As cartas de Marx ocupam um lugar de destaque em toda a sua vasta obra. Em particular as missivas a Kugelmann de abril de 1871, que aqui reproduzimos, constituem documentos fundamentais para a apreensão da essência revolucionária do marxismo. Escritas no exílio, em Londres, quando o centro dos embates revolucionários na Europa deslocava-se para Paris, onde os heróicos comunardos ousavam "tomar o céu de assalto", elas testemunham o vigor, a acuidade e a profundidade do pensamento do fundador do socialismo científico.

Da análise concreta sobre a Comuna, Marx retirou importantes conclusões até hoje úteis à ação política do proletariado e de sua vanguarda revolucionária. Dentre elas ganha realce a idéia, sempre tergiversada pelos oportunistas de diferentes matizes, da necessidade de demolir a máquina burocrática militar do velho poder como tarefa essencial de toda revolução popular.

Por outro lado, como entusiasta da revolução, Marx entoa um verdadeiro hino de louvor à iniciativa revolucionária das massas, que muitas vezes irrompe sem "respeitar" as condições favoráveis ou desfavoráveis existentes. Em 1870, Marx advertira o proletariado francês quanto às condições desfavoráveis para uma tentativa de tomar o poder. Mas, quando em 1871 desencadeou-se a insurreição, tratou de agir como um participante da batalha, visando a levar o movimento revolucionário a uma etapa mais alta. Analisou os erros não para refrear o ímpeto da luta, mas para mobilizar todas as energias do povo a fim de golpear duramente o inimigo.

Desse modo, Marx alerta os verdadeiros revolucionários a estarem sempre atentos diante da possibilidade de ocorrerem "acasos" na história, para que, ao invés de se perderem em lucubrações mistificadoras, mergulhem fundo no curso dos acontecimentos, colocando-se à frente das ações combativas.

Marx a L. Kugelmann

Londres, 12 de abril de 1871.

Se você reler o último capítulo do meu 18 Brumário, verá que afirmo que a próxima tentativa da revolução francesa não será passar a máquina burocrático-militar de uma para outras mãos, como até agora vinha sucedendo, mas tratará de demoli-la, e esta é a condição prévia de toda verdadeira revolução popular no continente. Nisto precisamente, consiste a tentativa de nossos heróicos camaradas de Paris. Quanta flexibilidade, quanta iniciativa histórica, e quanta capacidade de sacrifício têm esses parisienses! Depois de seis meses de fome e ruína, decorrentes mais da traição interna que do inimigo exterior, eles se rebelam, sob as baionetas prussianas, como se não houvesse guerra entre a França e a Alemanha, como se o inimigo não se achasse às portas de Paris! A história ainda não conhecera exemplo igual de heroísmo! Se forem vencidos, a culpa caberá, exclusivamente, a seu "bom coração". Devia-se ter empreendido, sem demora, a ofensiva contra Versalhes, depois da fuga de Vynoi e, com ele, da parte reacionária da Guarda Nacional. Deixou-se escapar a oportunidade, por escrúpulo de consciência. Não se queria iniciar a guerra civil, como se esse aborto, que é Thiers, não a houvesse já começado quando tentou desarmar Paris. O segundo erro consistiu em o Comitê Central ter renunciado demasiado cedo aos seus poderes, para ceder lugar à Comuna. Novamente, esse escrúpulo demasiadamente "honesto". De qualquer forma, a insurreição de Paris – mesmo no caso em que venha ser esmagada pelos lobos, pelos porcos e pelos cães vis da velha sociedade – constitui a mais heróica façanha de nosso Partido, desde o período da insurreição de junho. Comparem-se a estes parisienses – dispostos a assaltar o céu – os servos do sagrado império romano germânico-prussiano, com suas mascaradas antediluvianas que cheiram a quartel, a igreja, a Junkers e, acima de tudo, a filisteísmo.

A propósito: na edição oficial de documentos sobre os subsídios fornecidos diretamente pela caixa de L. Bonaparte, indica-se que Vogt recebeu, em agosto de 1857, 49.000 francos! Já comuniquei o fato a Liebknecht, para que faça disso o uso conveniente, no momento oportuno.
Pode enviar-me o Haxthausen*: nos últimos tempos, recebo intactos os folhetos etc., que me vêm não só da Alemanha, mas até mesmo de Petrogrado.

Meus agradecimentos pelos jornais que você mandou. (Se puder mande-me ainda mais, pois penso escrever algo sobre a Alemanha, o Parlamento Imperial etc.) […]

Marx a L. Kugelmann

Londres, 17 de abril de 1871

Recebi sua carta. Estou assoberbado de trabalho. Por isso, escrevo apenas algumas palavras. Não posso compreender, de modo algum, como você pode comparar as manifestações pequeno-burguesas, do tipo das de 13 de julho de 1849 ** etc., com a luta que hoje se desenvolve em Paris.
É claro que seria muito fácil fazer a história universal se se pudesse empreender a luta somente em condições de vitória infalível. Além disso, a história passaria a ter um caráter muito místico se os "acasos" não desempenhassem nenhum papel. Como é natural, os acasos formam parte do curso geral do desenvolvimento e são compensados por outros acasos. Mas a aceleração ou o retardamento do desenvolvimento dependem, em grau considerável, desses "acasos", entre os quais figura o caráter dos homens que dirigem o movimento em sua fase inicial.

O "acaso" decisivamente desfavorável não deve ser, desta vez, procurado nas condições gerais da sociedade francesa, e sim na presença dos prussianos na França e às portas de Paris. Os parisienses sabiam muito bem disso. Mas também o sabiam os canalhas burgueses de Versalhes. Eis por que levantaram ante os parisienses a alternativa de aceitar seu desafio ou entregar-se sem luta. Nesta última hipótese, a desmoralização da classe operária teria sido uma desgraça muito maior do que o sacrifício de um número qualquer de "líderes". Graças à Comuna de Paris, a luta da classe operária contra a classe dos capitalistas e contra o Estado que representa os interesses desta última entra agora em nova fase. Seja qual for o desenlace imediato, conquistou-se desta vez um ponto de partida novo de importância histórico-mundial.

Trata-se do livro de A. Haxthausen A Origem e as Bases do Regime Social nas Antigas Terras Eslavas da Alemanha em Geral e no Condado da Pomerânia em Particular (N. da R.).

A 13 de junho de 1849, celebrou-se, em Paris, por iniciativa do Partido da Montanha, uma manifestação de protesto contra a derrubada violenta da república romana pelas tropas francesas. Essa manifestação foi dissolvida sem grandes dificuldades – e veio confirmar a bancarrota da democracia pequeno-burguesa na França. (N. da R.).

EDIÇÃO 7, DEZEMBRO, 1983, PÁGINAS 30, 31