A reintrodução do plantio do café em grande escala na Bahia tem seu início em 1971, com a implementação do Plano de Renovação e Revigoramento de Cafezais (PRRC). Este processo tem ligação com a emergência de tendências que deterioram a posição econômica privilegiada desta cultura no sul, sob a pressão de sucessivas geadas. Após a de 1975, para citar um ano particularmente cruel, a produção de café beneficiado cai 43% em São Paulo e 100% no Paraná.

O café inicia o processo vertiginoso de extensão do seu plantio na Bahia, pelo Planalto de Conquista, onde concentrará ininterruptamente entre os anos agrícolas de 1972-73 e 1976-77 acima de 60% do plantio anual baiano, aferido em termos de número de covas de café arábica (2).

No ano agrícola de 1977-78 a região da Chapada Diamantina ultrapassa a cifra anual de 15 milhões de covas de café arábica, atingindo o primeiro plano com 45,65 % do total estadual nos limites desse período (3). Mesmo assim, no entanto, devido ao atraso da expansão cafeeira aí verificada, o desempenho da Chapada em anos mais próximos ainda não lhe permitirá suplantar em termos absolutos a prevalência do Planalto de Conquista. Este, possuindo acima de 62 milhões de cafeeiros, abarca 46,12% do plantio de café na Bahia até 1981. Mas a diferença atual entre um pólo e outro é reduzida, visto já estrem concentrados na Chapada Diamantina 37,77% dos cafeeiros do estado que, ao todo, atingem no momento número superior a 156 milhões.

Reflexo da relativa imaturidade ainda vivida pelo seu parque cafeeiro, a Bahia encontra-se em quinto lugar entre os estados produtores nacionais, com uma produção (café em coco) de 81.540 toneladas em 1981. Na sua frente, em plano visivelmente superior, estão Minas Gerais, 1.319.076 t., São Paulo, 1.164.400 t., Paraná, 819.804 t. e, por fim, em quarto lugar, Espírito Santo, com 305.700 t.. Nesse ano, a produção regional correspondeu a 2,1% da nacional, que foi de 3.755.320 toneladas. A produção atual reflete muito parcialmente a produção plena dos 156 milhões de cafeeiros plantados até 1981. A área colhida nesse ano, com seus 57.705 ha, expressa da mesma forma esta natural defasagem (4).

Deve-se levar em conta, além do mais, que o zoneamento preliminar de 1976 do IBC aponta para a Bahia um potencial global de 340.000 ha de áreas aptas à cultura, que comportariam 560 milhões de covas de café (5).

No plano interno da economia agrícola baiana, o café atinge em 1979 a condição de terceiro produto em importância em termos de valor da produção. O cacau ostenta uma prevalência inconteste com 18,4 bilhões de cruzeiros, seguido à distância pela mandioca com 3,7 bilhões, e pelo café com 2,5 bilhões (6).

A nova burguesia rural cafeeira do Planalto de Conquista tem origem predominantemente local, com a presença em sua formação de empresários, comerciantes e profissionais liberais que deram origem às pequenas e médias propriedades da região. Entre os 13 municípios que conformam o pólo cafeeiro regional, os principais plantios encontram-se, por ordem de importância, nos municípios de Barra do Choça, Vitória da Conquista, Encruzilhada, Planalto e Poções. O café é encontrado na chamada área de Mata desta região, sendo que a área de caatinga – situada no interior e nas adjacências do Planalto de Conquista, onde o café não é plantado – desempenha papel importante para a cultura cafeeira, pois fornece expressivo contingente de trabalhos volantes à época da colheita do produto.

A penetração do café no Planalto de Conquista se fez encontrando pela frente outras culturas e formas de produção, que foram eliminadas ora através de meios violentos (expulsão), ora através de meios pacíficos (compra de propriedades). Esta redefinição do perfil econômico da região onde ela se deu levou ao virtual desaparecimento de algumas categorias econômicas (o agregado, o meeiro) e ao surgimento inédito de grande contingente de assalariados agrícolas (7).

O café começou a penetrar na Chapada Diamantina com algum atraso em relação ao Planalto de Conquista. Normalmente aponta-se a própria valorização crescente das terras do Planalto de Conquista como um fator suplementar que estimulou o crescimento dessa
cultura na Chapada.

A penetração do café não se fez sem conflitos, particularmente nos municípios de Utinga e Morro do Chapéu, onde se mostrou contundente a ação da grilagem. Calcula-se que só em Utinga aproximadamente 200 posseiros foram expulsos de suas terras entre 1975 e 1978 (8).

Entre os 31 municípios onde se vem desenvolvendo a cultura do café, destacam-se, em número de cafeeiros financiados pelo PRRC, os de Utinga, Morro do Chapéu, Ibicoara, Barra da Estiva, Tapiramutá, Lençóis, Ituaçu, Mundo Novo e Seabra. Afora o número significativo de pequenas e médias propriedades cafeeiras que prosperam em diversos municípios, salta aos olhos a presença, em locais como Utinga e Morro do Chapéu, de grandes propriedades situadas numa faixa que vai de 500 mil a 3 milhões de covas, de acordo com alguns estudos, constituindo-se esse aspecto um traço próprio desta região. Resta observar que a introdução, acelerada do café na Chapada está ainda longe de representar a destruição da pequena produção tradicional voltada para os mercados locais. Esta se reproduz mima faixa extensa de área, em meio à nova cultura. Alguns fatores poderiam ser apontados na raiz desse fenômeno: o café não se expandiu até seu limite "extremo"; os cafeeiros só começaram a produzir a partir de 1980; a característica de descontinuidade das áreas apropriadas ao plantio, mais encontradas em municípios da parte Meridional da Chapada, tem criado importantes "brechas" à pequena produção (9). Por sua vez, esta grande massa de força de trabalho de pequenos produtores independentes, situada próxima às áreas produtoras, é sistematicamente arregimentada nos períodos de colheita.

Seja no Planalto de Conquista ou na Chapada Diamantina, o caráter complementar do calendário agrícola baiano (10) faz com que o trabalho no café não conflite com a produção de subsistência das propriedades familiares situadas nos limites dessas áreas ou na própria caatinga. E possível encontrar, inclusive, trabalhadores que se assalariam na colheita de mais de uma cultura.

O café baiano, da fase do plantio ao seu processo de manutenção, serve-se de máquinas, equipamentos e insumos modernos. As exigências que acompanham os créditos rurais fornecidos com base no PRRC – somadas aos tratos culturais especiais requeridos pelo café naturalmente e às imposições da concorrência econômica do mercado – determinam que o processo produtivo desta cultura obedeça a um certo patamar tecnológico inexistente entre os produtos de subsistência tradicionais.

Esses fatores, no entanto, não eliminam a necessidade de uma abundante mão-de-obra que a cultura experimenta em seu processo de manutenção (capinas, adubação, controle de pragas e enfermidades, conservação do solo) com ênfase especial ao período da colheita. As condições climáticas da Bahia, ao determinarem uma maturação desuniforme do fruto, inviabilizam a adoção do método de derriça e colocam a exigência da cata do café (a colheita a dedo), pressionando no sentido da incorporação de maior contingente de força de trabalho na lavoura cafeeira baiana (11).

As condições de trabalho dos assalariados do café assemelham-se em muito às dos demais "bóia-frias" e trabalhadores volantes de outras regiões e culturas. Muitos deslocam-se de longe, arregimentados por elementos diretamente vinculados às fazendas (gerentes, empregados de confiança) ou empreiteiros autônomos (os "gatos"), instalando-se em galpões precariamente construídos dentro de propriedades ou em outras formas de "moradias" improvisadas, onde se alojarão até findar a necessidade de emprego da sua força de trabalho (12). Outros já residem nas cidades ou ali se instalam nos meses em que há trabalho, à custa de seus parcos recursos, deslocando-se diariamente até as áreas da lavoura.

As formas de remuneração usuais – seja o pagamento por produção, na colheita, ou por empreitada, no plantio, capina etc – dão ao trabalhador o estritamente necessário a uma sobrevivência miserável. A condição de assalariamento temporário serve de escudo e justificativa (em alguns aspectos, com fundamento "legal") para o descompromisso patronal com os mínimos direitos sociais do trabalhador. São diversos os mecanismos através dos quais o fazendeiro procura reduzir seus custos de produção com base na super-exploração da força de trabalho. Questões como a equiparação do salário da mulher e do menor ao do homem, fornecimento dos instrumentos de trabalho pelo patrão, alojamentos adequados, socorro de urgência nas fazendas fizeram parte do elenco de 31 reivindicações levantadas pelos trabalhadores de Vitória da Conquista e Barra do Choça, ao deflagrarem o movimento grevista de 1980 (13).

Desde o seu início, o processo de reimplantação do café na Bahia teve inevitáveis desdobramentos no terreno da luta de classes. A primeira manifestação organizada e consistente foi a luta das 118 famílias de posseiros de Matas do Pau Brasil, no município de Barra do Choça, contra as tentativas de grilagem de suas terras pela Agropecuária Pau Brasil Ltda., luta que atingiu repercussão no começo de 1979, sendo ao seu final vitoriosa.

Tendo afinal o café ocupado uma grande área plantada e com a consolidação da produção de alguns milhões de cafezais, entra em cena a luta do assalariado agrícola, particularmente dos catadores de café. Fruto de um paciente esforço de mobilização dos trabalhadores e após infrutíferas tentativas de negociar com os patrões um contrato coletivo de trabalho, entram em greve a 12 de maio de 1980 mais de 5 mil catadores de café dos municípios de Vitória da Conquista e Barra do Choça. O movimento se estende rapidamente, abrangendo nos 3 primeiros dias, cerca de 60 a 70% dos trabalhadores dos dois municípios. Mas, frente à pressão da fome e às intimidações por parte de fazendeiros e autoridades, o comando de greve suspende o movimento transcorridos 10 dias de paralisação. A greve representa um grande avanço em nível de consciência e organização dos trabalhadores locais, sendo que no tocante às reivindicações imediatas é relativamente vitoriosa, pois ao final do julgamento do Dissídio Coletivo instalado pela Justiça do Trabalho, esta dá ganho de causa a boa parte das exigências formuladas pelos catadores de café (l4).

A força de trabalho engajada nas culturas do cacau e do café compreende uma parcela substancial do proletariado agrícola do estado da Bahia. Coube ao café, em particular, estender por outros espaços rurais situações inéditas, disseminando o assalariamento por áreas que ainda não tinham experimentado verdadeiramente relações de produção tipicamente capitalistas na agricultura, onde chegava o mercado capitalista, mas não a mercantilização da própria força de trabalho. Na região cafeeira da Chapada Diamantina, assim como na zona do cacau, o proletariado agrícola coloca-se hoje face a face diretamente com setores da grande burguesia.

Mais cedo do que se esperava esta nova força social constituída no seio da produção cafeeira coloca-se em movimento e ensaia os passos do seu despertar para a luta de classes, ao ocorrer a greve dos catadores de café em 1980, segundo dissídio coletivo de assalariados rurais da história desde a implantação da ditadura militar no país.

As particularidades do desenvolvimento capitalista da agricultura cafeeira, ao determinarem uma real heterogeneidade na formação do seu proletariado rural, impõem naturais dificuldades à consolidação do movimento de classe dos setores explorados pelo capital.

Em linhas gerais, constata-se que uma parte da força de trabalho do café é formada de semiproletários, camponeses que se assalariam nos períodos de colheita (vindos da caatinga ou localizados dentro da região cafeeira). Outro segmento compõe-se de trabalhadores definitivamente expropriados, "bóia-frias" que moram na periferia de centros urbanos (traço mais comum ao Planalto de Conquista). O componente pequeno-burguês presente na vida e na consciência dos camponeses-proletários, as diferenças de interesses que motivam os dois segmentos a buscar o assalariamento e o regime sazonal de emprego da força de trabalho são elementos que devem ser levados em conta.
A greve do café, no entanto, provou o quanto é capaz a ação de núcleos de trabalhadores mais conscientes e a interferência da organização (aparentemente ausentes entre o proletariado do cacau) na superação dessas dificuldades ou de problemas similares, dada a existência de condições objetivas e subjetivas favoráveis à deflagração do movimento grevista.

O entendimento dos problemas enfrentados pelo movimento dos assalariados do cacau constitui um desafio que poderá ser equacionado pela reflexão científica, realizando-se uma análise concreta da situação concreta, mas desde que esta esteja intimamente relacionada com a prática da luta dos setores explorados. Nesse sentido, o atraso do movimento espontâneo colabora para dificultar a sistematização de experiências e a indicação de caminhos apropriados.

Percebe-se naturalmente que a larga incidência de assalariados permanentes nas fazendas, ao propiciar certa estabilidade dos vínculos de trabalho, facilitaria o trabalho de mobilização e organização dos trabalhadores. Mas o sindicalismo rural, foco de convergência e unificação da força social que provém dos contingentes proletários, salvo exceções, encontra-se ainda preso à ação do peleguismo. Não pode ser desprezado igualmente o alcance dos atos repressivos do governo militar contra tentativas de desenvolvimento de um trabalho político mais avançado na área do cacau, que ocorreram de forma mais eficaz em função da conhecida importância estratégica dessa região historicamente. Os municípios de Ilhéus e Itabuna, centros urbanos que polarizam a região, são administrados hoje por prefeituras do PMDB, fruto do sentimento oposicionista que existe entre suas populações. Este dado revela o caráter contraditório do processo de tomada de consciência das camadas proletárias do campo baiano. Seria também interessante investigar o papel da CEPLAC, órgão de grandes recursos e poder de interferência na lavoura cacaueira, na tarefa de amortecer o ímpeto de revolta do proletariado do cacau.

Em que pesem as particularidades e os desníveis vividos pela luta dos assalariados do cacau e do café, não resta dúvida de que as contradições econômicas e sociais objetivamente os impulsionam a experimentar as manifestações do antagonismo de classe. Cabem a estes segmentos rurais do proletariado baiano, duramente explorados pelo capitalismo, importantes tarefas históricas na modificação da atual correlação de forças vigente no estado da Bahia, na construção da unidade operário-camponesa e na própria evolução geral da luta de classes em direção a seu futuro libertador.

Notas:
(1) CEPLAB. Penetração do Café na Bahia. Salvador, CEPLAB, 1979, p. 19.
(2) BERENGUER, Antonio C. L., Aspectos Agronômicos da Cultura do Café, Custos de Produção e Evolução do PRRC no Estado da Bahia, I Seminário Brasileiro de Produtores de Café, 30 e 31 de agosto de 1979. Salvador, Bahia, p. 8.
(3) BERENGUER, Antonio C. L., op. cit. nota 2, p. 8.
(4) FIBGE, op. cit. nota 2.
(5) CEPLAB, op. cit. nota 1, p. 45.
(6) FIBGE. Produção Agrícola Municipal – 1979. Culturas Permanentes e Temporárias. Vol. 6. T. 3 (PE, AL, SE, BA). Rio de Janeiro, FIBGE, 1980, 292 p.
(7) BARRETO, Vanda Sampaio Sá (Cood.). O Impacto Social da Lavoura Cafeeira na Bahia. Relatório de Pesquisa Preliminar. Salvador, SUDENE, SUTRAB, 1981, p. 73-81.
(8) CARVALHO, Maria Lucia Cunha. “Impacto sobre o Meio Urbano e Regional da Cafeeicultura na Chapada Diamantina”, in op. cit. nota 3, p. XXIV (encarte).
(9) BARRETO, Vanda Sampaio Sá, op. cit. nota 7, p. 94.
(10) CEPLAB, op. cit. nota 1, p. 69-70.
(11) CEPLAB, op. cit. nota 21, p. 68-69.
(12) BARETO, Vanda Sampaio Sá, op. cit. nota 7, p. 114-115.
(13) CONTAG. As Lutas Camponesas no Brasil – 1980. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1981, p. 25.
(14) CONTAG, op. cit. nota 3, p. 23-31.

Segunda parte de um trabalho sobre as culturas do cacau e do café da Bahia. A primeira parte foi publicada em Princípios nº 7.

EDIÇÃO 9, OUTUBRO, 1984, PÁGINAS 32, 33, 34, 35