Cortadores, colhedores, apanhadores, levas humanas em busca de trabalho para sobreviver, sem o amparo de direitos universalmente reconhecidos – contingente que forma o último elo da cadeia social no campo, sinal mais expressivo da modernização da agricultura com base no monopólio da terra e voltada para o mercado externo.

É esse o perfil de mais de um milhão de assalariados rurais temporários (número, aliás, que cresce ininterruptamente) com denominações diferentes conforme a região: bóia-fria, volante, pau-de-arara, peão, corumba, clandestino, diarista, tarefeiro, safrista, camarada, birolo.
No estado de São Paulo, o mais rico do país, principal região produtora de açúcar e álcool, há a maior concentração de trabalhadores rurais temporários, chegando à casa dos 400 a 500 mil, conforme dados mais recentes.

Entre eles, traços comuns: miséria multiplicada a cada ano; exaustão das forças; vida em áreas de permanente tensão; e violenta repressão contra as revoltas causadas pela fome. A cada ano, também, os trabalhadores avançam no rumo da conquista de sua organização, somando forças ao potencial revolucionário de mais de 6 milhões de assalariados que formam o proletariado rural brasileiro. A organização evoluiu em poucos anos garantindo ao sindicalismo rural um notável espaço na luta geral dos trabalhadores. Os assalariados rurais tornaram-se alvo das atenções nos últimos tempos.

Primeiro, na zona canavieira de Pernambuco, a partir de 1979, palco de importantes greves após o golpe militar de 1964. Mais tarde, em 1984, foi a vez de Guariba, pequena cidade da região de Ribeirão Preto, em São Paulo. Isso, sem falar nos movimentos que surgiram em Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Paraíba, Pará, onde os trabalhadores volantes se levantaram para protestar contra a super-exploração.

Como prenúncio das próximas mobilizações, em janeiro passado, espalhou-se na região de Ribeirão Preto, em plena entressafra, a greve de 30 mil bóias-fria durante dez dias, levantando um problema que se torna cada vez mais agudo com a redução de áreas de culturas voltadas para o mercado interno e crescimento daquelas voltadas para o mercado externo (café, soja e laranja) e cana-de-açúcar.

METAMORFOSE

As pesquisas em torno dos trabalhadores rurais, especialmente os bóias-fria, têm crescido lentamente. Uma das dificuldades reside no fato de as estatísticas oficiais não trazerem números diretos a respeito do problema. Todos os que se dedicam a esse estudo realizam verdadeiros malabarismos numéricos para chegar a uma idéia aproximada da magnitude da mão-de-obra volante.
Contudo, as pesquisas convergem para o reconhecimento de que a formação do assalariado rural temporário está na razão direta do desenvolvimento da agricultura capitalista, sobretudo pela forma como se deu no Brasil, conservando e ampliando a grande propriedade rural, concentrando o crédito e a assistência técnica e, como causa e consequência, concentrando desmedidamente a renda.

Essa forma de penetração capitalista na agricultura impede o acesso democrático de milhões de camponeses à terra, provoca crescente proletarização do homem do campo, obrigando-o a vender sua força de trabalho a preços injustos ou emigrar para a cidade em busca de melhores condições de sobrevivência. Visto por outro ângulo, o rompimento do antigo arcabouço com a substituição das relações de trabalho pré-capitalistas – parceria, colonato, pequeno-proprietário, semi-assalariado – pelas relações de trabalho capitalistas fez com que surgisse a mão-de-obra despojada dos meios de produção, tendo sua força de trabalho como única mercadoria para venda.

Segundo a pesquisadora Ângela Kageyam em artigo publicado no boletim da ABR (Associação Brasileira de Reforma Agrária) n. 5, no caso brasileiro, os momentos que marcam a formação desse mercado de trabalho "podem ser sintetizados nas figuras do escravo, do colono (ou em outras formas regionais, como o morador e o agregado), do assalariado permanente e, finalmente, do 'bóia-fria'. No caso do escravo e dos trabalhadores residentes nas propriedades, o proprietário-capitalista era obrigado a manter a mão-de-obra na fazenda, garantindo sua subsistência e reprodução durante todo o ano, e não apenas nos períodos de demanda efetiva de trabalho". Analisando a dinâmica no meio rural, ela acentua: "na medida, porém, em que as forças capitalistas conseguem aumentar a fluidez do mercado de trabalho rural e, mais do que isso, conseguem unificá-lo com mercado de trabalho urbano, torna-se possível reestruturar o emprego agrícola. Agora, trabalhador pode ser chamado apenas durante os momentos em que se faz necessária a aplicação efetiva de sua força de trabalho no processo produtivo, sendo que nos demais períodos do ano outros capitais particulares (na própria agricultura, na construção civil, na agroindústrias etc.) poderão se encarregar de garantir sua reprodução".

IMPACTO

O modelo econômico implantado pelo regime militar, abrindo as portas do país à penetração do capital estrangeiro, forçou o campo a empreender profundas modificações para atender às exigências dos mercados externo e interno. Especialmente durante as duas últimas décadas o impacto da modernização agrícola pôde ser sentido em maiores proporções, fenômeno este que atingiu o estado de São Paulo antes que os demais e diferentemente devido a sua posição na economia nacional.

No estado, a utilização da mão-de-obra volante cresceu a taxas elevadas. De acordo com os pesquisadores José Garcia Gasques e Rubens Valentini, no trabalho Relações estruturais da oferta e demanda de volantes no Estado de São Paulo, entre 1964 e 1970 o número de volantes passou de 226 mil para 35 mil. Dados de 1980 fornecidos pelo Instituto de Economia Agrícola apontam 347.525 como média anual de trabalhadores volantes, ao passo que no ano seguinte, conforme revela Nelson Kazati Toyama, a mão-de-obra temporária estaria beirando os 500 mil, com a tendência de incremento em relação à residente. Também a Secretaria de Estado de Relações do Trabalho em pesquisa sobre bóias-fria, em 1984, aponta 408.378 como o número de volantes nas onze regiões administrativas do estado. O destaque fica por conta da região de Ribeirão Preto, detentora do maior número de volantes, 157.413, que representam 38,54% do total de trabalhadores rurais volantes do estado, enquanto a colocada em segundo lugar, São José do Rio Preto, contribuiu com 13,02% do total (Quadro 1).

MONOCULTURA

O programa Nacional do Álcool (PNA), de dezembro de 1975, impulsionou o desenvolvimento da cultura canavieira em São Paulo. A meta é que o estado contribua com 65% da produção nacional, fixada em 14,3 bilhões de litros de álcool para 1985-86.

Também, das 374 destilarias brasileiras aprovadas até 12-12-1983 pela CENAL (Comissão Executiva Nacional do Álcool) 129 estão em São Paulo, ou seja, 34,4%.
A área plantada com cana-de-açúcar, conforme o "3º Levantamento das Previsões e Estimativas da safra 1983-84" é de 1,77 milhão de hectares, área esta que representa 28% do total da área plantada com os 17 principais produtos do estado, que abrange 6,26 milhões de hectares.

Dessa forma, a cultura da cana-de-açúcar foi a que apresentou maior expansão, correspondendo a alta taxa de crescimento anual da área no período de 1974-83, ao lado das culturas voltadas para o mercado externo (café, soja e laranja), enquanto as de mercado interno (arroz, batata, mandioca etc.), à exceção do feijão e do milho, apresentaram taxas de crescimento negativas.

A evolução da cultura canavieira está ligada à grande empresa agromercantil e à elevada concentração da propriedade da terra. Como o estado não conta praticamente com terras ociosas, a expansão é feita em detrimento de outras culturas (Quadro 2).

Por outro lado, essa situação tem seu impacto na absorção de mão-de-obra se levarmos em conta que a cana tem a colheita muito concentrada em alguns meses do ano, ou seja, 84% se verificam nos meses de junho a setembro. O café, ao lado da cana, tem a colheita concentrada na base de 86%, de junho a julho, e a laranja 88%, de junho a dezembro. No caso da soja, devido à mecanização, a absorção de mão-de-obra é pequena. O impacto está em tornar essa mão-de-obra preponderantemente sazonal, e já começa a haver sinais de agravamento das condições de vida dos assalariados temporários que, na entressafra, ficam à mercê de toda sorte de privações.

DOIS PÓLOS

Apesar da denominação "bóia-fria” a principal característica do trabalhador temporário não é tanto a forma como ele ingere sua refeição, mas, sim, a forma da contratação. Está inteiramente ao desamparo da legislação trabalhista, pois é contratado por tarefa. Como trabalhador sazonal pode ser empregado por dia, por semanas ou meses, geralmente não ultrapassando 4 ou 6 meses.

De um modo geral, eles moram nas periferias das cidades, em casas pobres, casebres, favelas, cortiços, em vilas e povoados situados em áreas agrícolas ou à beira de estradas, enquanto os "xeques” do álcool desfrutam de nababesca posição.

O "gato" – empreiteiro – intermediário entre o empresário agrícola e o trabalhador volante contrata verbalmente o trabalhador, e se encarrega do pagamento e da fiscalização da lavoura.
Um drama à parte é o transporte dos volantes feito pelo "gato", na maioria das vezes, proprietário do caminhão. A falta de segurança, o excessivo número de trabalhadores carregados e a velocidade desenfreada têm feito vítimas fatais constantemente, e é um problema sempre levantado.

Em se tratando da jornada de trabalho, os assalariados temporários trabalham de 10 a 12 horas com o mínimo de tempo para almoço ou café. Somado ao tempo de viagem e de espera nos pontos de saída, eles ficam cerca de 18 horas fora de casa.

Todo sacrifício resulta num ganho quase sempre inferior ao salário-mínimo oficial fora do tempo de colheita, e ligeiramente superior na safra, porém, sem qualquer dos benefícios conquistados pelos trabalhadores permanentes, como férias, 13o, indenizações, descanso remunerado etc. No que diz respeito à assistência médica, ela é inexistente e se tornou reivindicação dos trabalhadores nos movimentos por eles realizados.

Apesar de trabalharem de sol a sol, tanto quanto os homens, as mulheres recebem salários inferiores, e as crianças, empregadas geralmente a partir de 8 anos de idade, recebem um minguado salário apesar de já formarem um contingente razoável de volantes mirins que trocam a escola pela lavoura.

EVOLUÇÃO

No início do ano, com a greve deflagrada na região de Ribeirão Preto, no bojo de uma situação explosiva de extrema carência de milhares de bóias-fria desempregados, vieram à tona denúncias sobre o não cumprimento do acordo de Guariba, resultante da greve de 1984 – cujos principais pontos prendiam-se ao controle da produção, aumento salarial, garantias trabalhistas, equipamento de trabalho, entre os mais importantes.

A resistência dos proprietários de terras e culturas a atender reivindicações, desde há muito conhecida pelos trabalhadores rurais, tem sido o estopim de várias greves, porém, na última, as cenas de brutal violência por parte da PM local contra os grevistas chocaram sobremaneira a opinião pública. Ficou patente a existência de milícias privadas de usineiros, fruto dos longos anos de arbítrio em que o país viveu mergulhado.

Diante disso, a Nova República que se quer implantar não condiz com o aparato até agora utilizado para repressão às reivindicações dos trabalhadores.

Há que se estabelecer um novo relacionamento governo/movimento sindical de acordo com o anseio do povo por amplas liberdades.

O problema do campo brasileiro e a situação dos assalariados rurais exigem que seja posta na ordem-do-dia a discussão sobre a reforma agrária radical e geral, que facilite o acesso do camponês à terra; sejam postos em prática os direitos conquistados pelos trabalhadores, partindo de uma posição democrática com relação a suas justas reivindicações.

* Adelina Bracco é jornalista e colaboradora da revista Princípios.

EDIÇÃO 10, ABRIL, 1985, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 42