros trabalhos, representa na realidade um indicador indireto da relação entre estado nutricional e classe social. Como as faixas de renda onde se situa o problema nutricional correspondem exatamente àquelas classes sociais e camadas que exibem de forma mais acentuada a desnutrição, o raciocínio orienta-se no sentido de compreender a associação entre fome e baixa renda, como uma associação secundária.

“A fome endêmica só vai surgir como problema de saúde pública com o advento do mercantilismo”.

A renda decorre, e é um componente, da inserção do indivíduo na produção, não podendo de forma alguma, ser dissociada desta. A fome endêmica só vai surgir como problema de saúde pública com o advento do mercantilismo. A divisão social do trabalho e a separação do produtor direto dos seus meios de produção, que então se inicia, fazem com que os trabalhadores só possam ter acesso aos alimentos via mercado, ou seja, que a nutrição passa a depender não só dos preços dos alimentos, como principalmente do salário. O salário, por sua vez, remunera a força de trabalho cujo valor, à semelhança das demais mercadorias, depende do tempo de trabalho necessário para sua produção, conforme desenvolve Marx:

"o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-se, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor” (11).

A ocorrência da desnutrição, nesta circunstância significa que não está havendo reposição da energia gasta durante a jornada de trabalho e que a força de trabalho está sendo remunerada abaixo do seu valor.

No entanto, o conceito de produção e reprodução da força de trabalho não se limita à reprodução do trabalhador individual, refere-se à reprodução da classe operária como um todo. Para o capitalista não importa que algumas centenas de milhares de trabalhadores morram de fome se existem substitutos para os mesmos. Interessa apenas que existam sempre trabalhadores aptos a entrar na produção: que a classe operária, ou seja, que a força de trabalho esteja continuamente reproduzindo-se. Por isto, os proprietários dos meios de produção procuram rebaixar ao máximo o valor da força de trabalho.
Um outro grupo social atingido pela desnutrição é aquele formado pelos desempregados e subempregados que, ao lado dos inativos, constituem o exército industrial de reserva. Embora a literatura na área da nutrição ressinta-se da ausência de trabalhos que estudem especificamente a desnutrição nestes contingentes urbanos, a partir de uma abordagem estrutural existem indicações indiretas desta relação. A alta prevalência da desnutrição em crianças migrantes, a faixa de renda onde estes setores se situam, assim como as condições de habitação e saneamento, coincidem com aquelas situações em que a desnutrição é mais freqüente.

A existência do exército industrial de reserva não só decorre do processo de acumulação capitalista como é condição necessária para que o mesmo ocorra:
"Mas, se uma população trabalhadora excedente é produto necessário da acumulação ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista, ela se torna, por sua vez, a alavanca da acumulação capitalista e mesmo condição de existência do modo de produção capitalista. Ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele. "(12).

Desta forma, a problemática da fome não decorre do acaso, nem tampouco pode ser explicada por variáveis ou atributos individuais. Existem evidências que relacionam o fenômeno da fome endêmica com a divisão da sociedade em classes sociais. As condições para o surgimento da fome e da desnutrição são criadas no processo de acumulação capitalista atingindo segmentos da classe social produtora de riquezas, a classe operária, cujo trabalho é objeto de exploração por parte das classes detentoras dos meios de produção.

Fatores conjunturais

O processo de acumulação capitalista, a partir do golpe militar de 1964, apresenta duas características centrais que repercutem sobre o estado nutricional da população brasileira: a dependência externa e a política de contenção salarial.

O desenvolvimento dependente, por requerer um contínuo retorno do excedente do capital à circulação internacional, entrava os investimentos internos, contribuindo diretamente para o aumento do subemprego, com as conseqüências decorrentes desta situação em relação ao estado nutricional da população.

A política salarial adotada neste período, conhecida popularmente como arrocho salarial, determinou a perda do valor real dos salários, através de reajustes inferiores às taxas inflacionárias. Em conseqüência, houve um agravamento da concentração de renda já existente no país, com repercussões particularmente graves para os trabalhadores.

A este respeito, a evolução do salário-mínimo é reveladora. Segundo dados do Dieese, o salário-mínimo representava em março de 1982 apenas 55% do valor do primeiro salário-mínimo do trabalhador brasileiro, instituído em 1940. A perda do poder aquisitivo do salário-mínimo ocorre exatamente a partir de 1962. Esta desvalorização correlaciona-se inversamente com alguns indicadores indiretos do estado nutricional, como é o caso das taxas de mortalidade infantil e da estimativa de esperança de vida ao nascer.

Por fim, as relações existentes entre a problemática da fome e a acumulação capitalista aqui assinaladas, ao lado do seu agravamento a partir da adoção de um modelo econômico concentrador de rendas no Brasil, são fortes indicações de que transformações sociais relevantes se fazem necessárias para a superação da fome, enquanto questão social, o que envolve modificações das relações sociais de base que determinam esse fenômeno, assim como a eliminação das distribuições desiguais de poder e riqueza existentes no país.

* Lígia M. V. da Silva é professora assistente do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da UFBa. Mestre em Saúde Comunitária pela UFBa.

Referências bibliográficas
(1) FAO/WHO JOINT EXPERT COMMITTEE ON NUTRITION.
(2) BERG, A. O fator desnutrição. Seu papel no Desenvolvimento Nacional.
(3) PUFFER, R. R. & SERRANO, C. V. Características da mortalidade na infância, Fundação Getúlio Vargas.
(4) SINGER, P. Consumo alimentar na área metropolitana de Salvador.
(5) CASTRO, J. Geografia da Fome.
(6) ALVES, E. L. G. Desnutrição e pobreza no Brasil.
(7) AROUCA, A. S. O dilema Preventivista: contribuição para a compreensão da crítica da Medicina Preventiva.
(8) LAURELL DE LEAL, A. C. Enfermidades e Desenvolvimento: análise sociológica da morbidez nas populações rurais mexicanas.
(9) MONTEIRO, C. A. Epidemiologia da desnutrição protéico-calórica em núcleos rurais no Vale do Ribeira.
(10) MARX, K. O Capital.
(11) MARX, K. O Capital.

EDIÇÃO 7, DEZEMBRO, 1983, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39