Ao longo de nossa História tem sido uma prática sistemática dos estudiosos do processo de libertação dos escravos brasileiros, a omissão ou minimização do papel desempenhado pelo negro no decorrer da luta travada no país pela abolição da escravatura. Comprometidos com a Historiografia Oficial, distanciados da realidade ditada por mais de três séculos de escravidão, é que grande parte dos estudiosos e pesquisadores cometem o equívoco imperdoável de ignorar, e mesmo subestimar, a permanente luta do africano escravizado pela sua liberdade.

As diversas interpretações do processo abolicionista brasileiro ocasionaram a existência de "muitas Histórias da Escravidão Negra no Brasil", como observa José Alípio Goulart no seu precioso estudo "Da Fuga ao Suicídio" (Aspectos da Rebeldia dos Escravos no Brasil).

Inicialmente, poderíamos atribuir tão variada gama de análises, à efetiva dificuldade encontrada pelos historiadores para a realização de estudos e pesquisas, dificuldades estabelecidas fundamentalmente pela quase completa inexistência de documentos relativos à operacionalização e desenvolvimento da escravidão no Brasil, que seriam guias inestimáveis para o desenvolvimento de um estudo mais sistematizado e melhor embasado sobre o tema. Ressalte-se que a classe dominante brasileira empreendeu considerável esforço no sentido de apagar da memória do povo a violência e a crueldade do regime escravocrata, sendo que Rui Barbosa, através do Decreto datado de 14-12-1890, na qualidade de ministro da Fazenda, e arguindo a necessidade de "limpar a honra da Pátria", ordenou a queima de "todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil".

Mas, nos parece que o fisiologismo existente entre uma considerável parcela dos nossos historiadores e o regime quadrissecular de exploração implantado no Brasil, desde a fase inicial da colonização, junto com o latifúndio e a mão-de-obra escravizada, vêm também explicar tão variadas análises e conclusões a que se refere José Alípio Goulart. Juntemos a esses fatores um outro, que se apresenta com grande importância, para que o papel do negro na sua libertação tenha merecido tratamento tão ambíguo e discriminatório. Trata-se do método de análise histórica utilizado por boa parte dos nossos historiadores que, equivocadamente, prescindem da concepção marxista-leninista de análise do processo evolutivo da História, fundamentalmente alicerçado no materialismo histórico. Tal afastamento do marxismo-leninismo traz como conseqüência uma história escrita sob a ótica da classe dominante e a serviço dos dominadores, omitindo ou distorcendo o papel dos oprimidos e explorados.

Calcado nessas observações é que nos dispusemos a escrever sobre a existência de focos de resistência de escravos em Salvador, para o que encontramos algumas dificuldades dadas as razões acima expostas. Embora a derrocada oficial da escravidão só tenha ocorrido em 13-05-1888, a luta do escravo pela sua libertação antecede e transcende o Ato da princesa Isabel.

A história da resistência ao cativeiro na Bahia é tão antiga quanto a implantação da mão-de-obra escrava no Brasil, considerando que já no século XVII, precisamente em 1629, na localidade do rio Vermelho, em Salvador havia um quilombo cuja destruição ocorreu em 1642, por ordem do governador da Capitania. Segundo Borges de Barros, o governo de Portugal se interessava na "repressão aos índios que assaltavam os estabelecimentos e povoações" e na "destruição de quilombos e mocambos de negros fugidos, os quais se tornavam temerosos nos assaltos das estradas". Embora seja objeto principal de nosso enfoque, não foram os quilombos a única forma de resistência desenvolvida pelos negros, sendo que inúmeras outras modalidades de revoltas de escravos eclodiram em diversos pontos de nosso território, particularmente na Bahia.

Para comprovar esta afirmação, existem levantamentos realizados por variados autores (Clóvis Maura, Alípio Goulart, Tomás Pedreira) que estabelecem uma longa cronologia de insurreições, não só na Bahia, mas em todo o Brasil. Notadamente na Bahia, em 1692, irrompeu séria rebelião de escravos comandada pelos negros Domingos de Leme Morais e Veríssimo Morais da Silva que prenderam o capitão-mor.

Seguem-se a essa outras lutas que se estenderam até meados do século XIX. Neste ciclo de formidável resistência dos oprimidos se inscreve a Revolta dos Malês, datada de 1835, "sem dúvida a dirigida com mais habilidade e plano regular", segundo depoimento de Manoel Alves Branco, ministro da Justiça à época. Destacaram-se como principais dirigentes da insurreição os pretos nagôs Diogo, Ramil, James, Cornélio e Tomás, participantes de várias reuniões conspiratórias, com outros negros,trabalhadores em saveiros de Santo Amaro e Itaparica. Iniciada a 24 de janeiro de 1835, no dia seguinte os escravos, em grande número dirigiram-se ao Forte da Cavalaria, "sendo detidos por tropas governamentais, que sobre eles carrega a Cavalaria, ao mesmo tempo que da janela do Forte os alvejavam a bala. Após enorme carnificina, são os negros batidos sem apelação", o que vem explicar o caráter cruel e violento do Regime Colonial e escravocrata.

A existência comprovada de revoltas e quilombos serve para que possamos desmistificar a falsa imagem propalada por alguns estudiosos, acerca do servilismo da docilidade e do conformismo do escravo, quando na verdade, "nos três séculos de escravidão o Sistema Escravocrata manteve-se sob um regime de violência permanente, que desabava sobre a cabeça do negro em requintes de torturas físicas", ao primeiro sinal de resistência e rebelião. Embora premidos por circunstâncias tão desfavoráveis, os negros combatiam e resistiam obstinadamente, através de fugas organizadas das senzalas, acoitamento nas matas (para edificação de quilombos), chegando até mesmo ao suicídio, o que nos vem confirmar que "a intolerância do negro não foi só uma realidade presente, como de ação. permanente.

Ora barulhenta, ora silenciosamente, ele a punha em prática sem esmorecimento, fosse individual ou coletivamente: fugindo, amotinando-se, assassinando, roubando e até suicidando-se, impunha a marca inconfundível de sua rebeldia".
Foi nossa pretensão, ao abordar algumas insurreições ocorridas na Bahia entre os séculos XVIII e XIX, estabelecer para o leitor a compreensão inequívoca de que os quilombos fazem parte, junto com estas rebeliões e amotinações, do valioso leque de alternativas criadas pelos insurretos para responder ao regime que os oprimia e tiranizava.

A LUTA DO NEGRO NA BAHIA

A chegada dos primeiros escravos ao Brasil deve-se a uma concessão outorgada por D. João VI "para que cada colono pudesse importar até o máximo de 120 escravos para o trabalho de suas fazendas".
O aumento do tráfico foi rápido e já em 1583 as estatísticas do Reino, embora não muito confiáveis, apresentavam os seguintes dados: de 57 mil habitantes, 25 mil eram brancos, 18 mil indígenas e 14 mil negros. Já em 1798, para os 3.250.000 habitantes existentes, havia 1.582.000 escravos.
O historiador Rocha Pombo calcula em 15.000.000 o número de escravos entrados no Brasil no período escravista, sendo que a Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro foram os maiores entrepostos de comércio negreiro no País. "No que toca à raça, é sabido que os escravos africanos trazidos para o Brasil eram principalmente, de nações pertencentes aos grupos sudanês e bantu". Na Bahia, figuram entre as nações mais representadas: Mina, Nagô ou Iorubá, Congo, Benguela, Cabinda e Dussá.

Seqüestrados em sua terra natal como animais, viajando em condições subumanas nos navios negreiros, que tanto pavor causaram ao poeta Castro Alves, tratados aqui de maneira brutal e violenta, vivendo em permanente estado de coação, era de se esperar que os negros buscassem de maneira sistemática e continuada a sua liberdade usurpada. Dentro dessa perspectiva é que os "quilombos ou mocambos, os calambolas ou calhambolas" representam considerável acervo no painel das lutas travadas pelos escravos na busca incessante de sua libertação.

Uma população escrava bastante numerosa e, sobretudo, o desenvolvimento verificado na lavoura do fumo, da mandioca e principal mente na lavoura açucareira, tornaram a Bahia "sede de inumeráveis agrupamentos de negros fugitivos, localizados em diversos pontos do seu território".

Em que pese ter sido constatada a existência de quilombos ou mocambos em quase todo o território baiano (Xique-Xique, Rio das Contas, Santo Amaro, Nazaré, Jacuípe, Maragogipe, Cruz das Almas, Andaraí, Jaguaribe e outros), deter-nos-emos, por ora, unicamente, nos principais quilombos existentes em Salvador, postergando momentaneamente um estudo mais pormenorizado dos Quilombos Baianos.

"O quilombo ou mocambo era um aldeamento ou conglomerado de casebres cobertos de palha ou folhas de palmeiras, sem nenhuma ordenação, com alguma separação entre eles, situados no meio das árvores e das matas, tudo na conformidade dos usos africanos". Quanto à sua manutenção e subsistência, os insurretos faziam roças e pequenas lavouras, bem como criavam aves e outros animais domésticos.

No que tange a sua organização sócio-política, os negros "tinham um Rei de caráter eletivo, e abaixo
dele vários chefes e subchefes, capitães de milícia e até juízes. Os quilombos comunicavam-se uns com os outros, auxiliavam-se mutuamente.

Iniciada a repressão sistemática e punitiva do governo e dos latifundiários-escravocratas (surgindo daí a execrável figura do capitão-do-mato), os negros aquilombados, objetivando a manutenção da liberdade duramente conquistada, "passaram a erguer fortificações e paliçadas com extensão de às vezes, mais de 6 km, e fossos, e armadilhas cheias de pontas agudas e chuços, usados contra seus perseguidores. Fora das fortificações espalhavam-se mocambos onde moravam os que cuidavam das roças". Sobre a natureza da repressão desencadeada pelo Regime Colonial, transcrevemos pequeno trecho do alvará expedido pelo Rei de Portugal, datado de 03-03-1741: "Hei por bem que a todos os negros que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F". Segue-se ainda no mesmo alvará autorização para castigar o escravo reincidente com o corte de uma das orelhas!

Caracterizando de maneira irrefutável a violência e a permanente coação utilizadas contra os negros escravizados, o combativo jornalista, advogado e abolicionista negro, Luís Gama escreveu: “Todo homem que mata pela sua liberdade, está agindo em legítima defesa".

OS QUILOMBOS DE SALVADOR

QUILOMBO DO BURACO DO TATU (1744-1765)

Situava-se este quilombo (um dos mais importantes surgidos na Bahia) nas proximidades de Salvador, a duas léguas e meia, "nas margens da atual estrada que liga Campinas a Santo Amaro de Ipitanga", sendo que o local onde existiu ainda se denomina "Buraco do Tatu". O quilombo teve início em 1744 e em 1760 possuía grande número de habitantes. Era bem protegido e defendido por "estrepes e armadias", colocadas nos matos que o circundavam, para dificultar a aproximação de elementos estranhos e das tropas das milícias da Capitania que os iam atacar. Os calhambolas do Buraco do Tatu, praticavam assaltos, roubavam fazendolas e sítios dos arredores; "à noite demonstrando grande coragem e ousadia, penetravam pelas ruas da cidade a prover-se de pólvora, chumbo e das mais bagatelas que precisavam para a sua defesa".

Considerando o quilombo do Buraco do Tatu de alta periculosidade, o governo interino da Bahia (formado pelo coronel Gonçalo Xavier de Brito Alvim, Chanceler José de Carvalho e Arcebispo Dom Frei Manuel de Santa Inês) ordenou sua imediata destruição, organizando para tal fim uma expedição com 200 pessoas, sob o comando do Capitão-Mor Joaquim da Costa Cardoso. O ataque realizou-se a 2 de setembro de 1763, sendo o quilombo arrasado, e vários rebeldes feitos prisioneiros.

Uma carta dirigida a Mendonça Furtado, pelo Governo Interino da Bahia, informou-o de que a expedição enviada ao Buraco do Tatu fez "61 presos entre pretos e pretas recolhidos à Cadeia e relaxados à Justiça da Ouvidoria Geral do Crime para devassa r e proceder no castigo que a lei determinasse aos réus de semelhante delito". Ainda da mesma carta consta "que foram por soldados e oficiais expugnados vários quilombos de negros que havia nas vizinhanças desta Cidade, de cujos quilombos vieram presos para a Cadeia, procedendo-se em devassa do caso por este Juízo, se pronunciaram os cabeças daqueles facinorosos e outras pessoas, com as quais tinham comunicação; e os negros que não tinham mais delito que o de calhambolas, depois marcados com a letra F".

Finalmente, em documentação datada de 30 de outubro de 1765, o ministro Mendonça Furtado elogia o Conde de Azambuja, Capitão-General da Bahia, pela sua atuação na destruição do quilombo Buraco do Tatu.

QUILOMBOS DE "NOSSA SENHORA DOS MARES" E "CABULA"

Também localizados nos arredores de Salvador tiveram, como o do Buraco do Tatu, "grande importância e periculosidade", tendo o governador e capitão-general da Bahia, Conde da Ponte, cuidado imediatamente de destruí-lo, chamando à sua presença, em 29 de março de 1807, o Capitão-Mor das Entradas e Assaltos do Termo da Cidade do Salvador, Severino da Silva Lessa, a quem encarregou de cuidar da repressão aos aquilombados.

A 30 de março de 1807, o Sr. Severino Lessa "requereu 80 homens da Tropa de Linha" devidamente selecionados e municiados, com os quais "cercou várias casas e arraiais na distância de duas léguas desta cidade, ali aprisionando 78 pessoas" entre os quais se encontravam escravos, negros forros, e dois dos principais cabeças, posteriormente remetidos presos ao Arsenal.

Em carta remetida ao ministro da Marinha e Ultramar, em 7 de abril de 1807, o conde da Ponte ainda detalha: "houve alguma resistência e pequenos ferimentos", acrescentando que "os pretos achados nesses ajuntamentos, mandei-os para o Arsenal, empregá-los nas reais obras e as mulheres para as cadeias da Cidade". Diz ainda o Conde da Ponte que "os escravos fazem já muita diferença na obediência devida aos seus senhores".

QUILOMBO DO URUBU (1826)

Conta-nos José Alípio Goulart: "em 1826 formou-se um grande quilombo chamado URUBU, no sítio Cajazeiro, nas proximidades da Capital". Os documentos da época dizem que os quilombolas do URUBU "premeditavam apresentar uma revolução na Cidade". Para tanto começaram por realizar alguns ataques na região. No dia 15 de dezembro de 1826, "praticaram alguns ataques no Cabula contra lavradores, raptando uma menina que com sua família passava numa roça no dito sítio, e que dois dias depois foi encontrada muito maltratada e recolhida ao Hospital da Misericórdia.

Alguns capitães-do-mato, tomando conhecimento das ações perpetradas pelos rebeldes, resolveram destruí-los e entrando em luta com os quilombolas mataram dois e feriram um terceiro, "tendo esse combate se dado a 17 de dezembro". Segundo o relato de um dos combatentes, ao se dirigir para o Cabula acompanhado de 12 soldados e um cabo, sabendo estarem "os negros reunidos em um lugar denominado URUBU, em número de mais ou menos 50, e também algumas negras", na tentativa de descobri-los acabou encontrando "um Capitão de Assaltos, e mais dois crioulos gravemente feridos, a í soube terem sido aqueles ferimentos causados pelos negros que se achavam levantados". Essa luta travou-se ao meio-dia, tendo falecido os capitães Antonio Neves e José Correia, segundo informa Clóvis Moura. "Tendo sido os Capitães derrotados o governo mandou pôr em marcha 20 praças do Batalhão Pirajá, sob as ordens do coronel Francisco da Costa Branco e mais 12 soldados e um cabo que saíram às 10 horas da manhã". Os sentinelas dos quilombolas pressentiram a presença das tropas, imediatamente se "puseram em guarda e deram o alarme, fazendo para isso uso de um corno de boi, uma espécie de corneta. A batalha se desenvolveu entre uns 30 soldados e uns 50 calham bolas, estes usando como armas facões, facas, lazarinas, lanças, e mais outros instrumentos curtos. Portanto, uma luta de vida e de morte aos gritos de MATA! MATA! lançando-se furiosos sobre os soldados". Estes abriram fogo sobre os combatentes insurretos, matando 3 homens e uma mulher. Tendo anoitecido, os calhambolas enfurnaram-se nas matas próximas a fim de reorganizarem-se. Destacou-se sobremaneira nesse embate uma escrava chamada Zeferina, lide arco e flecha nas mãos, lutando ferozmente, até ser presa". Foi encontrado entre os quilombolas "um soldado do 1º Batalhão da 2ª Linha, Cristovão Vieira, preso em sua casa em companhia do negro Francisco Romão". Segundo relato de Alípio Goulart, "posteriormente, alguém confessou que , vários escravos eram reunidos na Rua da Oração em um casebre. A polícia os cercou e aprisionou nove escravos e um pardo".

Em documento dirigido ao Chefe da Polícia, um dos comandantes das tropas encarregadas da destruição do Quilombo do URUBU, José Balthazar da Silveira, relata: "prendi a negra Zeferina, a qual se achava com arco e flecha na mão, e achei três negros mortos e uma negra, e alguns sacos de farinha e bolacha, e como já fosse noite (…) deixei perto do lugar o Sgto. e soldados de Pirajá, para observar qualquer movimento que houvesse". Este documento é datado de 17 de dezembro de 1826.
O exemplo magnífico da negra Zeferina que de arma em punho vendeu caro a derrota, as múltiplas formas encontradas pelos insurretos para combater a violência e a escravatura servem como fonte de inspiração para o povo brasileiro construir sua unidade e sua liberdade.

* Manuel Antônio Santos Neto é estudioso dos movimentos pela emancipação dos negros.

EDIÇÃO 8, MAIO, 1984, PÁGINAS 53, 54, 55, 56, 57, 58